quarta-feira, 19 de julho de 2023

Ainda sobre normas ortográficas

O objectivo declarado da norma ortográfica de 1990 é o de unir as duas normas oficiais existentes, a de 1943 e a de 1945. Algumas diferenças ortográficas entre as duas normas (incluindo as modificações de 1971 e 1973 e diferenças de uso) são as seguintes; as que estão a amarelo são as que ficam resolvidas com a norma de 1990:

abstracto ― abstrato
abstraccionismo ― abstracionismo
acção ― ação
accionar ― acionar
acta ― ata
actividade ― atividade
actor ― ator
actriz ― atriz
actual ― atual
adoptar ― adotar
adjectivo ― adjetivo
afecto ― afeto
aluguer ― aluguel
amígdala ― amídala
amnistia ― anistia
árgon ― argônio
arquitecto ― arquiteto
arquitectónico ― arquitetônico
arquitectura ― arquitetura
atómico ― atômico
bebé ― bebê
bosão ― bóson
camião ― caminhão
casino ― cassino
ceptro ― cetro
champô ― xampu
cinquenta ― cinqüenta
colagénio ― colágeno
colecção ― coleção
colecta ― coleta
colector ― coletor
comummente ― comumente
cónego ― cônego
connosco ― conosco
consequência ― conseqüência
crípton ― criptônio
crómio ― crômio
desporto ― esporte
dezasseis ― dezesseis
dezassete ― dezessete
dezanove ― dezenove
didacta ― didata
didáctico ― didático
direcção ― direção
directo ― direto
director ― diretor
electrão ― elétron
electricidade ― eletricidade
electricista ― eletricista
electrónico ― eletrônico
enjoo ― enjôo
escuteiro ― escoteiro
esparguete ― espaguete
estado-unidense ― estadunidense
exactamente ― exatamente
exacto ― exato
excepção ― exceção
excepto ― exceto
a feromona ― o feromônio
fotão ― fóton
frequência ― freqüência
frequente ― freqüente
geleia ― geléia
gémeo ―gêmeo
génio ― gênio
golo ― gol
hidroeléctrico ― hidrelétrico
a hormona ― o hormônio
humidade ― umidade
húmido ― úmido
ião ― íon
íman ― ímã
indemne ― indene
inspecção ― inspeção
inspector ― inspetor
jacto ― jato
judo ― judô
lémure ― lêmure
linguiça ― lingüiça
linguista ― lingüista
maquilhagem ― maquiagem
melómano ― melômano
metro ― metrô
microvilosidade ― microvilo
missanga ― miçanga
néon ― neônio
Neptuno ― Netuno
neutrão ― nêutron
nocturno ― noturno
o/a nómada ― o/a nômade
objecção ― objeção
objecto ― objeto
omnisciente ― onisciente
óptimo ― ótimo
optimista ― otimista
optimização ― otimização
o palindroma ― o palindromo
percentagem ― porcentagem
prémio ― prêmio
projecção ― projeção
projecto ― projeto
protão ― próton
quotidiano ― cotidiano
rádon ― radônio
rasto ― rastro
redacção ― redação
redactor ― redator
registo ― registro
recta ― reta
rectilíneo ― retilíneo
sequestrar ― seqüestrar
sequestro ― seqüestro
súbdito ― súdito
subjectivo ― subjetivo
subtil ― sutil
táctil ― tátil
tecto ― teto
ténis ― tênis
terramoto ― terremoto
tractor ― trator
tranquilamente ― tranqüilamente
tranquilo ― tranqüilo
a trilobite ― o trilobita
unguento ― ungüento
verosímil ― verossímil
voo ― vôo
xénon ― xenônio

Não me vou pôr (ainda) a fazer contagens, a computar percentuais ― isto é apenas uma pequena amostragem (e muito enviesada), mas já dá para ver, qualitativamente, ane[c]dòticamente, que a união ortográfica está longe de ser alcançada com a norma de 1990.

