sábado, 26 de julho de 2008

Tisanas Hatherlyanas


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Algo está sempre a acontecer. Por isso escrevo. Escrevo porque algo aconteceu ou acontece. Escrever é isso, mas escrever é sobretudo produzir o acontecer.

Ana Hatherly, in "463 Tisanas", Ed. Quimera

Introdução
Não sou poeta. Nunca fui e não espero ser. Mas escrevo pequenos parágrafos, pequenos momentos de imaginação, de pensamento, de prazer; pequenas ideias para desenvolver, visões para explorar... E a colecção já é vasta. I'll post them here, I thought. E decidi homenagear Ana Hatherly, poetisa portuguesa que publica estes seus pequenos momentos de escrita com o nome de "tisanas". E são deliciosos de ler! Se os meus tiverem, nem que ao de leve, a qualidade das tisanas de Ana Hatherly, já posso dizer que sou escritor amador.

8 Tisanas Hatherlyanas


1
Era uma vez um carrinho de compras, muito sujo e usado, mas muito matreiro e ousado, que foi um dia às compras comprar um carro a sério, mas a sério mesmo, mesmo que implicasse o seu abandono. Ele era suficientemente altruísta.

2
Quando estava bêbado, não via nada, porém lembrava-me de tudo. Estando sóbrio não me lembro de nada, porém vejo tudo...

3
Singing along with Carol, the carols everyone should hate, after we ate a turkey stuffed with Christmas and raisins. Raising a child is not easy, but then again, raising an adult should be harder—not that I ever tried, mind you!

4
Ai, como dói! As feridas são assim mesmo, feitas para doer, ou então não eram feridas feitas ou não eram mesmo feitas, porque para serem feridas feitas têm de ser feitas para doer como feridas. Oh my, como dói! E o pior é que é na alma, provando que ela existe.

5
Corria à chuva para não ficar molhado. Isto é, corria à chuva para encontrar um abrigo onde não fosse molhado pela chuva sob a qual corria para encontrar um abrigo onde não fosse molhado pela chuva. Mas ficava molhado porque fugia da chuva para não ficar molhado, por isso corria.

6
Excelência. É tudo o que é preciso. Nada mais é pouco. Tudo mais é excessivo.

7
Não queria, mas tinha que ser. Tinha de comprar aquilo custe o que custasse. E depois... logo se veria! Como pagar a água e a luz e a comida... Aquilo tinha de comprar. Era um idiota, nessa altura, e sabia tudo... Mas depois, a idade, as circunstâncias, as políticas, e tudo e tudo, mudaram... Mudaram o quê? Não me lembro! Deu-me uma branca! Estava a falar do quê? Mas que estupidez!... Então e agora? Sim, vemo-nos amanhã, é melhor. Pode ser que me lembre do que queria dizer. Adeus.

8
The Times Higher Education Supplement. 
European Journal of Medical Epidemiology. 
Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America. 
Cell. 
Que estranhos e diversos nomes têm as revistas científicas e académicas. E os jornais que informam pouco e apenas aquilo que alguns querem que seja informação e que seja informação para ser informada. Quanto não vale... sei lá o quê!, isto é só escrever...

A bit of PhD Comics - just to procrastinate a little...






http://www.phdcomics.com/comics.php by Jorge Cham

(Actually, all of these situations have happened to me! Blimey...)

Um outro não-conto...

Não é mesmo um conto, nem chega a ser um diálogo...
É um textozeco que me saiu e que eu acho giro.

sem título

— Chá com cebola — e pediu isto com toda a naturalidade. — Mas veja lá se o limão é fresco!

— Queira desculpar — disse o atarantado waiter —, percebi bem? Quer um chá de cebola?

— Percebeu mal — respondeu revirando os olhos —: quero um chá COM cebola.

— Ah, quer um chá... com cebola — tinha o ar de quem percebeu tudo e fez o gesto de apontar no bloco; mas... — Um chá de limão?

— Não, homem! — e voltando-se para mim: — Como é que esta gente é contratada para isto!
Voltou-se para o waiter:

— Um chá verde, chá chá, uma infusão de folhas de Camellia sinensis! Mas com cebola, percebeu agora?

