terça-feira, 29 de março de 2022

A Narrativa de Ficção ― SUMÁRIO

NARRATIVA = história + discurso + narração

INTRODUÇÃO (a narrativa)
1. Narrativa = história + discurso + narração
2. História = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)
3. Discurso = enunciado, texto (expressão da história)
4. Narração = enunciação, relato (produção do discurso)
5. Composição (recitação, redacção)
6. Bibliografia

HISTÓRIA = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)
0. O tema
1. As personagens
2. As circunstâncias

DISCURSO = enunciado, texto (expressão da história)
1. Tempo do discurso: Ordem (anacronias)
2. Tempo do discurso: Velocidade (anisocronias)
3. Tempo do discurso: Freqüência (repetições)
5. Modo do discurso: Perspectiva (focalizações)
6. Modo do discurso: Alterações

NARRAÇÃO = enunciação, relato (produção do discurso)
1. Narrador: Nível
2. Narrador: «Pessoa»
3. Narrador: Tempo da narração
4. Narratário

COMPOSIÇÃO (recitação, redacção)
1. Géneros narrativos
2. Gramática da língua
3. Valorização estilística
5. Estratégias textuais
6. Notas e recomendações artísticas

1. Teoria e análise
2. Prática da escrita
3. Livros escolares
4. Corpus essencial da narrativa de ficção
5. Clássicos da narrativa de ficção na língua portuguesa

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.

sexta-feira, 25 de março de 2022

A Narrativa de Ficção ― INTRODUÇÃO

INTRODUÇÃO (a narrativa)

1. Narrativa = história + discurso + narração

• História
• Discurso
• Narração
[• Composição]

A narrativa é uma tipologia literária com definições várias consoante quem a estude (v. bons resumos em Aguiar e Silva pp. 385s, Reis & Lopes 1987 e Reis 2018, Alves 2009; Bourneuf & Ouellet 1978, a subsecção “Uma história de marinheiro” pp. 36-42 é um excelente resumo do que seja a narrativa). 

Mas, em todas as definições (incluindo as que vêm nos dicionários da língua portuguesa, por exemplo na Infopédia [= Porto Editora], no Aulete e no Priberam [= Lello]), a narrativa implica uma história que seja contada, uma sucessão de acontecimentos experienciados por personagens (Aguiar e Silva p. 711); uma narrativa de ficção seria, então, a narração de uma sucessão de acontecimentos ficcionais (Rimmon 2002, p. 2). 

[A distinção entre realidade e ficção, porém, esbate-se: Mircéa Eliade mostrou que a literatura oral se confundia com a religião, veìculando mitos como se fossem «histórias verdadeiras» contando tanto acontecimentos reais, como aventuras heróicas ou a criação do mundo (in Bourneuf & Ouellet 1978, p. 18); e já o poeta gaúcho Mario Quintana dizia “para mim, tudo é verdade mesmo” (no Caderno H, 1973).] 

Alguns críticos dividem a narrativa em dois planos de linguagem, o das personagens e o do narrador, isto é, o que se narra (a história) e como se narra (o discurso) (Mesquita 1987, p. 21; Reis & Lopes 1988, p. 277; Gancho 2006, p. 37). 

No entanto, para o teórico francês Gérard Genette (Discours du récit, em Figures III, 1972 [daqui para diante DR] e Nouveau discours du récit, 1983 [daqui para diante NDR]) a narrativa tem três ― e não dois ― planos, òbviamente relacionados, mas distintos: uma história, ou seja, o conteúdo de um enunciado, a sucessão de acontecimentos reais ou fictícios; um enunciado narrativo, isto é, o discurso (oral ou escrito) que corresponde ao relato de uma série de acontecimentos; e a narração, o acto de narrar em si mesmo, isto é, “um acontecimento: não aquele que se conta, mas aquele que consiste em que alguém conte alguma coisa” (DR pp. 71-72). Como tal, e para efeitos de estudo, atribui a cada um destes planos um termo técnico preciso em francês: histoire récit narration, respectivamente. Shlomith Rimmon-Kenan (2002, p. 3) segue a divisão de Genette e chama-lhes, em inglês: story text narration. Eu aqui, nesta série de postagens, vou seguir de muito perto o sistema de Genette e fazer uso dos termos em português: história discurso narração.

[Atenção que a palavra «récit» se costuma traduzir para português por «narrativa», mas Genette é muito claro p. 72: no sistema dele, «récit» significa sempre «discurso», “Je propose (...) de nommer (...) récit proprement dit le signifiant, énoncé, discours ou texte narratif lui-même” (excepto no título da obra, «discours du récit», claramente «discurso da narrativa», provàvelmente de propósito).]

Dos três planos da narrativa, o discurso é o único que se presta directamente à análise textual, o único que está disponível ao leitor ou ouvinte: é pelo discurso (expressão) que se tem acesso à história (conteúdo) através da narração (produção) (DR p. 73; Rimmon 2002, p. 4). Não há narrativa a não ser que se conte uma história de uma certa maneira. A narrativa é, portanto:

• a narração do discurso da história.

• a enunciação do enunciado da diegese.

• a produção da expressão do conteúdo.

• o relato do texto da ficção

quem conta e como é contado o que há para contar.

Eu acrescento um «quarto plano»: o da composição da narrativa, que equivale à sua redacção (se for escrita) ou à sua recitação (se for verbal, contada oralmente). Penso que muitos aspirantes a escritor (incluindo eu próprio!) confundem o desejo de pôr palavras e frases no papel com o de criar uma narrativa. Foi só depois de estudar os meandros da história, do discurso e da narração, que compreendi que a redacção do texto pouco tem a ver com a narrativa em si, e que é uma actividade que vem apenas depois de se ter construído uma narrativa lógica e original. É depois (e só depois) que entram a escolha do género narrativo, a boa gramática, as escolhas estilísticas, a estrutura dos parágrafos e da mancha tipográfica, etc.


2. História = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)

• Personagens
• Circunstâncias: espaços, tempo da história, etc.
• Enredo

No plano da história ou diegese ou ficção ― o conteúdo da narrativa — parece ser consensual que toda e qualquer narrativa de ficção é alicerçada em pelo menos quatro elementos (ou categorias): as personagens, as circunstâncias (muitas vezes divididas apenas em tempo e espaço), o enredo (acções e acontecimentos) e o narrador (Gancho 2006, pp. 6 e 11). São os conteúdos reconhecíveis da ficção (Reuter 1997, p. 21). Por vezes o tema de uma narrativa é também considerado um elemento. 

“Um texto narrativo é aquele onde um narrador conta uma «história» em que entram personagens que se envolvem num enredo situado numa determinada circunstância (espaço, tempo, etc.)” (Teixeira & Bettencourt 1997, p. 105, adaptado).

“Num inquérito feito em 1965 para uma revista [francesa], umas dezenas de leitores adultos (...) definiam a sua conceição do verdadeiro romance: 
• pintar caracteres, criar heróis e tipos, ser a «odisseia de um destino»;
• contar uma história, conter acção, apresentar situações variadas.” (Bourneuf & Ouellet 1972, p. 20)

“(...) para o leitor vulgar, o romance [a narrativa] é, em primeiro lugar, uma história complexa e inverosímil, encontros miraculosos, heróis demasiado perfeitos e heroínas demasiado belas para serem verdadeiros. «Fiction», dizem os anglo-americanos, «ilusão», poderíamos traduzir [para francês, mas também dá em português] sem grande infidelidade.” (Bourneuf & Ouellet 1972, pp. 5-6)

São, portanto, as personagens (com a sua caracterização e atributos, motivação e objectivo) e o enredo (com conflito e tensão, verosimilhança e causalidade, e uma estrutura) que conduzem a história (categorias fundamentais da narrativa, dizem Reis & Lopes 1987, p. 215), enquanto que as circunstâncias existem inevitàvelmente se aquelas existem, ainda que se possa dizer que um espaço (a cidade de Lisboa nas narrativas de Eça de Queirós, por exemplo) também possa, em certos casos, ser considerado uma personagem. “A diegese (ficção, história), como sucessão de eventos (...), é inconcebível fora do fluxo do tempo” (Aguiar e Silva, pp. 745s) e é a este que se chama tempo da história, não se confundindo nem com o tempo do discurso, nem com o tempo da narração; e corresponde ao tempo necessàriamente cronológico do universo ficcional onde as personagens e as acções acontecem (tempo que depois vai ser tratado ou elaborado não-cronològicamente, resultando no tempo do discurso). 

Não havendo acção ou acontecimentos decorridos ao longo do tempo, não há história (nem narrativa). Por exemplo, as quatro proposições em «Roses are red/ Violets are blue/ Sugar is sweet/ And so are you» são verdadeiras ao mesmo tempo, não há uma sucessão temporal de umas para as outras no mundo ficcional representado por estas frases e, portanto, não há história (Prince 1980, p. 49, in Rimmon 2002, p. 16). É a presença de uma história que distingue um texto narrativo de um texto não narrativo (Rimmon 2002, p. 16). “A experiência do tempo estrutura-se em acções desenvolvidas numa intriga coesa” (Reis & Lopes 1987, p. 76).

Como se viu antes, no sistema de Gérard Genette a narração é um plano diferente da história e, como tal, o narrador será tratado como voz da narração e não como elemento da história.


3. Discurso = enunciado, texto (expressão da história)

• Tempo do discurso: ordem, velocidade, freqüência
• Modo do discurso: distância, perspectiva, alterações

O plano do discurso ou enunciado ou texto ― a expressão (escrita, oral ou audiovisual) da história — é o resultado do acto de enunciação de um narrador. É construído através de procedimentos de elaboração técnico-narrativa (Reis & Lopes 1987, p. 141) que são, à partida, independentes do conteúdo da narrativa. Aparenta resultar do labor do narrador, porque é este que vai organizar e mediar toda a expressão do conteúdo da narrativa, mas na prática o discurso depende das diferentes escolhas técnicas e criativas (Reuter 1997, p. 21) que a autora tem de fazer para construir/estruturar os elementos narrativos coerentemente e para causar os efeitos desejados nos leitores. 

