segunda-feira, 17 de abril de 2023

Textos medievais galegos ou portugueses

Cada língua tem as suas características distintivas. E o que as distingue umas das outras pode ser usado para prospectar os traços de uma língua num texto escrito noutra. Uma das características típicas da língua galega ou portuguesa é a «síncope do n intervocálico», isto é, uma palavra latina que tinha lá no meio uma letra n, perdeu-a quando o latim se ambientou ao noroeste peninsular tornando-se «romanço ocidental ibérico». Não sabemos porquê; sabemos que aconteceu.

Os mais antigos textos escritos em latim mas com traços de galego ou português são:
• A carta de doação à igreja de Souselo (870)
• A carta de fundação e dotação da igreja de Lordosa (882)
• Um excerto do testamento de Dona Múnia (959)
• Uma carta de venda e doação (1026)
• O registo de Dom Paterno (1090)


Na carta de fundação e dotação da igreja de Lordosa, redigida inteiramente em latim, o escrivão cometeu dois erros de ortografia: onde deveria ter escrito monastica, escreveu «moastica»; e, na mesma linha, em vez de elemosynas pôs «elemosias». Deixou cair o n! Talvez porque era assim que falava ― sinal de que falava já o romanço ocidental, e não latim. Monastica vem, naturalmente, de monasterium, que deu «moasteriu > *moasteiro > mosteiro» etc. Elemosynas levou a «esmolas»; se não fosse a «síncope do l intervocálico», outra característica distintiva da língua, a etimologia ver-se-ia melhor (haveria de ser «elimósias» ou «elimosas» ― em catalão ficou «almoines», e em espanhol castelão é «limosnas» ― mas fluiu, talvez, «*eimosias > *emoslas > esmolas»).

m   o   a   sti   c   a                     e   l   em   o   s   i   a
(É um a esquisito, mas é um a, grafado de duas maneiras.)
Pormenor da carta de fundação e dotação da igreja de Lordosa, datada de 882, onde se vê o "erro" do copista em «mo[n]astica» e «elemos[yn]a». O original está na Torre do Tombo.

Os primeiros textos em galego ou português (os que estão rasurados, já se mostrou convincentemente que são menos antigos) são:
1175 O pacto dos irmãos Pais (anterior a 15 de Abril de 1175)
1175 A notícia de fiadores (c. 1175)
1175 Registo de Dom Martinho
1175 Anotação de Pedro Parada
1171-1177 Notícia de herdades
1178 Testamento em Pendurada
1190 Carta foral de Benfeita
1196 Ora Faz ost'o senhor de Navarra, cantiga de maldizer
séc. XII (2.ª metade) Notícia do abade Dom Pedro
1211-1216 Notícia de torto (c. 1214, entre 1211 e 1216)
1214 Testamento de Dom Afonso II
1220-1225 Testamento de Dona Froille
1222 A cessão do mosteiro de Armeses à condessa Dona Sancha
1228 Foro do bom burgo de Castro Caldelas (pode ser de c. 1275)
1231 Núcleo diplomático no mosteiro de Melom
[ver também a minha postagem anterior]

As quatro colectâneas de poesia trovadoresca em galego ou português, dos finais do século XII até meados do século XIV (apenas conhecidas por cópias dos séculos XV e XVI), são:
Cancioneiro da Biblioteca Nacional (anteriormente conhecido como «Cancioneiro Colocci-Brancuti»)
Cancioneiro da Vaticana
Cancioneiro da Ajuda (anteriormente conhecido como «Cancioneiro do Colégio dos Nobres»).
Cantigas de Santa Maria (mandado compilar por Afonso, o Sábio, rei da Galiza)

Para o seu Novo Dicionário do Português Arcaico ou Medieval (edição do autor, 2019), Américo Venâncio Lopes Machado Filho usou os seguintes textos antigos:
sXIII - Foro real de Afonso, o Sábio
sXIV - Tradução do Flos Sanctorum
sXIV - Tradução do Livro das Aves
sXIV - Tradução dos Diálogos de São Gregório (testemunho D)
1399 - Tratado dos sacramentos da ley antiga e nova
sXV - Vida de Tarsis
1415 - Livro dos Usos da Ordem de Cister
1434 - Crónica de el-rei D. Pedro I, de Fernão Lopes
1436 - Crónica de el-rei D. Fernando I, de Fernão Lopes
1443 - Crónica de el-rei D. João I, de Fernão Lopes
1486 - História de mui nobre Vespasiano
1500 - Carta de Pêro Vaz de Caminha
1536 - Grammatica da lingoagem portuguesa, de Fernão de Oliveira

Bibliografia adicional:
Corrêa de Oliveira & Saavedra Machado (1964) Textos portugueses medievais. Coimbra: Coimbra Editora.

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