Há quem tenha muitos problemas com ortografias pessoais. Porque toda a gente devia escrever da mesma maneira, dizem. E este preconceito está na base das regras ortográficas de 1990, cujo objectivo declarado era fazer com que as duas maneiras oficiais de escrever português se refundissem numa só. Porém, esse objectivo não pode ser atingido com estas regras: se antes havia duas ortografias para a língua, agora há... três! Porque há o uso brasileiro, o uso europeu e o uso angolano, porque Angola, o segundo país com mais falantes nativos do idioma, mantém em uso oficial as regras ortográficas de 1945. E se contássemos o idioma galego moderno seriam cinco ortografias, já que os galegos usam duas, uma oficial e outra, digamos, natural.
Mas macro-considerações à parte, mesmo se se aplicasse a ortografia de 1990 universalmente, continuariam a existir inúmeras palavras que se escreveriam diferentemente entre países ― ou mesmo entre regiões do mesmo país. Não me refiro, claro, ao uso de palavras diferentes para designar um mesmo conceito («ônibus = machimbombo = autocarro»), mas à mesma palavra que tem grafia ligeiramente diferente mesmo aplicando todas as regras de 1990. Vejamos exemplos:
Palavras:
aluguer ― aluguel
amígdala ― amídala
amnistia ― anistia
andebol ― handebol
beringela ― berinjela
bosão ― bóson
cãibra ― câimbra
colagénio ― colágeno
câmara ― câmera
camião ― caminhão
casino ― cassino
champô ― xampu
connosco ― conosco
comummente ― comumente
desporto ― esporte
dezasseis ― dezesseis
dezassete ― dezessete
dezanove ― dezenove
eletrão ― elétron
equipa ― equipe
escuteiro ― escoteiro
esparguete ― espaguete
estado-unidense ― estadunidense
fotão ― fóton
golo ― gol
hidroelétrico ― hidrelétrico
húmido ― úmido
ião ― íon
íman ― ímã
indemne ― indene
K [capa] ― K [cá]
lavandaria ― lavanderia
maquilhagem ― maquiagem
microvilosidade ― microvilo
missanga ― miçanga
Neptuno ― Netuno
o/a nómada ― o/a nômade
omnisciente ― onisciente
o palindroma ― o palindromo
percentagem ― porcentagem
quotidiano ― cotidiano
rasto ― rastro
registo ― registro
ruptura ― rutura
súbdito ― súdito
subtil ― sutil
terramoto ― terremoto
verosímil ― verossímil
Aquilo é uma lista alfabética, mas consigo organizar algumas das palavras em grupos, seja pela falta de uma consoante, pela alteração de uma letra ou fonema, pela terminação, etc.
amígdala ― amídala
amnistia ― anistia
andebol ― handebol
indemne ― indene
Neptuno ― Netuno
omnisciente ― onisciente
ruptura ― rutura
connosco ― conosco
comummente ― comumente
beringela ― berinjela
missanga ― miçanga
barião ― bárion
bosão ― bóson
electrão ― elétron
fotão ― fóton
ião ― íon
neutrão ― nêutron
protão ― próton
etc...
câmara ― câmera
dezasseis ― dezesseis
dezassete ― dezessete
dezanove ― dezenove
equipa ― equipe
escuteiro ― escoteiro
lavandaria ― lavanderia
terramoto ― terremoto
champô ― xampu
desporto ― esporte
esparguete ― espaguete
golo ― gol
maquilhagem ― maquiagem
estado-unidense ― estadunidense
hidroelétrico ― hidrelétrico
aluguer ― aluguel
o/a nómada ― o/a nômade
o palindroma ― o palindromo
percentagem ― porcentagem
camião ― caminhão
húmido ― úmido
íman ― ímã
quotidiano ― cotidiano
registo ― registro
súbdito ― súdito
subtil ― sutil
A meu modesto ver, se os lingüistas insistem mesmo em que é preciso escrever cada palavra de uma só maneira, estas é que eram as palavras cuja ortografia se deviam preocupar em unificar! Porque não há uma razão válida para escolher entre uma ou outra forma da palavra ― quando muito pode-se escolher um critério, ou mais etimológico («berinjela», do árabe, e todas as palavras do árabe se transcrevem com j para o som /ʒ/), ou mais consagrado pelo uso («beringela», forma que aparece em todos os dicionários desde Bluteau, excepto no Aurélio). Não havendo consenso, escolher-se-ia uma das possibilidades em troca-por-troca, com sensatez e boa vontade: a mim, não me incomodaria nada escrever «conosco, úmido, registro» se do outro lado aceitassem escrever «amnistia, estado-unidense, ião», por exemplo. Fazer esta escolha seria mais unificador do que prescrever a ausência ou não de consoantes diacríticas (ditas «consoantes mudas») ou a alternância de acento tónico entre agudo e circunflexo.