A juntar a isto temos que muitas palavras que se escreviam igual nas duas normas de 1943 e de 1945, deixam de se escrever igual. Estas são algumas das diferenças criadas pela norma de 1990 (marcadas com * vão formas que nem sequer existem na oralidade):

acepção ― aceção
aceptor ― acetor
adoptação ― adotação
anoréctico ― anorético
anticonceptivo ― anticoncetivo
cacto ― cato
concepção ― conceção
conceptual ― *concetual
confecção ― confeção
confeccionar ― confecionar
conspecção ― conspeção
decepção ― deceção
decepcionar ― dececionar
defectível ― defetível
extractiforme ― extratiforme
flictena ― *flitena
imperceptível ― impercetível
indefectível ― indefetível
interceptado  intercetado
interceptar ― intercetar
interruptor  *interrutor
intersectar ― intersetar
obducto ― *obduto
óptica ― *ótica
percepção ― perceção
perceptivo ― percetivo
peremptório ― perentório
perfeccionístico ― perfecionístico
perfectivo ― perfetivo
poliplectro ― *polipletro
preceptora ― precetora
preceptoral ― precetoral
prospecção ― prospeção
prospecto ― prospeto
recepção ― receção
recepcionista ― rececionista
receptáculo ― *recetáculo
receptor ― recetor
refectório ― refetório
ruptura ― *rutura
séptico ― *sético
transceptor ― transcetor

A professora Maria Regina Rocha (baseando-se no «Vocabulário de Mudança», a mesma fonte de onde tirei os exemplos acima) calculou o número das palavras diferentes que ficaram iguais (569), o das que eram iguais e ficaram diferentes (1235), e o balanço entre as duas (666). Juntando esse valor ao número de palavras que já eram diferentes e continuam a sê-lo (2691), temos que 3357 palavras ficam com grafia diferente.

A minha própria contagem dá valores algo diferentes, mas igualmente sugestivos:
6571 ― total de vocábulos amostrados no «Vocabulário de Mudança» [consultado 2023-07-17].
2405 ― é|ê ó|ô, escreviam-se diferente, continuam diferente
1310 ― ept apt ect actdiferente, continuam diferente.
843 ― hífenes, escreviam-se igual, continuam igual
579 ― ept apt ect act, escreviam-se diferente, passam a igual.
555 ― ói|oi, escreviam-se igual, continuam igual.
317 ― trema, escreviam-se diferente, passam a igual.
293 ― éi|ei ôo|oo iú|iu, escreviam-se diferente, passam a igual.
205 ― ept apt ect act, de igual, passam a escrever-se diferente.
44 ― hífenes, escreviam-se diferente, passam a igual.
20 ― maiúsculas, escreviam-se diferente, passam a igual.

Daqui temos que 3715 vocábulos (2405 mais 1310) tinham grafia diferente e continuam a manter as grafias diferentes. A este valor adicionam-se 205 vocábulos que, apesar de terem a mesmíssima grafia em ambas as normas anteriores, na norma de 1990 passam a divergir, elevando o número de vocábulos com grafias diferentes para 3920, ou 60% do total amostrado! Dos 2651 vocábulos que passam a escrever-se igual, 1398 (1603 menos os 205 que passam a ser diferentes) já eram iguais antes (ainda que com grafias ligeiramente diferentes relacionadas apenas com acentos de timbre ou hífenes). Sobram, portanto, 1253 (2651 menos 1398) vocábulos que sofreram realmente alterações, isto é, 19% do total.

Visto de outra maneira, e sempre seguindo os 6571 vocábulos amostrados no «Vocabulário de Mudança», antes tínhamos 4968 vocábulos com grafia diferente e 1603 com grafia igual; agora ficamos com 3920 vocábulos de grafia diferente e 2651 de grafia igual. Subtraindo o valor anterior dos de grafia igual ao valor posterior, temos que igualámos a ortografia de 1048 vocábulos, 16% do total.