— Â... Um chá verde com cebola...

O homemzinho, coitado, tinha agora o ar mais assustado e atrapalhado que eu já alguma vez vira nestas situações. Fingia anotar no caderno para não ter de a olhar nos olhos, mas a verdade é que não se mexia dali.

— Ouça — recomeçou ela condescendentemente —, faz o chá e traz à parte uma rodela de cebola fresca para eu pôr na chávena antes de deitar o chá.

E o homenzinho finalmente sorriu e anotou mesmo, num gesto que indicava claramente que antes só tinha fingido anotar. E depois mexeu-se.

Quanto voltou com o chá ela ficou danada:

— Então mas e o limão? Eu não lhe disse limão fresco?

O homenzinho estacou, ainda dobrado a colocar as coisas na mesa, a mandíbula balouçou-lhe sem que som algum saísse, os olhos arregalaram-se-lhe em perplexidade.

— Di-diss... Disse-me chá verde, madame!

— Chá verde com cebola, sei muito bem o que pedi! Então e o limão? Então não sabe que o chá verde vem sempre com uma rodela de limão?

E voltando-se outra vez para mim:

— Não sei mesmo como contratam estas pessoas. Really!

Escrito em Coimbra, a 26 de Julho de MMVII

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Regentes de Portugal


The Regent Diamond


Infelizmente, este diamante nada tem a ver com Portugal... Mas este post também nada tem a ver com diamantes (e temos outros como este)! Na Wikipedia existe uma listagem de Regentes por país e verifiquei que faltavam os de Portugal. Então, fiz eu uma lista (espero que completa) de pessoas que exerceram a Regência (isto é, governaram em vez do Monarca) em Portugal, lista que pus na Wikipedia.
...
(1112-1128 Teresa, Condessa Raínha de Portugal)
...
1245-1248 Afonso, Infante de Portugal, Conde jure uxoris de Bolonha
...
1383-1384 Leonor Telles de Menezes, Raínha de Portugal
1384-1385 João, Mestre de Avis
...
1438-1439 Leonor de Aragão, Raínha de Portugal
1439-1448 Pedro, Infante de Portugal, Duque de Coimbra

Armas do Infante Dom Pedro, Duque de Coimbra
...
1557-1562 Catarina de Áustria, Raínha de Portugal
1562-1568 Henrique, Infante de Portugal, Cardeal
...
1656-1662 Luísa de Gusmão, Raínha de Portugal
...
1668-1683 Pedro, Infante de Portugal
...
1704-1705 Catarina, Raínha Viúva de Inglaterra, Escócia e Irlanda
...
1792-1816 João, Príncipe do Brasil

Bandeira do Reino do Brasil, usada como Pavilhão Pessoal do 
Príncipe Regente do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves etc.
...
1826-1828 Isabel Maria, Infanta de Portugal
1828-1828 Miguel, Infante de Portugal
...
1831-1834 Pedro, Duque de Bragança
...
1853-1855 Fernando II, Rei jure uxoris de Portugal
...

As reticências indicam que antes e depois da Regência o Monarca por direito assumiu funções governativas. Excluí as Regências "menores", digamos, sem consequências maiores ou uma grande alteração na governação; como por exemplo a "falsa partida" para o Trono de Dom João II em 1477, ou a curta Regência do Príncipe Real Dom Luís Filipe por algumas dias/semanas em 1907, entre outras.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Dois pequenos textos...

Não são contos exactamente...


Escrevi a palavra caneta e continuei a escrever. Não sei porquê - nunca me tinha acontecido - não conseguia parar. Aquela palavra não me deixava. Ou então era a própria caneta que me segurava a mão e me obrigava a continuar a escrever, a escrever, a escrever e a escrever ainda. Não tinha nada para escrever, não tinha nada para dizer, mas o papel branco sujava-se com a tinta da maldita caneta que não deslargava. Fiz um esforço, olhei para o lado, para longe, esqueci-me que estava a escrever. Mas depois olhei sem querer, de relance, e vi que ainda escrevia. Como fazer para parar de escrever? Então lembrei-me: eu escrevi uma palavra e não consegui parar de escrever; então o melhor seria escrever outra vez a palavra para deixar de continuar a escrever! E escrevi-a: caneta.