“O romancista opera nos feitos que quer narrar um corte e uma escolha, muitas vezes de ordem cronológica (...) privilegiar certos factos e deixar outros na sombra. Compõe a história [o discurso] para produzir um certo efeito no leitor, para reter a sua atenção, comovê-lo, provocar reflexão. Organiza a matéria-prima da sua história para lhe dar uma forma artística.” (Bourneuf & Ouellet 1978, p. 31)

Gérard Genette inspira-se nas categorias da gramática do verbo para as designações das categorias do discurso da narrativa («discours du récit»): modo e tempo (e voz para a narração: a voz do narrador, DR pp. 75-76).

O tempo do discurso é uma sucessão de enunciados (frases, períodos, parágrafos) e resulta do tratamento ou elaboração do tempo da história; só é igual ao tempo da história se essa sucessão de enunciados corresponder cronològicamente à sucessão dos acontecimentos. “O tempo do discurso é o arranjo textual dos acontecimentos da história; é unidireccional e irreversível, mas também é repetição e mudança” (Rimmon 2002, pp. 45-46). “O tempo do discurso é o resultado de uma estratégia textual que interage com a resposta dos leitores e lhes impõe um tempo de leitura” (Umberto Eco, Seis passeios, 3.º passeio p. 53). “O romance [a narrativa] é (...) uma arte temporal (...), é discurso, quer dizer, implica sucessão e movimento” (Bourneuf & Ouellet p. 169).

As relações entre o tempo da história e o tempo do discurso são de ordem, de velocidade (Genette inicialmente diz «duração») e de freqüência (DR p. 77). Isto é:
• relação entre a ordem temporal da sucessão dos acontecimentos na história e a ordem (pseudo-)temporal da disposição desses acontecimentos no discurso;
• relação entre a velocidade variável dos acontecimentos na (ou segmentos da) história e a (pseudo-)velocidade desses acontecimentos no discurso [= comprimento ou longura ou extensão ou demora ou delonga do texto, medida em linhas, parágrafos e páginas, NDR p. 23];
• relação entre as capacidades de repetição da história e as do discurso.

Genette decidiu designar tècnicamente como modos do discurso aquilo a que na mesma frase chama “modalidades (formas e graus) da «representação» narrativa” [“modalités (formes et degrés) de la «représentation» narrative”, DR p. 75]. Os modos do discurso são apenas dois, a distância e a perspectiva (incluindo as alterações à perspectiva), palavras que são metáforas para designar os modos de regulação da informação veiculada pelo discurso (DR p. 203) por selecção quantitativa e qualitativa do que é narrado. Genette distingue o modo do discurso (qual é a personagem cujo ponto de vista orienta a perspectiva narrativa? quem vê?) da voz do narrador (quem é o narrador? quem fala?).

A distância corresponde, grosso modo, à oposição anglo-saxónica entre to show (mostrar, mimesis) e to tell (contar, diegesis), que Genette, como veremos, considera não uma oposição, mas uma gradação de telling criando maior ou menor ilusão mimética. A perspectiva (e suas alterações) são as «focalizações», neologismo criado por Genette para estruturar com reduzida ambigüidade velhos termos como «ponto de vista», «visão», «foco narrativo», «aspecto», «restrição de campo», etc.

Resumindo, o discurso pode apresentar as acções e os acontecimentos da história (Veríssimo et al. 1998, p. 28, adaptado):
a. por ordem cronológica, igual, portanto, à da história;
b. com alteração da ordem cronológica (anacronia), recorrendo a analepse (recuo a acontecimentos passados) ou prolepse (antecipação de acontecimentos futuros);
c. à mesma velocidade dos acontecimentos na história (isocronia), por exemplo, na cena dialogada;
d. a uma velocidade diferente (anisocronia), recorrendo ao resumo (condensação dos acontecimentos), à elipse (omissão de acontecimentos) e à pausa (interrupção da história para dar lugar a descrições ou digressões);
e. a uma maior ou menor distância da história;
f. a esta ou àquela perspectiva da história.


4. Narração = enunciação, relato (produção do discurso)

• Narrador: nível, «pessoa», tempo da narração
• Narratário

Plano da narração ou enunciação ou relato ― a produção do discurso — é o acto de enunciação de um narrador e dirige-se, explícita ou implìcitamente, a um narratário (Reis 2001). Genette observa três categorias da «voz do narrador»: o nível do narrador, a «pessoa» do narrador e o tempo da narração; enquanto que o narratário merece tratamento à parte. 

No sistema de Genette, a «voz» designa as relações tanto entre a narração e o discurso, como entre a narração e a história, na mesma medida em que o tempo e o modo do discurso se referem às relações entre o discurso e a história (DR pp. 75-76). Daqui se vê como esta planificação triangular funciona bem num sistema teórico, mas também na prática: 
      Narração
     (voz) / \  (voz)
História    — Discurso
      (tempo e modo)

Faço aqui uma nota àcerca dos vários tipos de tempo na narrativa. Já se viu atrás que tempo da história, tempo do discurso e tempo da narração são coisas diferentes. Umberto Eco considera que há ainda um tempo de leitura, isto é, o tempo que quem lê demora a ler uma narrativa (Eco, Seis passeios, 3.º passeio pp. 50s), que Aguiar e Silva subsome no tempo do discurso. Bourneuf & Ouellet separam o tempo da aventura (equivalendo, mais ou menos, ao tempo da história + o tempo do discurso de Genette), o tempo da escrita (talvez semelhante ao tempo da narração de Genette, ou então o tempo que uma narrativa demora a ser redigida, incluindo, quiçá, todo o tempo de revisão e edição) e o tempo de leitura (similar, presumìvelmente, ao de Eco). Luiz Antonio de Assis Brasil (2019, pp. 328s) mostra um complicado esquema que inclui tempo da escrita, tempo da narrativa (= ao tempo do discurso de Genette), tempo como percebido por uma personagem (parte do tempo da história que inclui os tempos psicológicos de todas as personagens) e tempo de leitura [ficando a faltar o tempo da narração e o tempo cronológico = tempo real da história]. 

Estas questões teóricas dos tempos podem ser lidas nos dicionários literários (Reis & Lopes 1987; Reis 2018; Ceia 2018) e noutras obras especializadas (Aguiar e Silva pp. 745s; Bourneuf & Ouellet 1972, pp. 169s; Rimmon pp. 45s; e em Genette, evidentemente); eu aqui vou cingir-me aos três tempos técnicos de Genette, que são aqueles de verdadeira importância para a narrativa.


5. Composição (recitação, redacção)

• Géneros narrativos
• Gramática da língua
• Valorização estilística
• Modos de apresentação do discurso
• Estratégias textuais
• Recomendações artísticas

O meu quarto plano, o da composição — recitação ou redacção da narração — vem depois de se ter construído uma narrativa lógica e original. Não basta ter uma ideia e saber redigir correctamente: a elaboração de uma narrativa requer o conhecimento e a prática de certos recursos técnicos que permitam construir a ideia que uma autora tem em mente (Sabarich & Dintel 2001).

É depois de se ter construído essa narrativa lógica e original que começa a composição de um texto literário consistente e de qualidade. Para compôr uma narrativa (o que Reuter chama la mise en texte, que se pode traduzir por montagem de texto ou produção/criação do texto, isto é, a redacção de facto da narrativa), um escritor socorre-se de recursos múltiplos que implicam escolhas formais, lexicais e sintácticas, retóricas e estilísticas, textuais, etc. (Reuter 1997, p. 22). “A composição estrutura esses elementos num todo harmonioso nas justas proporções, respondendo a uma preocupação estética” (E. M. Forster, in Bourneuf & Ouellet 1972, p. 43).


6. Bibliografia

• Teoria e análise
• Prática da escrita
• Livros escolares
Corpus essencial 
• Clássicos na língua portuguesa

Tentei estudar sobretudo a bibliografia em língua portuguesa, mas tornou-se inevitável recorrer a fontes noutras línguas, principalmente Genette, que eu estava em condições de ler no original. Comecei por recorrer aos meus velhos livros escolares, que ainda são os melhores para aprender muitas destas coisas, ou ao menos para atingir um conhecimento inicial que depois aprofundei. As outras obras, separei-as em «teoria» e «prática», que me pareceu uma separação evidente porque o meu interesse sempre foi chegar às boas práticas da escrita da narrativa, mas com um mínimo (um máximo?) do conhecimento teórico produzido por tantos estudiosos e tantas estudiosas por esse mundo académico fora. Finalmente, breves listas de obras-mores da narrativa literária.

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.

quarta-feira, 16 de março de 2022

A Narrativa de Ficção ― HISTÓRIA (I)

HISTÓRIA = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)

0. O tema

• Tema, assunto e mensagem
• Motivos e símbolos
• Tom

Por vezes incluído como elemento da história, o tema é uma ideia ou conceito em torno do qual se desenvolve a história, por exemplo: o amor, o sofrimento, a inocência, a coragem; o bem versus o mal, a vida versus a morte; o poder (ganho ou perda), o indivíduo (versus o sistema ou a sociedade), a mudança (física ou psicológica), a sobrevivência (de um personagem ou de uma ideia); um mistério, uma busca, etc. (Gancho 2006, p. 34; v. também Carvalho, p. 107).

O assunto é a concretização do tema nos factos da história, isto é, aquilo que acontece na história para fazer a leitora compreender qual é o tema, enquanto que a mensagem é um pensamento ou conclusão que se possa depreender da história; nas fábulas populares é a «moral da história», mas nas narrativas modernas nem sempre a mensagem é moral, podendo ser imoral ou amoral (Gancho 2006, p. 34). 

James Scott Bell (2004, pp.132-133) fala ainda em motivos (uma imagem ou frase repetida ao longo da história) e em símbolos (algo representativo de outro algo): a água pode ser um motivo central, recorrente, aparecendo em rios, no mar, na chuva; e também pode ser um símbolo, por exemplo, o medo de se afogar que uma personagem possa ter poderá ser símbolo de outros medos mais profundos, ou o fluxo da água como símbolo do fluxo do tempo. O tom da história pode ser humorístico ou sério, ligeiro ou negro, introspectivo ou aventuroso, etc.


1. As personagens

Persona, ficção, construção textual
• Protagonista, antagonista, personagens secundárias, figurantes
Round character ou flat character
• Personagem-tipo, caricatura, personagem colectiva
• Caracterização...