O valor mais egrégio é o dos 205 vocábulos que se escreviam igual e que agora se escrevem diferente! Aí está a discrepância entre os 1253 e os 1048, já que os 205 são contados como tendo sofrido alteração, só que foi no sentido contrário (de igual passaram a diferente, enquanto que todos os outros alteraram-se passando de diferente para igual). Temos então que a norma de 1990 altera 19% do total de vocábulos amostrados, mas só iguala a grafia de 16% do total.

Ainda assim, a contagem de Maria Regina Rocha encontrou um número de vocábulos que de igual passaram a ser diferentes muito maior do que os 205 da minha contagem. Penso que isso se deverá a outra idiossincrasia das normas de 1990: que muitos vocábulos continuam a exibir grafias diferentes, mas a diferença não se mantém como estava! Isto é difícil de apreender, mas vejamos um exemplo: temos facção na norma de 1945; a norma de 1943 aconselha fação como preferencial, mas permite facção; na norma de 1990, ambas mantêm-se legítimas no Brasil, mas em Portugal facção passa a ser ilegítima e legítima apenas a forma, nunca usada em Portugal, fação ― o quase contrário do que se dava antes (e um perfeito absurdo se notarmos que no Brasil continua a ser permissível escrever como agora é impermissível em Portugal)! 

Essas «contra-alterações» estão contidas nos 1310 vocábulos que, antes diferentes, se mantêm diferentes e, por isso, não foram visíveis na minha contagem inicial (que considerava apenas alterações absolutas). Ainda assim, uma rápida busca (nesses 1310) dá 819 vocábulos que são alterados em Portugal, e 49 no Brasil. Juntando aos 205, ficamos com um valor mais próximo do estimado por Maria Regina Rocha: 1024 vocábulos que mudam em Portugal sem que sequer se atinja a igualdade gráfica (no Brasil apenas mudam aqueles 49, já que os 205 só mudam de grafia em Portugal).

Dos vocábulos que mudam (e excluindo os hífenes e os ói, que já eram iguais e ficam iguais), os 317 do trema mais os 293 dos acentos mudam no Brasil atingindo-se a igualdade, aos quais se juntam os 49 que mudam sem se atingir a igualdade (um total de 659 vocábulos que mudam no Brasil); em Portugal e nos restantes países mudam 599 vocábulos (os 579 das «consoantes mudas» mais os 20 das maiúsculas) atingindo-se a igualdade, mais 1024 que mudam sem se atingir a igualdade (um total de 1623 vocábulos). Isto corresponde a mudanças em 10% dos vocábulos (do total dos 6571 amostrados) no Brasil, 25% em Portugal e nos restantes países.

Podemos, então, perguntar duas coisas. Será que vale a pena tantas mudanças para igualar apenas 16% das palavras? Se sim, será que é mesmo necessário mudar em Portugal a escrita das palavras que ostensivamente continuam a ter uma grafia normativa dupla (quando não tripla [eletrónica, eletrônica, electrônica] e mesmo quádrupla [espectrómetro, espetrómetro, espetrômetro, espectrômetro]), uma das quais é já a forma consagrada há muito? Escrevamos abstrato, vamos a isso; mas não passemos a escrever aspeto em Portugal quando aspecto continua a ser permissível ― e recomendável ― no Brasil...

Também podemos questionar o porquê da preocupação com as maiúsculas de Estio, Fulano e Julho, etc. Ou com a alteração da grafia de palavras que se escreviam igual (então o objectivo não era apenas igualar as palavras que se escreviam diferentes? até Antônio Houaiss disse isso), ou até com os hífenes ou com os acentos tímbricos (incluindo o trema, que D'Silvas Filho considera que devia ser facultativo), coisas que, a meu ver, têm menos importância e poderiam ser consideradas como sendo diferenças no uso da língua. Mas enfim...