quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Tempos verbais simples e compostos

Fui fazer uma visita a uns amigos em Itália e, em conversa sobre «como se diz isto ou aquilo na língua X ou Y», pus-me a comparar as conjugações dos verbos italianos com as portuguesas. Salta à vista que, tal como acontece em francês, a língua italiana usa tempos verbais que são compostos quando em português seriam tempos simples (por exemplo, o trapassato prossimo, equivalente ao francês plus-que-parfait; funcionam ambos como o português mais-que-perfeito). Isto levou-me a ir construir as formas compostas dos tempos verbais em português; todas são possíveis, mas nem todas se utilizam, e não têm certamente o mesmo significado semântico que as correspondentes formas simples (o perfeito composto nunca substitui o perfeito simples como o passé composé substitui o passé simple).

Exemplificado com o verbo FAZER, incluindo algumas formas galegas, ou usadas no vernáculo popular até tarde em Portugal, eis os tempos verbais compostos seguindo os seus tempos simples. As formas marcadas com * não são hoje usadas, mas já o foram até ao século XVI (v. o texto abaixo).

INDICATIVO
Presente simples
faço ― fazes ― fazem ― fazemos ― fazeis/fazedes ― fazemos
Presente composto [P. perf. comp.] [Passado próximo]
tenho ― tens ― tem ― temos ― tendes ― têm/tenhem > feito
Pretérito imperfeito simples
fazia ― fazias ― fazia ― fazíamos ― fazíeis ― faziam
Pretérito imperfeito composto [P. m. comp.] [Pass. contínuo]
tinha, tinhas, tinha, tínhamos, tínheis/tínhedes, tinham > feito
Pretérito perfeito simples
fiz, fizeste, fez, fizemos, fizestes, fizeram/fizerom
Pretérito perfeito composto [inexistente] [Passado anterior]
* tive, tiveste, teve, tivemos, tivestes, tiveram/tivérom > feito
Pretérito mais-que-perfeito simples
fizera, fizeras, fizera, fizéramos, fizéreis/fizéredes, fizeram
Pretérito mais-que-perfeito composto [inex.] [Pass. remoto]
* tivera, tiveras, tivera, tivéramos, tivéreis/tivéredes, tiveram > feito
Futuro do presente simples [Futuro imperfeito]
farei, farás, fará, faremos, fareis, farão
Futuro do presente composto [Futuro perfeito]
terei, terás, terá, teremos, tereis, terão > feito
Futuro do pretérito simples [Condicional presente]
faria, farias, faria, faríamos, faríeis, fariam
Futuro do pretérito composto [Condicional pretérito]
teria, terias, teria, teríamos, teríeis, teriam > feito

SUBJUNTIVO/CONJUNTIVO
Presente (simples)
faça, faças, faça, façamos, façais/façades, façam
Pretérito imperfeito (simples)
fizesse, fizesses, fizesse, fizéssemos, fizésseis/fizéssedes, fizessem
Pretérito perfeito (composto)
tenha, tenhas, tenha, tenhamos, tenhais/tenhades, tenham > feito
Pretérito mais-que-perfeito (composto)
tivesse, tivesses, tivesse, tivéssemos, tivésseis/tivéssedes, tivessem > f
Futuro imperfeito (simples)
fizer, fizeres, fizer, fizermos, fizerdes, fizerem
Futuro perfeito (composto)
tiver, tiveres, tiver, tivermos, tiverdes, tiverem > feito

INFINITIVO
Pessoal (ou Flexionado) simples
fazer, fazeres, fazer, fazermos, fazerdes, fazerem
Pessoal (ou Flexionado) composto
ter, teres, ter, termos, terdes, terem > feito
Impessoal (ou Não-flexionado) simples
fazer
Impessoal (ou Não-flexionado) composto
ter feito

GERÚNDIO
Gerúndio simples
fazendo
Gerúndio composto
tendo feito

Transcrevo aqui na íntegra o que escreveu o filólogo brasileiro Manuel Said Ali àcerca dos tempos compostos. Said Ali (como bem lembrou Eunice Pontes) não concordava com a inclusão das formas compostas junto com as formas simples nas tabelas da conjugação verbal, considerando-as antes conjugações perifrásticas, de origem semântica. Realço no texto a forma tive feito etc., que, pela ausência na fala corrente, se torna a mais intrigante de todas.

«Todos os tempos e modos do auxiliar ― salvo o próprio particípio do passado, e talvez, o mais-que-perfeito 58 [58 Os exemplos de tivera feito, por mim coligidos, têm todos o sentido ou de teria feito ou de tivesse feito.] ― se combinaram desde cedo com o particípio do verbo principal. Somente às dicções tive feito, tiveste feito, teve feito, etc., semelhantes na formação e no uso ao “passé antérieur” da língua francesa e conhecidas ainda muito bem dos quinhentistas, faltou vitalidade bastante que as conservasse na linguagem destes últimos séculos.