As personagens são entidades fictícias que desempenham o enredo, isto é, que executam as acções e a quem acontecem os acontecimentos (passe o pleonasmo!). As personagens só existem se agirem ou falarem, se interferirem no enredo; as acções e os acontecimentos só existem (e só fazem sentido coerente e plausível) por causa das personagens (Fernando Ferrara 1974 [‘Theory and model for the structural analysis of fiction’, New Literary History, 5, 245–268], p. 252, in Rimmon 2002, p. 37). Personagens e enredo são, portanto, interdependentes (Rimmon 2002, pp. 37-38), mas “é a personagem que com mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza” (Rosenfeld in Cândido et al. 1964, p. 21).

“Para designar os agentes da narrativa, os teorizadores e críticos literários de língua inglesa utilizam preferentemente o termo «caracteres» (characters). Trata-se de um termo com escassa tradição na terminologia literárias das línguas românicas e com um conteúdo psicológico e moral muito acentuado. Julgamos que o termo «personagem», com uma longa tradição na literatura, no teatro, nas artes plásticas e no cinema, pode e deve continuar a ser utilizado em narratologia. Na sua própria origem etimológica — persona — manifesta-se a ideia de «ficção» (...) Os textos literários narrativos são produzidos por homens para serem lidos por homens e que, por isso, os animais, os objectos e os conceitos que neles desempenhem funções de agente se encontram inevitavelmente antropomorfizados, mesmo que só implicitamente, porque o homem projecta neles os seus valores ou exprime através deles os seus valores (...). As personagens nunca são «formas vazias» ou «puros operadores» (...), remetem sempre (...) para um determinado horizonte de valores, para uma determinada ideologia.” (Aguiar e Silva, p. 694)

As personagens são elementos-chave do investimento ideológico e psicológico dos leitores, nas quais eles se projectam e com as quais se identificam como se elas fossem de carne e osso (Rimmon 2002, p. 35). Mas as personagens são construções textuais (Reuter 1997, p. 41). “Uma simples mas sã evidência: que uma personagem romanesca não é nada mais do que a projecção da vontade do romancista” (Jean-Louis Curtis 1950 [Sartre et le roman], citado em Bourneuf & Ouellet 1978, p. 129). Uma personagem é sempre invenção, mesmo que seja baseada numa pessoa (ou entidade) real; é definida na história pelos juízos que outras personagens e/ou o narrador fazem sobre ela. 

A escritora Toni Morrison, Nobel da Literatura (citada por Assis Brasil 2019, p. 56), dizia que ela é que controlava as personagens, que ela é que escrevia e que, portanto, não era possível deixar que as personagens escrevessem os livros por ela. “Personagens não têm existência independente, mas sim aquela que lhes foi dada pelo ficcionista” (Assis Brasil 2019, p. 65). O que justifica, então, a persistência da ideia das personagens ganharem vida própria? Diz Assis Brasil (p. 56): “quando [a] personagem está bem construíd[a], [ela] deve fazer algumas coisas perante certas circunstâncias e não pode fazer outras, sob pena de ficar inconsistente.

Quanto ao papel (ou função) desempenhado no enredo, as personagens podem ser classificadas (já desde o teatro clássico de Téspis e Ésquilo, e da Poética de Aristóteles) em: protagonista, a personagem principal, herói (que tem características superiores às do seu grupo; a mais complexa e a que está mais vulnerável perante o conflito) ou anti-herói (que tem características iguais ou inferiores às do seu grupo); antagonista, a personagem que se opõe ao protagonista, porque tem características diametralmente opostas ou simplesmente atrapalhando-o com suas acções (é muitas vezes um vilão); personagens secundárias, personagens menos importantes, auxiliares, ajudantes, testemunhas, com participação menor ou menos freqüente no enredo; ou figurantes, personagens que não desempenham qualquer papel específico, embora a sua existência seja importante para a compreensão do enredo (Carlos Reis [1978] considera mesmo os figurantes como parte das circunstâncias, do espaço social, do ambiente das personagens) (Teixeira & Bettencourt 1997, p. 105).

Outras classificações são correntes, como a de E. M. Forster (1937, Aspects of the novel) em round characters, o que se traduz insatisfatòriamente por «personagens redondas ou modeladas ou tridimensionais» (dinâmicas, com densidade psicológica, capazes de alterar o seu comportamento e, portanto, de evoluir) e flat characters, «personagens planas ou desenhadas ou bidimensionais» (estáticas, comportam-se de forma previsível, não evoluem); Rimmon (pp. 42-43) faz uma refutação bastante lúcida desta classificação de Forster, mostrando que há muitas personagens que não mudam ao longo da narrativa e que, ainda assim, apresentam uma grande complexidade (ex. Bloom, no Ulysses de James Joyce); e outras muito simples que no entanto se desenvolvem ― e todos os cambiantes entre os dois pólos (a de Forster é, portanto, uma falsa dicotomia). Há ainda a classificação de Propp (doador, auxiliar, etc.), de difícil aplicação fora dos contos de fadas populares, ou a de Greimas (actante, adjuvante, etc.), cujas teorias são demasiado extensas, abstractas, ultrapassadas e de escassa utilidade para a prática da narrativa (podem ser lidas em Aguiar e Silva e mesmo em Timbal-Duclaux, por exemplo).

Podem ver-se, ainda, a «personagem-tipo», que representa um grupo social ou profissional reconhecível, e de que conhecemos os melhores exemplos nos autos de Gil Vicente; a caricatura, marcada por uma característica muito vinculativa; e a personagem colectiva, um grupo de indivíduos animado por uma só vontade: uma família, uma comunidade, uma cidade, um bairro [“A personagem básica nem é um indivíduo, nem um grupo social, mas uma cidade” (Aguiar e Silva, p. 702).] (Veríssimo et al. 1998, p. 27).

• Caracterização directa e caracterização indirecta
• Atributos e «ficha da personagem»
• Nome, vocabulário, sensações físicas, situações diferentes
• Questão essencial, motivação e objectivo
• Hierarquia de valores

Como as personagens são construções, elas são montadas pelos leitores a partir dos vários indícios dispersos pelo autor ao longo do texto (Rimmon 2002, p. 38), o que se designa por caracterização (melhor seria «personalização», já que não usamos a palavra «character», mas enfim). As características das personagens podem ser fornecidas à leitora pela fala do narrador ou das personagens (caracterização directa, usando adjectivos, nomes ou partes do discurso), ou deduzidas pela leitora a partir do comportamento das personagens (caracterização indirecta, pelas acções, falas, ambiente, aparência externa, etc.); na maior parte das narrativas ambos os modos ocorrem (caracterização mista) (Teixeira & Bettencourt 1997, p. 105; Moreira & Pimenta 1999, p. 316; Rimmon 2002, p. 61). A caracterização também se pode classificar como simples ou complexa, ou ainda física, psicológica ou social, etc.

Uma personagem é, com efeito, uma rede de indícios de caracterização distribuída ao longo do continuum textual (Rimmon 2002, p. 61). A escolha de certos atributos é forçada pela progressão da informação («um homem, chamado Pedro» — seria, em princípio, incoerente se se chamasse Leonor; e, se assim fosse, a leitora ficaria logo curiosa em saber o porquê de um homem se chamar Leonor ― o nome seria um plot device, como se verá na postagem HISTÓRIA II, sobre «O enredo») ou pelo lugar na frase («ele, lhe»... «eu, me»); a leitora é assim conduzida na atribuição de valores às personagens (Reuter 1997, p. 106). Os atributos das personagens são (a-c, Reuter 1997, pp. 100s; d-h, Timbal-Duclaux 1994, pp. 61s e 102s):
a. nomes (João), remetem para uma época, um género, uma geografia;
b. pronomes (ele, este);
c. perífrases (irmão mais velho); 
d. singular ou plural;
e. masculino ou feminino, animal, planta, ser inanimado, etc.;
f. de origem popular ou erudita; 
g. caracterizado por adjectivos (grande ou pequeno, inteligente ou idiota, etc.);
h. qual o seu habitat.

Isto é o que aparece muitas vezes nos manuais de escrita como a «ficha da personagem»; pode ter mais ou menos itens, desde que a personagem fique suficientemente caracterizada (p. ex. Timbal-Duclaux 1994, pp. 101-102). Luiz Antonio de Assis Brasil sugere uma divisão em elementos básicos (idade, situação financeira, preferências culturais, local onde mora, transportes que toma), questões mais profundas (sentimentos, sensações, fobias, crenças, o que espera dos outros, altuísta ou egoísta? opção sexual predominante, conservadora ou progressista? contradições que nem a própria personagem consegue explicar) e motivações (porque faz o que ela faz? o que quer da vida? porque age como age? qual o seu objectivo nessa história?).

Existe uma técnica da acumulação de indícios através de um narrador em 3.ª pessoa (Brait, p. 58), “simulando um registro contínuo, focalizando a personagem nos momentos precisos que interessam ao andamento da história e à materialização dos seres que a vivem” (Brait, p. 56). Não é preciso fazer a descrição física porque a leitora cria a sua própria imagem da personagem.