Os termos científicos, principalmente, que tantas vezes vêm de línguas estrangeiras por traduções feitas ad hoc pelos próprios cientistas, quase sempre sem competências de tradução, têm ortografias tão díspares que dificultam muito a troca de ideias em português! Não me refiro aqui a casos de decalque direito, sem razão de ser, de outra língua, como «a mídia», muito usado no Brasil, tida como feminina talvez porque acaba em a, mas vindo da pronúncia inglesa da palavra latina media, plural de medium, que em português se diz «meio», logo deveria ser «os media», plural masculino, ou melhor ainda «os meios». Coisas destas eu acho simplesmente um erro, como o é reset, palavra muito usada em Portugal, mas pronunciada /rèzéte/ em vez de /risséte/, e posta como substantivo («o /rèzéte/») quando é um verbo (to re-set) e, como tal, devia usar-se simplesmente «repôr».
Há ainda outras divergências que não são niveladas pelas regras de 1990, como nos acentos, e noutras que são mais de uso e de sintaxe mas que talvez pudessem ser arrumadas numa ortografia coesa ― ou melhor ainda: assumir de vez que «prémio» e «prêmio» são a mesmíssima palavra, e não duas palavras cada uma com a sua ortografia, como tanto se vê por essa Wikipédia afora!
Acentos:
bebé ― bebê
cónego ― cônego
[forma ― fórma ― fôrma]
gémeo ―gêmeo
judo ― judô
metro ― metrô
Locuções:
no/ao meio de ― em meio a/ao
debaixo ― embaixo
levar a conhecer ― levar para conhecer
depois de eu ter feito ― depois que eu fiz
chamar ... à/ao ― chamar de ... a/o
Género e número:
a sanduíche ― o sanduíche
a feromona ― o feromônio
a hormona ― o hormônio
a trilobite ― o trilobita
a orbital atómica ― o orbital atômico
a carpete ― o carpete
as calças ― a calça
Países e cidades:
Amsterdão ― Amsterdã
Bagdade ― Bagdá
Banguecoque ― Bancoque
Chade ― Tchade
Chéquia ― Tchéquia
Copenhaga ― Copenhague
Helsínquia ― Helsinque
Irão ― Irã
Madagáscar ― Madagascar
Mali ― Máli
Maurícias ― Maurício
Moscovo ― Moscou
Teerão ― Teerã
Vietname ― Vietnã
Mesmo com as regras de 1990 mantêm-se, divertidamente, as escritas duplas de tantas e tantas palavras típicas, com significado estável, que extravasam as fronteiras de países, regiões ou mesmo bairros. Só pelo hábito ― e não por uma imposição ― uma versão poderá suplantar outra. Nas festas da minha terra aparece sempre a tradicional discussão sobre se se escreve «febras» ou «fevras» (ou «fêveras»)! Eu advogo que nenhuma está errada e que todas se devem usar.