As diversas formas ter feito, tendo feito, tenho feito, tinha feito, tive feito, terei feito etc. irmanam-se todas por um traço semântico proveniente da origem comum, e o seu estudo ― mau grado a tradição até o presente seguida ― é para fazer-se em conjunto e fora do quadro das formas simples, aliviando-se assim o paradigma geral dos complicados ingredientes de tempos perfeitos compostos e tempos anteriores, passados e exatos.

Trata-se de uma conjugação perifrástica creada pela aproximação e enlace semântico de um elemento ativo ― habere ou tenere ― e um elemento passivo; aquele referindo-se ao sujeito da oração, este qualificando o objeto direto. Correm pelo falar moderno bastantes exemplos que lembram aquela primitiva fase dos dois verbos ainda não associados: sometida Bizancio tem a seu serviço indino (Lus., 3, 12); as aguias nas bandeiras tem pintadas (ib., 8, 5); tinha fechadas as portas com tal severidade... que nenhum estrangeiro lá podia entrar (Vieira, Serm., 8, 301); tenho acabadas seis Decadas (Couto, Dec., 4, Ep.).

Neste estado de independência, em que o particípio passivo indica o resultado de uma ação anterior, não se determina quem seja o respectivo agente, ao passo que na fusão semântica, se afirma ser ele o mesmo que o sujeito do verbo ter. Disto resulta compor-se uma expressão verbal ativa, em que a noção principal se passa ao particípio, reduzindo-se o verbo ter ao papel de lhe acrescentar, com as flexões usuais do verbo, a modalidade de realização perfeita até o presente, ou até determinado momento do pretérito ou futuro. Comparem-se tenho lido as obras de Virgilio, com leio as obras de Virgilio; terei feito o trabalho na semana próxima, com farei o trabalho; e com as formas simples comeu, fez se confrontem as formas compostas, esquecidas hoje, mas nem por isso menos sugestivas, dos exemplos seguintes: depois que ho Conde e ho Mestre ouverom comido...; veo sse pera elles o Conde Dom Alvaro (Fern. Lopes, D. J., 26); depois que el Rei teve determinado de pellejar... mandou duas gallees (ib., 225); e como teve feito nella [cidade] o que quiz, foi cercar D. João no forte em que estava (Couto, Dec., 4, 10, 6).

Na falta de designações melhores que diferenciem este aspecto verbal e o paradigma simples, podem-nos servir os termos perfectivo e imperfectivo, sem pretenderem contudo significar o mesmo que nas gramáticas de línguas eslavas, onde são empregados.

Responde ao imperfectivo fazia naturalmente a forma tinha feito; porém esta, por isso mesmo que é perfectiva, vem a dizer tanto como aquela outra forma sintética fizera, para cuja denominação se criou o superlativo mais-que-perfeito. Faz-lhe às vezes muito a miúdo, não só pela tendência analítica das línguas modernas, mas ainda porque permite distinguir a 3.ª pessoa do plural da do tempo perfeito.

Sérias dificuldades oferece à teoria, como à pratica, o perfectivo do presente com sua propensão para designar uma ação pretérita; e tão obscuras são as regras de seu emprego nas diversas línguas, que facilmente naufragam os que passam a utilizar-se desta forma verbal de um idioma para outro.

A razão da afinidade do presente perfectivo com o simples pretérito perfeito está em que todo e qualquer ato compreendido no tempo presente ― a que não sabemos limites ―, mas realizado, poucos segundos que sejam, antes do momento em que falamos, é por isso mesmo também ato pretérito. E naquelas línguas onde esta consideração prevaleceu em absoluto, pôde o presente perfectivo como j’ai reçu la lettre facilmente desbancar o uso do pretérito simples.

Em português porém entendemos vir a propósito o presente perfectivo ― e esta distinção não se faz nos demais tempos ― se o ato é durativo ou iterativo, como: tenho passado ou vivido bem, tenho lido muitos romances; mas não diremos ele tem morrido, tenho recebido a carta, porque são atos momentâneos sem continuidade nem repetição.

É contudo permitido ao cabo de um discurso mais ou menos alentado, de um trabalho ou esforço prolongado, proferir estas palavras: tenho dito, tenho acabado, tenho chegado, até aqui tendes chegado felizmente (Vieira, Serm. 8, 50). Estas conclusões resultam de um fenômeno de contágio. O fato durativo não está em nenhum dos mencionados verbos; mas o orador só se lembra do muito que tem falado, das razões que seguidamente tem exposto, do muito que lhe pareceu durar uma viagem.»

― Said Ali (1908) Dificuldades da Língua Portuguesa, 7.ª edição (2008). Academia Brasileira de Letras, pp. 145-147.


Bibliografia
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• Eunice Pontes (1973) Verbos auxiliares em português. Petrópolis: Vozes.
• Manuel Said Ali Ida (2008) Dificuldades da Língua Portuguesa: Estudos e Observações, 7.ª edição. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras / Biblioteca Nacional (Brasil) [1.ª ed. 1908. 2.ª ed. 1919. 5.ª ed. 1957].
• Maria Margarete Fernandes de Sousa (1999) A questão das perífrases verbais. Revista de Letras 21(1/2):100-110. [v. para um bom apanhado do assunto]
• Vários Autores (2013-2020) Gramática do Português, 3 vols. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.