“O nome é um elemento importante na caracterização da personagem (...). O romancista declara em geral o nome da personagem logo que inicia o seu retrato, mas, por vezes, pode pintar esse retrato sem mencionar imediatamente o seu nome. Carlos de Oliveira abre o seu romance Uma abelha na chuva com um retrato inominado (...). O nome do personagem só será desvendado no capítulo seguinte. Obtém-se assim um efeito de expectativa, que prende e aguça a curiosidade do leitor. (...) O nome da personagem funciona como um indício, como se a relação entre o significante (nome) e o significado (conteúdo psicológico, idiológico, etc.) fosse motivada intrinsecamente. (...) Álvaro Silvestre, protagonista de Uma abelha na chuva, tem um apelido que denota e conota rusticidade, uma árvore genealógica de lavradores e labregos contraposta à linhagem dos Pessoas, Alvas e Sanchos, donde procede a mulher com quem casou; esta contraposição explica-se logo no capítulo III: 
«... ela própria se apresentou:
— Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho... Silvestre.
Destacou com ironia o sobrenome do marido.»
(...) Quando os retratos são inexistentes ou escassos, a personagem (...) adquire significação (...) através das suas palavras, dos seus actos e das suas oposições, diferenças e afinidades relativamente a outras personagens.” (Aguiar e Silva, pp. 704-706)

“[A] personagem usará um vocabulário e um tipo de frase que correspondam [à] formação escolar, vivências e leituras [dela], e não os que [o autor] usa. Esse aspecto costuma ser negligenciado.” (Assis Brasil, p. 233) “Para tornar verosímil uma descrição centrada numa personagem, o autor pode utilizar diversos artifícios: mudança de luminosidade (uma luz que se acende, o dia que desponta, o cair do crepúsculo, etc.), que obrigam ou convidam a personagem a reparar nos seres, nos objectos e nas paisagens; deambulação da personagem, com conseqüente descrição do que vai vendo; situação da personagem, ou na proximidade de uma janela que lhe permite ver o mundo exterior, ou num lugar de onde pode avistar um grande espaço (alto de um monte, cimo de um edifício); etc.” (Aguiar e Silva, p. 744). Como diz Assis Brasil (p. 303): “Você usa todos os sentidos em sua ficção? Quanto maior o número de sensações físicas experimentadas pelo personagem, mais o leitor acreditará nele.” Colocar a mesma personagem em situações diferentes ajuda a aprofundá-la (in EscreverEscrever, Personagens para ficção).

Stendhal: “Suponhamos que um estenógrafo se podia tornar invisível e manter-se um dia ao lado de M. Pétiet, escrevia tudo o que dissesse, anotava todos os seus gestos; um excelente actor, munido deste procès-verbal, poderia reproduzir-nos M. Pétiet tal como ele foi nesse dia. Mas, a menos que M. Pétiet tivesse um carácter muito notável e fizesse acções muito notáveis também, esse espectáculo só poderia interessar àqueles que o conhecessem” (citado por Bourneuf & Ouellet 1978, p. 251). “O raro é o infreqüente; o único é o que não se confunde com ninguém: o ficcionista deverá criar as suas personagens de modo que se exponham as características que as tornam únicas. Como fazer isso? Pela soma e sobreposição de atributos de mais variada natureza, em geral contrastantes, mas só aqueles que interessam à história.” (Assis Brasil 2019, p. 47) Eça caracteriza Maria Eduarda Runa como «uma linda morena, mimosa e um pouco adoentada», dois adjectivos positivos e suaves logo contrastados com uma característica negativa, inesperada — é este choque de realidade que faz existir a personagem (Marco Neves, Gramática). Contradições, sim, mas consistentes com a personagem e as circunstâncias.

As personagens, como se viu, só existem se agirem ou falarem, se interferirem no enredo e, para tal, precisarão de ter uma motivação para agir e um objectivo a atingir. “A consistência [da] personagem implica que [ela] possua uma questão essencial, anterior à própria narrativa e que seguirá com [ela] mesmo depois do ponto-final. Essa questão é que dará sentido e, de certo modo, provocará a história e, assim, o enredo.” (Assis Brasil 2019, p. 173) A questão essencial “é uma componente da personalidade que uma pessoa (e, portanto, [uma] personagem) carrega de modo permanente e, quase sempre, com intenso sofrimento” (Assis Brasil 2019, p. 104); é um problema, um assunto a ser resolvido, são dúvidas, embates internos e buscas que quase nunca resultam em algo de aproveitável — é necessária para deflagrar o conflito de maneira verosímil. A questão essencial é que leva à motivação  para atingir o objectivo, por exemplo: Hamlet é um jovem melancólico (questão essencial) que tem terrível obediência ao pai (motivação), o que o faz vingar o assassínio do pai (objectivo). Tudo o que acontece numa história deverá ter uma explicação de natureza literária, e esta reside na profundidade da personagem; acontecimentos aparentemente gratuitos são necessários tendo em conta a personagem (Assis Brasil 2019, p. 40).

Costuma dizer-se que as personagens mudam ao longo da história consoante o que lhes vai acontecendo: “no decorrer do enredo, a personagem age, envolve-se em complicações, tenta sair delas, (...) e isto tudo faz com que se transforme (resolva a sua questão essencial) ou que altere a sua atitude perante o conflito (perante a sua questão essencial)” (Assis Brasil 2019, p. 129). No fim da história a personagem está diferente (ou ao menos tem uma visão do seu mundo diferente daquela que tinha quando começou a história). A este percurso James Scott Bell chama «the character arc» (2004, pp. 141s), que equivale à estrutura do enredo (v. a postagem HISTÓRIA II), mas o que importa é que cada personagem tem uma hierarquia de valores desde os mais fundamentais até aos mais superficiais: crenças, valores, atitudes e opiniões. Se uma opinião muda, isso não afecta imediatamente as atitudes, mas se mudam várias isso já é capaz de mudar atitudes da personagem, e depois os valores e depois as crenças (as mais difíceis de mudar). Por outro lado, se uma personagem muda de crença, isto é, deixa de acreditar numa coisa e de repente passa a acreditar noutra, isso tem efeitos imediatos nos seus valores, nas suas atitudes e nas suas opiniões.

Bell (2004, pp. 149-150) sugere que um autor construa uma tabela onde possa seguir o percurso da personagem, começando por 1.º descrever a hierarquia de valores no início da história, 2.º descrever a hierarquia de valores no final da história (o que a personagem aprendeu, estando mudada), 3.º descrever como a hierarquia de valores vai mudando do início para o fim, criando episódios para desenvolver essa progressão numa sucessão lógica que leve a personagem ao estado mudado final. Não é o final da história que a leitora quer saber com minúcia — o que se deseja saber é o que acontecerá com as personagens!


2. As circunstâncias

• Espaços (físicos)
• Ambientes, habitat e clima
• Tempo da história (cronológico)
• Época histórica
• «Espaços e tempos psicológicos»

Noto que quase todos os autores que escrevem sobre teoria literária preferem falar em espaço (lugar onde decorre a acção) e em tempo da história (momento em que decorre a acção) separadamente, elementos da narrativa cada um. Mas, a meu ver, as personagens estão inseridas em mais do que o seu tempo e o seu espaço e, portanto, prefiro seguir certos autores anglo-saxónicos que incluem tudo o que circunda as personagens num só elemento: «the setting». Já para não falar de que existem diferentes tipos de tempo, como se viu antes, e de que se teriam de considerar como espaço coisas que de espaço não têm nada, como o clima (o que costumamos chamar de «tempo») ou o «espaço» social, o psicológico, os ambientes, etc...

Eu prefiro, portanto, chamar-lhes circunstâncias, no sentido dado ao termo por José Ortega y Gasset («Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo», nas Meditaciones del Quijote, 1914) porque é uma designação muito mais abrangente. 

Assim, as circunstâncias são o ambiente/ meio/ universo/ cenário/ setting/ envolvente/ atmosfera/ situação/ contexto/ espaço-tempo/ cronótopo das personagens e dos acontecimentos, das acções e dos conflitos. São circunstâncias psicológicas, morais, ideológicas, temporais, espaciais, etc. Fornecem indícios para o andamento do enredo.

“O efeito real é mais tributário da apresentação textual do que da realidade dos lugares e dos tempos” (Reuter 1997, p. 54). Tanto as indicações de espaço como as de tempo podem assumir funções de descrição das personagens (quem vive numa mansão não é, em princípio, um pobretanas) ou de facilitar ou dificultar a acção (a menos que estejamos no mundo da fantasia ou da ficção científica, ou que haja um plot device, não se demora 5 segundos a atravessar o oceano) (Reuter 1997, pp. 55 e 58).

“Espaços descritos com intencionalidade conduzem o leitor a perceber por si mesmo o estado emocional [das] personagens. (...) Flaubert e Eça: utilizando o espaço com intenções descritivas de estados emocionais ou morais, eles cooptam o leitor sem que seja preciso explicar as intenções de Rodolphe ou o sentimento de desonra experimentado por Luísa.” (Assis Brasil 2019, pp. 298-299)

Os espaços físicos ou geografia onde se passa a história, os lugares físicos exactos, os cenários, ex. rural ou urbano, aberto ou fechado, interior ou exterior, público ou privado; influenciam e são influenciados pelas acções das personagens ao longo do enredo. “Dois tipos de espaço: o que aprisiona as pessoas, e o que as lança na aventura. O 1.º é aprofundar a vida interior (é opressivo, um labirinto); o 2.º implica deslocações, mudanças de lugar (tornam sensível o escoar do tempo, ritmando-o, p. 139, ou trazem rupturas que fazem progredir a história; levam à felicidade)” (Bourneuf & Ouellet pp. 166-167).

Os ambientes sociais, familiares, demográficos são os aspectos ou condições sócio-económicas, morais e psicológicas, grupo social e condições de vida, meio cultural, meio civilizacional, etc. O habitat das personagens, “panoramas, luz, sombra, formas, planos, sentidos, distância em relação ao objecto, mudanças” (Bourneuf & Ouellet p. 157, «campos semânticos»). O clima (o que em português se chama «tempo»): sol ou chuva não significam o mesmo na história.

O tempo da história é o tempo cronológico, o tempo em que as acções acontecem, o tempo real que transcorre na ordem natural dos acontecimentos, do começo até ao fim da história; é mensurável em horas, dias, semanas, meses, anos, séculos, etc. Ainda se pode concretizar a época histórica ou «tempo histórico» (não confundir com tempo da história) na qual a história está inserida, ex. actualidade ou Idade Média.

“Personagens diferentes têm percepções diferentes do mesmo espaço e do mesmo tempo, porque o homem vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal, na atualidade, na eternidade do instante” (Assis Brasil 2019, pp. 287 e 320-321, citando Borges), e são estas percepções subjetivas, diferentes consoante a personagem e em consonância com o seu estado de espírito, que se chamam de «espaços e tempos psicológicos».

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.

sábado, 12 de março de 2022

A Narrativa de Ficção ― HISTÓRIA (II)

HISTÓRIA = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)

3. O enredo

• Acções e acontecimentos, intriga
• Movimento, conflito e tensão
• Verosimilhança e causalidade
• Série natural e série dramática
• Estrutura...