abdómen ― *abdome
açoute ― açoite
afouto ― afoito
arqueiro ― archeiro
assobio ― assovio
beber ― *bever ― *beuer, *buer
bouça ― boiça
cenoura ― *cenoira
cobarde ― covarde
couro ― coiro
cousa [galego] ― coisa
doudo ― doido
Douro ― Doiro
dous [galego] ― dois
entrepôr ― interpôr
espécimen ― espécime
febras ― fevras ― fêveras
flauta ― frauta
flecha ― frecha
flor ― fror
germe ― gérmen
hífen ― *hife
louça ― loiça
louco ― *loico
loura ― loira
mouro ― moiro
*noute ― noite
ouça ― oiça
ouro ― oiro
*outo ― oito
ouvir ― *oivir
papoula ― papoila
percêbes ― percêves
pouso ― poiso
planta ― pranta
pública ― *púbrica
quando ― cando [galego]
quatorze ― catorze
quatro ― catro [galego]
regímen ― regime
ruptura ― rotura
saudade ― soidade
Setúbal ― *Setúval
sobreiro ― sovereiro
tanja ― *tângera
tesouras ― tesoiras
touro ― toiro
Regressando ao assunto da ortografia pessoal, eu tendo a escrever com uma ortografia que exprima aquilo que quero dizer. Daí que faça uso do acento grave e do trema como tinha sido justificado nas regras de 1911 (modificadas em 1920 e base da acentuação do Formulário de 1943), nas quais as palavras, apesar de ficarem pejadas de acentos que antes não tinham, ficam com uma grafia muito mais legível («aqüífero», que eu já ouvi gente a ler */akífero/; «peùgada», que Camilo escrevia «piúgada», não pode ser com i porque vem de «peúga» (de «pé»), mas «peugada» tende a ser lida como ditongo, */pêugáda/).
-qüe, -que
-qüi, -qui
[saüdade]
[faïscar]
[O uso do trema para os hiatos é mais dúbio, porém, e eu tendo a usá-lo apenas no qu-, senão acaba por dividir famílias de palavras: «faïscar» mas «faísca»... E teria de ser «*caïr», «*saïr», mesmo «peügada».]
prègar
inclusivè
vicè-
Gùiana
sòmente
vàlidamente
[Sem acento tendo a ler */valìdamente/.]
E o problema das regras ortográficas de 1990 é que, justamente, não me permitem exprimir o que eu quero dizer. A palavra «coleção» sem c não se lê necessàriamente da mesma maneira que «colecção» com c: pode muito bem ler-se */cólção/, como «colesterol» é lido /cól-che-tról/ por gente portuguesa, e /có-lêss-tê-róu/ por gente brasileira. O mesmo para «direção» (*/dirção/), «diretor» (*/dirtor/); «tecto» escrito «teto» ler-se-á */têto/, e não /této/. E não apenas fonològicamente: «adoção» torna-se o acto de adoçar, e não o de adoptar. E se do substantivo «sintaxe» vem o adjectivo «sintáctico», nada impede que «sintático» (sem c) venha de *sintato, ou ― já agora ― que de «sintaxe» venha *sintáxico, *sintásico, *sintássico ou *sintácico...
*aceção ― acepção
*adotar ― adoptar
*perceção ― percepção
afecto ― *aféto ― afeito
directo ― *diréto ― direito
su(b)jecto ― *su(b)jéto ― su(b)jeito
tecto ― *této ― teito
Por outro lado, há que admitir que o idioma falado muda. Não sou contra uma a[c]tualização da grafia que responda às necessidades da fala. Por exemplo, as palavras da família de «acção», e semelhantes, podem perfeitamente beneficiar da queda do c diacrítico. Já quase ninguém em Portugal lê */àtuar/, nem */àtividade/, nem */àtriz/, isto é, o a tende a fechar ― já não faz sentido o c; já no Brasil ele tende a ser sempre aberto, quer tenha c ou não tenha. Há vários outros exemplos:
ação, coação, exação, inação, interação, reação, redação, transação
ativo, coativo, exativo, inativo, interativo, reativo, redativo, transativo
ato, coato, exato, inato, interato, reato, redato, transato
acionar, etc.
atividade, etc.
atual, etc.
atuar, atriz
ano 1257: acçõ
ano 1340: auçom
ano 1352: aucçom
ano 1352: acção
caráter, caraterística,
ótimo, otimização,
perentório
Neste sentido a Academia das Ciências de Lisboa propõe um aperfeiçoamento da ortografia preconizada em 1990 [ref]. Eu não concordo com tudo (os grupos -ect- parecem-me particularmente discutíveis), mas eu sou apenas um amador.
ação, acionar,
abstrato, abstracionismo,
[afetivo,]
atual,
atuar,
batizar,
[coleção,]
[direção, diretor,]
exato,
noturno,
ótimo, otimista,
[projeto]
Apesar de todas estas regras e diferenças e assim-ou-assado, a base ideológica disto tudo é que me incomoda. Mas porque é que não podia haver duas maneiras de escrever a língua? E porque é que cada pessoa não pode escrever como muito bem quiser, aliás como se fazia até ao século XX? Isto ultrapassa-me.
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