Escrito em Lisboa, a 9 de Julho de MMVIII


Com um pedaço de plasticina molda-se um mundo, ou dois, ou três; ou nada ou tudo; ou se vê o que está por dentro, ou se mostra o que não existe, ou nos perdemos na cor mesclada que rola na mão que molda. E os sonhos aparecem, mesmo sem o serem, mesmo que queiram que sejam só sonhos, quando são muito mais que isso... Até que acaba a plasticina, se enrola numa bola e recomeça um novo mundo.

Escrito em Lisboa, a 14 de Julho de MMVIII

terça-feira, 15 de julho de 2008

Arturo Benedetti-Michelangeli toca Domenico Scarlatti

Sonata in si minore K30/L499

A perfeição, se ela existe...

Um conto...

sem título

Quando pus o CD a tocar nem pensei no equilíbrio precário em que se encontrava a pequena aparelhagem, assente em duas pilhas de revistas velhas, quais colunas dóricas, cada uma com um bom metro de altura (supostamente as duas teriam a mesma altura). O CD era de Bruckner, a sinfonia número cinco.

Não pensei mesmo que a aparelhagem se poderia ressentir daquela música, mas ressentia-se... À medida que se esforçava para me dar a leitura fria do CD, aquecia a pouco e pouco, o mostrador ficando cada vez mais brilhante enquanto mostrava (nunca percebi bem porquê) o tempo a passar, qual relógio de tempo limitado.

No segundo andamento da sinfonia, a aparelhagem dir-se-ia que suava. Eu suava de certeza, sentado incomodamente no sofá macio, incomodado pela força da música. Pensava em mim e em todas as sensações que aquela música me fazia sentir. Esquecia-me de pensar nos livros e nos móveis e em tudo o que, ali na sala, também era obrigado a sentir aquela música por minha causa. Na verdade não pensava — só sentia.

E quando a música se aproximava de um ponto alto e eu me agarrava ao sofá e contraía os músculos e tentava segurar o coração para que não me saltasse do peito, não percebi que a aparelhagem também se queria agarrar a qualquer coisa e aguentar o impacto da onda de sensações.

No final do grande clímax, mesmo nos seus últimos segundos, a aparelhagem não aguentou mais, resvalou até ao chão, o pedestal de revistas desmanchada, escorrendo como uma cascata de papel, ajudada por uma lufada de ar vinda da janela e que aparece sempre que a Natureza é obrigada a mostrar o seu mais íntimo.

A aparelhagem ficou inerte, caída, a luz do mostrador apagado, a porta das cassetes aberta como a boca aberta de um cadáver, enquanto revistas continuavam a chover-lhe em cima como flores atiradas para cima de um caixão... Ela não aguentara, não aguentava mais, nunca aguentaria mais fosse o que fosse. Bruckner tem destas coisas...

Escrito em Abrantes, a 8 de Setembro de MMVI

domingo, 13 de julho de 2008

Um conto curtíssimo...

sem título

Aconteceu-me uma vez, percebi que estava a ir para o lado errado e olhei em redor para conseguir ver uma placa de sinalização. Nenhuma à vista.

Fui mais adiante.

Lá estavam elas, em colmeia, as placas de sinalização. "Ora bem, vamos lá ver", pensei eu. Ler uma placa não é assim tão fácil como se podia pensar! A de cima dizia "PARA ALI" e a de baixo "PARA AQUI"... Enfim, não me cativaram e andei mais um bocado.

Sentia que me estava a enterrar cada vez mais, mas afinal havia mais pessoas por ali... Pensei em perguntar direcções mas não consegui.

Fui mais adiante outra vez à espera de tropeçar noutra amálgama de placas de sinalização. Lá estavam mais algumas: "PROIBIDO FUMAR", "PROIBIDO COMER", "PROIBIDO BEBER"...

Voltei para trás, corri... Se tivesse andado mais haveria placas com certeza a dizer "PROIBIDO RESPIRAR", "PROIBIDO SONHAR", "PROIBIDO VIVER"...

Escrito em Lisboa, a 7 de Julho de MMVIII