O enredo/ argumento/ roteiro é o conjunto das acções e dos acontecimentos numa história, isto é, as acções que as personagens executam e os eventos que lhes acontecem. Na língua portuguesa usamos sempre este vocabulário têxtil, «enredo/ intriga/ trama/ fio», o «desenrolar» dos acontecimentos, «enlace e desenlace», que faz lembrar uma coisa tecida; “enreda-se o fio das histórias”, diz Almeida Garrett (Viagens na minha terra, cap. XXXII).

Seguindo uma classificação muitas vezes encontrada, há acções principais, as de maior importância ou relevo, e acções secundárias, cuja importância se define em relação às principais, das quais dependem (relatam acontecimentos de menor relevância ou menos importantes); a intriga será o conjunto das acções e dos acontecimentos que se sucedem segundo um princípio de causalidade, com vista a um desenlace [poderia ser entendida como o somatório de todas as acções] (Veríssimo et al. 1998, p. 26). Carlos Reis (1978, p. 75) designa por «acção» apenas as acções abertas (sem conclusão clara, com continuidade possível), sendo a «intriga» equivalente a uma acção fechada (onde os acontecimentos se sucedem por causalidade e acabam num acontecimento final sem continuidade possível — o desenlace).

Dito isto, eu observo que a palavra «intriga» se usa muitas vezes como sinónimo de «acção principal» ou mesmo de «enredo», enquanto que o conceito anglo-saxónico de «plot» é tanto traduzido por enredo, como por intriga sensu stricto (acção fechada). Também se encontra (até em especialistas, mesmo depois do Discours du récit de Genette) uma confusão entre o enredo da história e o discurso da narrativa, por exemplo: “O enredo (ou intriga, no sentido dos formalistas russos) não é a fábula [a história], mas a elaboração estética do que diz a fábula [a história]” (Mesquita 1987, p. 22) — ora, a elaboração estética da história é do domínio do discurso como expressão da história, como se viu atrás, e nada tem a ver com o enredo. A linguagem no domínio do enredo é bastante ambígua e, classificações teóricas à parte, eu, aqui neste texto, decidi usar as palavras «enredo, intriga, acções, plot» como sinónimos, significando o conjunto das acções e dos acontecimentos de uma história, como disse no início.

“A intriga [o enredo] repousa sobre a noção fundamental de movimento, de mudança a partir de uma dada situação e sob a influência de certas forças” (Bourneuf & Ouellet 1972, p. 52). Como se viu atrás, uma personagem tem um objectivo, que é qualquer coisa de crucial para si. O enredo será, acima de tudo, o confronto entre personagem e forças opositoras (outras personagens, o ambiente, luta psicológica, etc.), um conflito que dificulte que o objectivo seja atingido, prendendo a atenção das leitoras (que crie a expectativa sobre como é que o conflito será resolvido e o objectivo de personagem atingido). No final, terá de haver uma resolução satisfatória tanto para o universo da história como para as leitoras (Bell 2004, p. 33; Gancho 2006, p. 13; Assis Brasil 2019, p. 178).

São, portanto, factores externos contrários ao objectivo da personagem que potenciam o conflito do enredo (Assis Brasil 2019, p. 188). O conflito deriva da necessidade de uma escolha — mas a personagem tem de ser livre para escolher (Assis Brasil 2019, p. 173); e tem de fazer sentido com a biografia e a personalidade da personagem — “[ela] age de certo maneira em face de determinadas circunstâncias, de acordo com as suas emoções, contradições e perplexidades antes constituídas” (Assis Brasil 2019, p. 108).  

O conflito “cresce durante a [história] e se acumula na interioridade [da] personagem — e, enquanto isso, nós, os leitores, por contágio, somos submetidos a uma tensão crescente” (Assis Brasil 2019, p. 180) que nos faz seguir adiante na leitura. “O conflito é da história, mas a tensão é do leitor (Assis Brasil 2019, p. 122)”. “A tensão aumenta se chegar uma personagem nova, se houver um acontecimento carregado de conseqüências, se houver a ameaça de um perigo ou um acto brutal; a tensão distende-se pelo escoar de um lapso de tempo vazio ou pela intervenção de factores que regulem o conflito” (Bourneuf & Ouellet 1972, p. 52).

Não esquecer que as personagens secundárias também têm questões essenciais e conflitos, mas estes não precisam de ser desenvolvidos nem resolvidos no final (Assis Brasil 2019, p. 167). “Quanto maior o número de personagens que tenham sua intimidade revelada, mais fraco se torna o conflito” (Assis Brasil 2019, p. 252).

A verosimilhança é o que torna o enredo convincente, verdadeiro para o leitor; não tem de ser a verdade, mas sim a ilusão da verdade, isto é, coisas que o leitor acredita que poderiam ser verdade (Gancho 2006, p. 12); é a famosa «willing suspension of disbelief» de Samuel Taylor Coleridge (Biographia Literaria, published in 1817, Chapter XIV). Um excelente exemplo de Luiz Antonio de Assis Brasil (2019, p. 185): “Se [a] personagem morre de tuberculose pulmonar no 10.º capítulo, deve ter tossido um pouco no 4.º capítulo, ter baixado no hospital no 7.º, até morrer naturalmente no 10.º. Isso é que convence o leitor.” Bell (2004, pp. 215-216) também diz que, se se vai usar uma arma no 3.º acto, é bom que esteja uma à mão no 1.º (isto é o contrário do velho plot device «Tchekhov’s gun», que diz que se uma arma está presente no 1.º acto, tem absolutamente de ser usada no 3.º).

“Levando às últimas conseqüências essa idéia, se o romancista fantasia uma história transcorrida no século XVIII, estará fugindo à «verdade» da obra se, de repente, a personagem se move de um ponto a outro de automóvel ou de avião. Todavia, se tudo o mais da narrativa seguir na mesma trilha de absurdo ou de inverossimilhança (em relação com o mundo real), a obra será perfeitamente verossímil: verossimilmente inverossímil, dir-se-ia.” (Moisés 1969, Análise, p. 91)

A causalidade é o que torna a organização lógica do enredo credível: cada acontecimento ou acção tem de ter uma causa e tem de desencadear uma conseqüência. Apesar de Rimmon (2002, p. 20) dizer que nem sempre é preciso causalidade para fazer um enredo, na prática qualquer leitor poderá notar que nas boas histórias “não há evento sem motivo que o provoque (causa e efeito)” (Assis Brasil 2019, p. 175). Organização das acções para formar uma história (Reuter 1997, p. 31):
1. A acção A é a causa da acção B [relação lógica]; 
2. A acção A precede a acção B [relação cronológica];
3. A acção A é mais importante do que a acção B [relação hierárquica].

Na prática, o enredo de uma história envolve dois tipos de acções ou acontecimentos a que Knight (1981, pp. 90-91) chama de série natural e de série dramática. A primeira é composta por coisas como acordar e levantar-se de manhã, tomar o pequeno-almoço («dejuar», como diz Carlos de Oliveira em Casa na Duna), ir trabalhar, conversar com amigos, falar ao telefone, ver o correio, fazer compras, etc., isto é, coisas que expandem, amplificam, mantém ou retardam o enredo. 

A segunda é composta apenas e só pelas acções ou acontecimentos que formam uma série conexa e com sentido, isto é, aqueles que avançam o enredo oferecendo uma alternativa (Rimmon 2002, p. 17). Se um telefone toca, uma personagem pode atender ou não: existe uma alternativa! Mas se, entre o telefone tocar e o ela atender (ou a decisão de não atender), a personagem coçar a cabeça, acender um cigarro, disser asneiras, etc., estas acções não oferecem alternativas, são naturais, apenas acompanham o acontecimento dramático dando-lhe suporte, ênfase.

Acções ou acontecimentos naturais são necessários para criar uma ilusão da realidade e para fazer a ponte entre duas acções ou acontecimentos dramáticos. Acções ou acontecimentos dramáticos devem ser plausíveis (verosimilhança); as normais não ― a história pode ser baseada num incidente real e ser implausível mesmo assim. Coincidências fazem parte da série natural, não da série dramática (causalidade).

Os teóricos chamam aos acontecimentos dramáticos «núcleos» (kernels) e aos normais «catalisadores» (Barthes 1966, pp. 9-10; Chatman 1969, pp. 3 e 14-19; Chatman 1978 chama aos segundos «satélites»; in Rimmon 2002, p. 17). Também fàcilmente se vê que as acções naturais são as secundárias e as dramáticas as principais, portanto não sei se estes conceitos teóricos terão muita utilidade prática: uma vez entendida a diferença, qualquer nomenclatura serve.

• Esquema mínimo: exposição, complicação, clímax, desfecho
• Pirâmide de Freytag, arco narrativo, estrutura em três actos
• «Jornada do herói»: distúrbio e pontos de viragem
• Enredos paralelos, subenredos, tipologias
• Episódios, intensidade dramática
• Enredos básicos, expedientes dramáticos

A estrutura do enredo é a organização («the orderly arrangement») das etapas [episódios] da história (Bell 2004, p. 22), a distribuição dos episódios segundo o fio de uma intriga (Bourneuf & Ouellet 1978, p. 99). [Ainda que Timbal-Duclaux (1994, p. 69) diga que a estrutura não é a intriga/enredo, e que é preciso distinguir entre as peripécias e a estrutura subjacente que as sustém, na prática o enredo tem de ter uma estrutura, ponto final.] C. S. Lewis disse: “Whatever in a work of art is not used, is doing harm”; conseqüentemente, “anything that is used, anything that connects two or more parts of a story, strengthens it” (citado por Knight 1981, p. 87). Isto liga-se bem com a verosimilhança que se viu atrás, mas, mais uma vez, lembro que é preciso não confundir o enredo da história com o discurso da narrativa.

Qualquer enredo tem de ter princípio, meio e fim, com um ponto culminante perto do final. Há quem diga que o melhor é esquecer esta tríade; eu, pelo contrário, acho que é uma excelente base para estruturar qualquer coisa, incluindo um enredo. Os momentos de um esquema mínimo para um enredo são, portanto (Gancho 2006, pp. 13-15; Moreira & Pimenta 1999, p. 315):

1. exposição (princípio, situação inicial, apresentação), apresentação da situação inicial, das personagens e suas intenções, do ambiente e obstáculos; situa o leitor perante a história que vai ler; freqüentemente, mas não sempre, aparece no começo da narrativa.
2. complicação (meio, peripécias, desenvolvimento), desenvolvimento do(s) conflito(s) geralmente num crescendo até ao clímax; corresponde ao grosso do enredo, à maior parte da história.
3. clímax (ponto culminante), momento culminante do enredo da história, momento em que o(s) conflito(s) atinge(m) o ponto de maior tensão; as outras partes da estrutura convergem para ou divergem do clímax.
4. desfecho (fim, desenlace, dénouement), resolução do(s) conflito(s), final feliz ou infeliz, esperado ou surpreendente, cómico ou trágico, etc.

Exemplo (conto ‘Um homem de consciência’ de Monteiro Lobato, em Cidades Mortas):
• exposição ― 1.º parágrafo
• desenvolvimento ― do 2.º ao 13.º parágrafos
\ complicação ― 7.º e 8.º parágrafos
\ clímax ― 9.º parágrafo
• desfecho ― 14.º parágrafo
[Nota: os parágrafos 2-6 e 10-13 são passagens.]

O esquema canónico da «narrativa mínima» (v. Reuter 1997, pp. 36-37; também DR p.75 e NDR p. 14) será este: Estado inicial (equilíbrio) > Complicação (força perturbadora) > Encadeamento de acções (desequilíbrio) > Resolução (força equilibradora) > Estado final (reequilíbrio). É Tzvetan Todorov que prefere equilíbrio > desequilíbrio > reequilíbrio. Este esquema também é chamado de pirâmide dramática ou de Freytag e é apenas uma base que será manipulada de muitas maneiras pelo discurso para obter certos efeitos no leitor.

Expandindo o esquema mínimo, chega-se ao arco narrativo (v. João Tordo 2020, pp. 89-99, onde ele parte de Aristóteles e Freytag para o explicar, usando O Homem Duplicado de Saramago e O Velho e o Mar de Hemingway para exemplificar): Exposição (situação inicial) > incidente ou distúrbio > húbris (audácia, atrevimento) do protagonista > sucessivas complicações e pontos de viragem > peripécia (revés da fortuna do protagonista) > o enredo suscita no leitor piedade (pela situação difícil do protagonista) e medo (de que o protagonista não consiga aquilo que quer) > empatia (o leitor alinha-se com o protagonista) > clímax > catarse (purga do medo e da piedade) > desfecho («novo normal»).

Organizando as partes do arco, temos a estrutura em três actos, com origem no teatro e muito usada no cinema (Bell 2004, p. 32), que apresento aqui segundo o esquema já clássico da «jornada do herói» (The Hero’s Journey, do livro The Hero with a Thousand Faces de Joseph Campbell, 1949, onde este académico disserta sobre o arquétipo do herói, que ele encontrou aquando dos seus trabalhos de mitologia comparada nos mitos de diversas sociedades):

(Bell 2004, pp. 23 e 26)
Acto I. A personagem-heroína é confrontada com um problema, ao qual reage.
[ 1 ] A personagem-heroína e o seu mundo são apresentados aos leitores [exposição].
[ 2 ] Um distúrbio interrompe o mundo da personagem-heroína.
[ 3 ] A personagem-heroína é livre para escolher e pode ignorar esse distúrbio.
[ 4 ] A personagem-heroína não ignora o distúrbio e «atravessa o limiar» (1.º ponto de viragem) para um mundo desconhecido.
Act II. A personagem-heroína passa a maior parte do tempo em busca de uma solução para o problema e a tentar resolvê-lo.
[ 5 ] Um mentor/orientador pode aparecer para ensinar a personagem-heroína.
[ 6 ] Ocorrem vários encontros com forças adversas [complicações].
[ 7 ] A personagem-heroína tem um momento de negação e problemas de consciência que deve ultrapassar.
[ 8 ] É encontrado um talismã que vai ajudar na solução do problema (2.º ponto de viragem).
Acto III. A personagem-heroína consegue, finalmente, resolver o problema.
[ 9 ] A última batalha [clímax].
[10] A personagem-heroína regressa ao seu mundo [desenlace].

O distúrbio ou incidente faz o leitor ficar interessado porque é uma promessa implícita de que a história vai ser interessante. Não é ainda a intriga principal porque não há conflito. Exemplos de distúrbios:
• Um telefonema a meio da noite;
• Uma carta com notícias inesperadas;
• A chefe chama a personagem ao seu gabinete;
• Uma criança é levada para o hospital;
• Um carro avaria no meio duma cidade estranha;
• A personagem-heroína ganha a lotaria;
• Uma personagem testemunha um acidente ou um crime;
• Uma nota da mulher da personagem-heroína...

Os pontos de viragem (ou de virada/ de inflexão/ de transição) são as transições entre os actos, os acontecimentos que forçam a personagem-heroína a agir de maneira diferente. “Somos criaturas de hábitos; procuramos segurança. (...) A não ser que haja alguma coisa que empurre a personagem-heroína para o acto II, ela vai ficar alegremente no acto I! Ela deseja permanecer no seu mundo normal.” (Bell 2004, p. 28) O 1.º ponto de viragem é a transição entre o Acto I e o Acto II; tem de haver um momento em que personagem-heroína seja empurrada para o conflito sem escapatória possível; não poderá haver retorno ao normal, ao que era antes deste momento ― se ainda for possível regressar, não é o ponto de viragem. O 2.º ponto de viragem é a transição entre o Acto II e o Acto III; algo tem de acontecer para desencadear o confronto final — uma pista ou uma descoberta. A diferença entre um distúrbio e um ponto de viragem é que um distúrbio não leva necessàriamente a um confronto, enquanto que um ponto de viragem leva ao conflito e a personagem-heroína não pode voltar atrás.

Acto I. O mundo normal da personagem-heroína, um lugar seguro e sossegado. Pode ter problemas, mas não dos que trazem grandes mudanças. A personagem está ali bem. Alguma coisa tem de acontecer para a empurrar para o conflito
> 1.º ponto de viragem 
Acto II. O mundo exterior, o desconhecido, um lugar onde a personagem-heroína vai ter de buscar coragem, de aprender coisas novas, de fazer aliados, etc. A personagem-heroína defronta-se com obstáculos e adversidades. O acto II pode continuar indefinidamente a não ser que algo aconteça para abrir a porta para o clímax
> 2.º ponto de viragem
Acto III. Deste lado, a personagem-heroína tem de juntar as suas forças para a «batalha final» ou «escolha final» que vai resolver o problema para a história acabar.
(Bell 2004, pp. 29 e 31)

Fàcilmente se vê que o esquema mínimo, a pirâmide de Freytag, o arco narrativo, a estrutura em três actos, etc., são tudo a mesma coisa, expansões ou variações da simples estrutura em princípio, meio e fim, com ênfase nos pontos de transição entre eles e no ponto culminante. “Mastering structure and transitions will make your novels more accessible even if you choose to deviate from a linear unfolding” (Bell 2004, p. 33).

A partir daqui, pode-se aumentar a complexidade da história adicionando enredos paralelos (duas ou mais personagens principais), subenredos (vários conflitos), símbolos e motivos (ligados ao tema, como se viu atrás), ou jogando com tipologias reconhecíveis (histórias de aventura, amor, vingança, demanda, perseguição, poder, alegoria, um-contra-todos, policial, thriller, ficção científica e fantasia, etc.) com estruturas que se podem «roubar» das grandes obras da literatura universal (Bell 2004, pp. 130s e 180s): ir buscar ao mitos greco-romanos e à Bíblia, reescrever a mesma história mas com um ponto de arranque diferente, ou uma circunstância diferente (Carvalho, p. 107). 

“Eis um esquema narrativo muito banal, que, consoante a colocação do «acento», pode dar um a) enigma policial, b) um folhetim sentimental, c) uns sonhos para os nostálgicos do exotismo, d) uma meditação sobre a morte e o destino, e) uma reconstituição histórica, ou f) um retracto da sociedade: 1) um marinheiro, 2) a mulher que ele ama, 3) rivais. São, no fundo, os elementos da Odisseia, que se prestam a inúmeras variações.” (Bourneuf & Ouellet 1978, p. 36)

Podem chamar-se episódios às etapas ou partes do enredo (James Scott Bell 2004, pp. 113s, chama-lhes «scenes», mas aqui eu vou reservar a palavra «cena» para uma figura do discurso, como se verá na postagem DISCURSO I). Os episódios ilustram e dramatizam os conflitos interiores e/ou exteriores das personagens, que um bom enredo explorará. Bell (2004, pp. 115-119) considera que cada episódio se desenvolve pelo contraste acção/reacção: uma personagem age para tentar atingir o seu objectivo, mas é frustrada pelo conflito e reage a este desenvolvimento (toma outra decisão, age de outra maneira, etc.). A acção da personagem é comummente ilustrada por cenas dialogadas, enquanto a sua reacção pode conter pausas descritivas ou reflexivas; a leitora deve ficar presa no início do episódio, ir sentindo a tensão crescente e, no fim do episódio, querer continuar a ler o que se segue. Tudo isto tem de ser suportado por um bom enquadramento nas circunstâncias. 

Pode-se visualizar a tensão criada na leitora usando um gráfico do agravamento do conflito ou da intensidade dramática (medida qualitativamente) ao longo do tempo da história (Knight 1981, pp. 87-90; esquemas adaptados de Timbal-Duclaux 1994, p. 71). Uma boa estrutura (esquema 1) é a que mantém a leitora atenta até ao fim, num crescendo de tensão, o que se consegue com episódios sucessivos de crescente intensidade dramática até ao clímax.

Esquema 1. Boa estrutura do enredo.

Uma má estrutura (esquema 2) é aquela que cai num «buraco» de intensidade dramática «abaixo de zero» (ponto B). A autora não terá interesse em seguir o tempo da história (v. postagem DISCURSO I), mas em começar o discurso da narrativa no ponto C e só depois evocar o ponto A em analepse (e apenas se for estritamente necessário para se compreender a história), na ordem C>A>D ou C>D>A. O episódio B, sem interesse dramático, será mencionado nalgumas rápidas linhas de resumo ou suprimido de todo.

Esquema 2. Má estrutura do enredo.

Vários teóricos se debruçaram sobre se existem enredos básicos, isto é, se se consegue categorizar todos os enredos jamais concebidos literàriamente em estruturas reconhecíveis. Para além da «jornada do herói», e com critérios nem sempre muito claros, eis os resultados
 • os três padrões básicos de William Foster-Harris (enredo cómico [happy ending], enredo trágico [unhappy ending] e enredo complexo [literary plot, isto é, todos os outros...]; em The Basic Patterns of Plot, 1959); 
 • os sete (na verdade nove) enredos básicos de Christopher Booker (The Seven Basic Plots, 2004); 
• os vinte enredos básicos de Ronald B. Tobias (20 Master Plots, 1993); 
• as trinta e seis situações dramáticas de Georges Polti (Les 36 situations dramatiques, 1895), que disse que fôra influenciado por Carlo Gozzi e Johann Wolfgang von Goethe. 

Estruturas mais — ou mesmo muito mais — complexas existem, como, por exemplo, a formalização do enredo dos contos de fadas por Propp, em 31 funções (!) difíceis de aplicar a outras narrativas para além das que ele estudou; ou as teorias de Hamon, Greimas ou van Dijk (v. Reis & Lopes 1987).

Para construir o enredo, fazer bem as transições e criar tensão, existem expedientes dramáticos que eu aqui classifico empìricamente em dois tipos, um helénico, outro anglo-saxónico: topoi e plot devices. Um topos (do grego antigo τόπος κοινός, tópos koinós, «lugar comum»; ou em latim locus communis) é um tema recorrente, uma fórmula literária usada já desde o teatro antigo e a retórica clássica (originalmente um argumento retórico), e fàcilmente reconhecível para ajudar o enredo. Eis alguns dos topoi literários mais conhecidos e mais encontrados em diferentes épocas, culturas e literaturas:

1. A profecia e a profecia autocumprida.
2. A descida aos infernos ou catábase.
3. O dilúvio (desde a epopeia de Gilgamesh).
4. O elixir da eterna juventude.
5. O idílio.
6. O impulso da morte, o amor como morte (Eros e Tanatos).
7. O jardim fechado (hortus conclusus) ou aberto.
8. O locus amœnus (o mundo imaginário da Arcádia).
9. O locus horridus (o inferno de Dante).
10. O manuscrito encontrado (Il nome della rosa).
11. O mundo ao contrário.
12. A viagem de retorno à pátria (Odisseia).
13. A anagnórise: revelação final do parentesco entre personagens (Œdipus Rex, ou Darth Vader e Luke Skywalker).
14. A fórmula de modéstia (captatio benevolentiæ).
15. A idade de ouro.
16. A invocação dos deuses ou das musas.
17. A ilha (como espaço representativo do paraíso terrestre).
18. A noite perigosa.
19. O filho pródigo
20. Os mitos da criação.
21. O destino inexorável.
22. A cena do primeiro encontro amoroso.
23. A declaração de amor (num conto).
24. A narrativa do nascimento (numa autobiografia).
25. O triângulo amoroso.
26. A demanda (the quest).
27. O disfarce, a falsa morte, o falso fim.

Com os grandes romancistas do século XIX e, penso eu, com o aparecimento do cinema, novos topoi foram surgindo para suprir às novas necessidades dramáticas. São mais conhecidos pela expressão inglesa plot devices (ou plot twists), de difícil tradução. “A plot device is a storytelling tool or technique that is used to propel a narrative, used to move the plot forward. A well-written plot device can be deeply satisfying to a reader or audience member. Keep in mind that a plot device does not need to be complicated. A skilled novelist or screenwriter does not select a plot device based on its complexity; they select it based on its storytelling potential.

Eis alguns dos plot devices mais usados, principalmente nos enredos de acção (thrillers); mantenho quase todas as designações originais em grego, latim ou inglês, quer por não encontrar tradução satisfatória para umas, quer por encontrar outras usadas sempre nessas línguas; os grupos são quási-aleatórios, mas o primeiro grupo leva os mais curiosos ou sui generis:

Cliffhanger; Death trap; Deus ex machina; Doppelganger, or twin; MacGuffin; Plot voucher; Quibble; Red herring; Tchekhov’s gun;

• Antropomorfismo; Contraponto dramático; Falácia patética; Hamartia, ou falha trágica; Realismo mágico; Pastiche; Personagem morre no início; Projecção psicológica;

Audience surrogate; Author surrogate; Breaking the fourth wall (caso particular de metalepse); Defamiliarization; Distancing effect; Dramatic visualization; Eucatastrophe; Foreshadowing;  Framing device; Multiperspectivity;  

Bathos; Narrative hook; Non sequitur; Pathos; Plot twist; Thematic patterning; Poetic justice; Predestination paradox; Ticking time bomb, or race against time; Unreliable narrator.

Há ainda certas técnicas que são freqüentemente usadas, por exemplo, a das telenovelas (história infinita, parece que nunca acaba porque há sempre lugar para novos episódios) ou o chamado «começar no 2.º capítulo» (porque o 1.º costuma ser cheio de descrição e a acção só começa realmente no 2.º). Como regra técnica, é sempre bom antecipar o que lògicamente uma personagem poderá fazer a seguir, e pô-la a fazer o contrário — o inesperado!

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.

quinta-feira, 3 de março de 2022

A Narrativa de Ficção ― DISCURSO (I)

DISCURSO = enunciado, texto (expressão da história)

1. Tempo do discurso: Ordem (anacronias)

• Analepse e prolepse
• Alcance e amplitude
• Silepse

Para designar as diferentes formas de desacordo entre a ordem dos acontecimentos na história e a ordem dos mesmos acontecimentos no discurso (DR p. 79), Genette usou o neologismo «anacronias»; subentende-se que nos casos em que a ordem no discurso corresponda exactamente à ordem na história dir-se-á «acronia» (mas, como lembra Aguiar e Silva p. 751, a coincidência perfeita entre ambos provàvelmente não existe). As anacronias são duas: 

analepse  ou «flashback», a retrospecção, no discurso, de acontecimentos na história que deveriam ter sido narrados mais cedo; é típica de discursos que começam in medias res (isto é, uma narração que põe o discurso a começar a meio da história) ou in ultimas res (começar no final da história); pode ser declarada pelo narrador («É necessário recuar», diz o narrador), ou não declarada, confundindo temporalidades distintas (Aguiar e Silva, pp. 752-754).

prolepse ou «flashforward», a antecipação, no discurso, de acontecimentos na história que só deveriam ser narrados mais tarde («Um dia, faltam mais de quatro meses, o Osório há-de dizer ao Alpoim...», Enseada amena, de Augusto Abelaira); é mais rara que a analepse (Aguiar e Silva, pp. 754-755).

Exemplo de análise da microestrutura da ordem temporal (DR p. 83):
    analepse     _________analepse_________
A2     [B1] C2    [D1    (E2) F1 (G2)    H1]    I2
                     prolepse     prolepse
Posições temporais na história: 1 passado, 2 presente
Posições temporais no discurso: segmentos de A a I em sucessão

Outro exemplo de análise da microestrutura (DR p. 85):
ana.    __________________grande analepse____________________
A4 [B3] [C5–D6 (E3) F6 (G3) (H1) (I7 [J3] [K8 (L2 [M9])]) N6] O4
                 elipse      pro.            pro.     pro.    ¯¯¯¯¯grande prolepse¯¯¯¯¯
Posições na história: 9 posições (o presente é o 4; vários passados e futuros)
Posições no discurso: 15 segmentos de A a O em sucessão

Genette introduziu os termos alcance (portée; eu uso aqui a tradução de Reis & Lopes 1987, que é também a de Fernando Cabral Martins e Maria Alzira Seixo 1979; em inglês fica reach) e amplitude: a primeira descreve a projecção de uma anacronia num tempo mais ou menos longe do presente (quer para o passado, quer para o futuro); a segunda refere-se à sua duração mais ou menos longa (DR pp. 89-90).

Tomando mão destes dois conceitos, Genette produziu uma completíssima taxonomia das analepses (DR pp. 90s) e das prolepses (DR pp. 105s), que eu não vou descrever aqui em pormenor, bastando mencionar que, quanto a questões de alcance, analepses seriam externas ou internas (estas, por sua vez, poderiam ser heterodiegéticas, homodiegéticas completivas ou homodiegéticas repetitivas) e quanto a questões de amplitude seriam completas ou parciais. As prolepses seguiriam a mesma nomenclatura. No glossário das páginas 279-282 esta nomenclatura taxonómica está mais clara do que no texto corrido.

As anacronias poderiam ainda ser «complexas» quando misturadas uma na outra em «analepses prolépticas» e «prolepses analépticas», isto é, quando numa analepse há uma antecipação do futuro e numa prolepse uma breve volta ao passado (DR p. 119). Genette considera ainda a possibilidade de uma analepse ser «aberta», ou seja, cujo término não é evidente (DR p. 119). 

Genette ainda foi inventar o conceito de silepse, que seria o conjunto de todos as partes do discurso que versassem sobre o mesmo assunto: silepse temporal (todos os segmentos anacrónicos), geográfica (todos os segmentos que tenham a ver com espaço; de viagens, por exemplo), temática (todos os segmentos com o mesmo tema), etc. Outro conceito que terá pouca ou nenhuma utilidade na prática...


2. Tempo do discurso: Velocidade (anisocronias)

• Elipse
• Resumo
• Cena
• Expansão
• Pausa

Velocidade define-se matemàticamente como a relação entre uma medida temporal e uma medida espacial. Foi, portanto, esse termo que Genette preferiu (NDR p. 23, ainda que anteriormente lhe tivesse chamado «duração» DR pp. 122s) para designar a relação entre a duração da história (medida em segundos, dias, meses, anos, etc.) e a duração [= comprimento ou longura ou extensão ou demora ou delonga] do texto (medida em linhas, parágrafos e páginas) (DR p. 123).

Em princípio, o discurso da narrativa reparte-se e organiza-se numa diversidade infinita de velocidades. No entanto, cinco andamentos são claramente individualizáveis: a elipse, o resumo, a expansão, a pausa (às quais Genette atribuiu o neologismo «anisocronias») e a cena (que seria, então, a «isocronia»). Existe uma gradação nestes andamentos consoante o tempo do discurso (TD) se aproxima ou afasta do tempo da história (TH):

>>> >>> gradação (DR pp. 128-130) <<< <<<
Elipse Resumo         Cena [Expansão] Pausa
TD = 0 TD < TH TD = TH        [TD > TH] TD = ∞
TH = ∞                                 TH = 0
(TD <<< TH) (TD ≃ TH)         (TD >>> TH)

A elipse e o resumo equivalem a uma redução do tempo do discurso em relação ao tempo da história, enquanto a expansão e a pausa equivalem a um aumento; a cena seria a igualdade. Pausa e elipse opõem-se; resumo (diegesis) e cena (mimesis, v. o modo Distância, na postagem DISCURSO II) opõem-se.

Uma elipse poderá ser determinada ou indeterminada, explícita ou implícita, qualificada ou hipotética, segundo Genette (DR pp. 139s). Elipses são fragmentos breves do discurso em que se “exclui determinados acontecimentos diegéticos, dando origem a vazios narrativos (saltos temporais ou espaciais, omissões: «Dias depois...», «Passados três anos...»; «Noutra cidade...», «Entretanto, na casa ao lado...»; TH = ∞, TD = 0). O narrador pode informar o leitor de que omitiu factos por irrelevantes, monótonos, maçadores, escabrosos, etc. («De propósito, saltamos por cima dos pormenores da partida...» diz o narrador em A queda dum anjo de Camilo); outras vezes a elipse não é assinalada e é intencionalmente deixada ao leitor a reconstituição do que foi omitido, baseando-se nas poucas informações que o texto lhe oferece (típico do romance contemporâneo)” (Aguiar e Silva p. 757). Serve para acelerar o ritmo, para não ter de fornecer à leitora informações desnecessárias, para adiar a narração de certos acontecimentos (criando suspense), para aproximar duas cenas separadas pelo tempo, ou para mudar de tema (Sabarich & Dintel, 2001).

O resumo (summary em inglês, língua em que o termo foi proposto primeiro, e cuja tradução, quer para francês quer para português, não é «sumário», mas «resumo», mal haja a escolha de Genette DR p. 129) poderá ser, por exemplo, “a narração em poucos parágrafos de muitos dias ou anos de existência (TD < TH), sem detalhe de acção ou de falas” (DR pp. 130s). Não recria detalhadamente um trecho da história; usa termos abstractos, qualificativos, catalogação; e serve para acelerar o ritmo, para oferecer informação relevante mas que não merece tornar-se uma cena, ou para fazer a transição entre duas cenas (Sabarich & Dintel, 2001).

A cena é uma “concentração dramática, desimpedida de descrições ou digressões, e de interferências anacrónicas” (DR p. 142). A cena isócrona pura teria uma velocidade não só igual à história, mas também constante, isto é, sem acelerações nem desacelerações em relação à história (TD = TH): «Este diálogo, que parece estirado, correu em menos de quatro minutos» diz o narrador em Agulha em palheiro de Camilo, e se lermos o tal diálogo em voz alta, cronometrando, verificamos que dura efectivamente pouco mais de três minutos. Na prática isto é raro acontecer porque o discurso não regista a cadência da fala nem as hesitações (TD ≃ TH) (DR p. 123; Aguiar e Silva pp. 755-756). Construir uma cena é recriar minuciosamente um momento da história com forte visualização (usa imagens, diálogos), para que a leitora tenha a impressão de que se desenrola diante dos seus olhos (Reuter 1997, p. 61). De acordo com Sabarich & Dintel (2001), uma cena tem sempre três elementos: moldura (frame, os elementos fixos do cenário: móveis, paredes, janelas, paisagem, etc.), atmosfera (elementos variáveis do cenário: luz, temperatura, sons, aromas, etc.) e acção (o que acontece: qualquer movimento, pensamento, diálogo, etc.). “A reprodução fiel do diálogo entre as personagens implica a utilização do discurso (...) directo: surge então a cena, momento de dramatização da narrativa [mimesis] que constitui a tentativa mais aproximada de imitação, no plano do discurso, da duração dos eventos diegéticos [isocronia]” (Reis & Lopes 1988, p. 236). Serve para criar a ilusão de que a narração avança em tempo real, ou para caracterizar as personagens a partir das suas próprias acções, palavras ou pensamentos (Sabarich & Dintel, 2001).

Para Genette, a expansão não é um andamento canónico, entrando fàcilmente dentro da cena dialogada (“uma espécie de cena lenta”, DR p. 130). Chatman, porém, considera (acertadamente, a meu ver) que “é preciso mais tempo para dizer os pensamentos do que para os pensar” (TD > TH) (v. Reis 2018, p. 147, sob a designação de «extensão»), o que implica que expansão seja diferente tanto da cena como da pausa. O próprio Genette diz que a expansão, apesar de tudo, é perfeitamente realizável.

Uma pausa pode ser descritiva, mas também pode ser constituída por intrusões do narrador, por reflexões ou digressões (de uma personagem ou por intervenções do narrador) (DR pp. 128-129 notas) que suspendem a progressão da história (TH = 0, TD = ∞), por exemplo, para relatar seqüências no tempo psicológico e podem corresponder de facto a uma segunda história inserida na principal (Aguiar e Silva, p. 758) ou acções secundárias (como viagens ou deslocações), ou caracterização de personagens secundárias, repetição de informações (as três chaves no conto O Tesouro do Eça poderiam ser só uma). “Uma das técnicas que um autor pode utilizar para se demorar ou diminuir a velocidade é a que permite ao leitor dar «passeios inferenciais»” (Eco, Seis passeios, 3.º passeio, pp. 47s). Serve para desacelerar o ritmo, para recriar a moldura e a atmosfera em que se desenvolve a acção, ou para focar a atenção do leitor num objecto ou em algum outro elemento do cenário, ou para dar ênfase aos pensamentos do narrador ou da personagem (Sabarich & Dintel, 2001).

Nos romances clássicos (de épocas anteriores à publicação de À la recherche du temps perdu de Marcel Proust, que Genette estuda ao longo do seu DR), a oposição fazia-se sobretudo entre cena detalhada/dialogada e resumo, isto é, entre conteúdo dramático e conteúdo não dramático: “o verdadeiro ritmo do cânone romanesco (...) é a alternância de resumos não dramáticos (com função de espera e de ligação) e de cenas dramáticas cujo papel na acção [no enredo do romance] é decisivo” (DR p. 142). 

Ainda hoje, alternando resumos e cenas evita-se que uma narração se torne monótona. Decidir quais os trechos da história que devem aparecer resumidos e quais encenados depende da importância da informação que se desejar dar a cada trecho (Sabarich & Dintel, 2001). Por meio de acelerações e desacelerações o autor pode criar angústia, suspense, tensão ou acalmia no leitor, etc. Daí a oposição entre narrativas de acção (aceleração ou igualdade entre tempos) e narrativas psicológicas (descritivas ou explicativas; lentas) (Reuter 1997, pp. 88s).

Em termos do ritmo de leitura, e segundo aconselham Sabarich & Dintel (2001), para que seja lento é preciso: introduzir pausas; empregar orações subordinadas ou pelo menos frases mais longas; empregar o pretérito imperfeito, indicando acção em processo de realização ou não concluída; empregar verbos de estado (ser, estar, ter) e o menor número possível de verbos de acção; recorrer a palavras que transmitam a ideia de lentidão; introduzir figuras retóricas como a analogia e a comparação. Para que seja rápido é preciso: empregar frases curtas; empregar orações coordenadas (evitando as subordinadas) e justaposição de frases; empregar o presente ou o pretérito perfeito, indicando acção concluída; empregar verbos de acção; recorrer a palavras que transmitam a ideia de velocidade.


3. Tempo do discurso: Freqüência (repetições)

• Discurso singulativo simples
• Discurso singulativo anafórico
• Discurso repetitivo 
• Discurso iterativo: determinação, especificação e extensão

Genette utilizou a palavra freqüência para designar as relações de repetição entre o discurso e a história (DR p. 145). Se um acontecimento na história for repetido (ou não), o seu enunciado no discurso pode ser igualmente repetido (ou não), o que dá quatro tipos possíveis de relação:

• um d. pode contar uma vez o que se passou uma vez na h.
• um d. pode contar muitas vezes o que se passou muitas vezes na h.
• um d. pode contar muitas vezes o que se passou uma vez na h.
• um d. pode contar uma vez o que se passou muitas vezes na h.

Genette chamou de discurso singulativo tanto o primeiro como o segundo, e qualificou o segundo como singulativo anafórico (o primeiro seria então o singulativo simples, acrescento eu). Ao terceiro chamou discurso repetitivo e ao quarto iterativo. Vejamos exemplos (DR pp. 146-147, variações da frase de Proust “Hier, je me suis couché de bonne heure” traduzidas livremente por mim):

Discurso singulativo simples: “Ontem deitei-me cedo.”

Discurso singulativo anafórico: “Na segunda-feira deitei-me cedo; na terça-feira deitei-me cedo; na quarta-feira deitei-me cedo...”

Discurso repetitivo: “Ontem deitei-me cedo; ontem deitei-me cedo; ontem deitei-me cedo...”

Discurso iterativo: “Todos os dias da semana deitei-me cedo.”

No discurso iterativo, Genette vai mais longe e observa nele três traços distintivos (DR p. 157) a que chama determinação (os seus limites diacrónicos, isto é, o seu início e o seu fim no tempo), especificação (o ritmo da recorrência das suas unidades constituintes) e extensão (a amplitude diacrónica de cada uma das suas unidades constituintes), mas não me vou aqui alargar sobre isto.

Francamente, eu acho estas relações de repetição e a sua taxonomia pouco interessantes e pouquíssimo importantes em termos práticos. Parecem-me a conseqüência de outros procedimentos (da caracterização das personagens ou da estrutura do enredo, por exemplo) ou meras escolhas estilísticas, certamente muito típicas de Proust (e daí a ênfase que, conscientemente, Genette lhes dá, v. NDR p. 9), mas estar sempre consciente delas não deve ser muito útil para quem escreve. Posso estar enganado, claro...

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.