sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

A Narrativa de Ficção ― DISCURSO (II)

DISCURSO = enunciado, texto (expressão da história)

4. Modo do discurso: Distância

To tell, to show e a ilusão mimética
• Discurso indirecto, discurso indirecto livre e discurso directo
• Monólogo interior, stream of consciousness

Esta categoria de modo do discurso não é mais do que a velha distinção entre to tell, contar a história, e to show, mostrar a história. Já Platão e Aristóteles faziam a distinção entre mimesis (μίμησις) e diegesis (διήγησις), depois recuperada na prática pelo escritor Henry James (1843-1916) e teorizada pelo seu editor Percy Lubbock (1879-1965) (v. DR pp. 184-185) ― se é que alguma vez esteve fora de uso: Gustave Flaubert (1821-1880) também a usou, mas sem fazer grande alarido sobre isso (Bourneuf & Ouellet 1978, p. 109).

Só que em vez de aceitar estes dois territórios contrastantes, com uma fronteira estanque entre eles, Genette (com Wayne Booth e outros teóricos) considera que o que existe, com efeito, é uma gradação de vários tipos de telling até ao showing puro — uma maior ou menor distância entre o discurso e a história (DR p. 185; NDR pp. 29-39), consoante o grau de presença do narrador no discurso:

To tell (contar, diegesis): narrador distante da história em diferentes graus, representação selectiva, compressão; desvia o leitor do material narrado e orienta-o para o narrador; representação que manipula a história ― resume, elide, etc.

To show (mostrar, mimesis): narrador tão próximo à história que desvanece a sua presença (ocultação do narrador); representação de tipo dramatizado; visão de uma das personagens; privilegia o diálogo. 

Na verdade, o discurso narrativo nunca atinge o showing, que apenas é possível na representação dramática, onde os gestos e as falas dos actores no palco (ou na tela) permitem realmente mostrar a história. A narrativa é “um acto de linguagem” (NDR p. 29), há sempre uma narração, um narrador contando a história, mesmo onde este esteja tão apagado que pareça que a história «se conta a si mesma», efeito que se consegue com escolhas discursivas que criam uma ilusão mimética (DR p. 185; NDR p. 31).

Um exemplo (perfeito!) do suposto puro showing anglo-saxónico encontra-se em The Maltese Falcon de Dashiell Hammett (v. Bell 2004, p. 207 [v. tb p. 120]; a versão telling é uma proposta de Bell, a versão showing é a verdadeira de Hammett):

Telling: The woman threw herself, crying, into Spade’s arms. He detested her crying. He detested her. He wanted to get out of there.

Showing: “Did you send for Miles’s brother?” he asked.
“Yes, he came over this morning.” The words were blurred by her sobbing and his coat against her mouth.
He grimaced again and bent his head for a surreptitious look at the watch on his wrist. His left arm was around her, the hand on her left shoulder. His cuff was pulled back far enough to leave the watch uncovered. It showed ten-ten.

Aqui vê-se bem (especialmente depois de se ler sobre a gradação de telling) que este showing é também um telling! A diferença é que telling usa adjectivos e/ou verbos mais gerais, num estilo curto e seco (crying, detested, get out of), enquanto que showing usa diálogo, adjectivos e verbos sensoriais, sugestões de movimento (uma pergunta, sobbing, grimaced, surreptitious, imagem do relógio e as horas exactas sugerindo pressa e enfado). 

O narrador é bastante mais visível no primeiro, mas eu não diria que está ausente no segundo, porque parece-me que a cena está a ser contada com tanta descrição como no primeiro (que aliás nem é muita em qualquer destes casos) — mas há, com efeito, uma ilusão mimética no segundo: parece texto escrito para ser representado num palco, uma cena de filme, sem narrador. Não admira que eu, por mais livros que lesse, nunca tenha conseguido perceber a diferença entre um texto que me dizem que shows coisas e outro que me dizem que tells coisas!

Todos os discursos são, portanto, contados. Genette faz uma primeira divisão entre «discurso dos acontecimentos» e «discurso das personagens» (récit de paroles = discurso das falas, mas sigo aqui, mais ou menos, a tradução que encontro no dicionário de Reis & Lopes 1987) dizendo que o primeiro é sempre contado, isto é, o narrador está bem visível quando eventos acontecem mas as personagens não falam. É usado o tradicionalmente chamado discurso indirecto e que Genette chama de discours narrativisé ou raconté, discurso narrado ou contado.

No «discurso das personagens» é que ocorre, então, uma gradual aproximação ao showing: as falas das personagens podem ser contadas pelo narrador usando o discurso indirecto (como se fossem acontecimentos), mas também podem ser transpostas mais ou menos indirectamente pelo narrador usando o discurso indirecto livre (discours transposé). 

As falas podem ainda ser reproduzidas tal-e-qual (o máximo de ilusão mimética) usando o discurso directo (discours rapporté), que Genette diz ser um discurso «imediato», ou seja, acontece ao mesmo tempo que as personagens falam (ligação com a cena dialogada, isócrona), aproximando-se, portanto, da representação dramática.

[N.B. Eu prefiro utilizar as designações tradicionais para os tipos de discurso, bem conhecidas, e que, de qualquer maneira, correspondem quase exactamente às de Genette. Noto ainda, por curiosidade, que as expressões «narrativa dramática» e «drama narrativo» são paradoxais para Genette (e eu concordo): se é narrativa, não é drama; se é dramático, não pode ser narrativo (p. ex. NDR caps. III e VII).]

Um possível esquema desta gradação de ilusão mimética seria este:

Telling puro >>>>>>>>>>> gradação >>>>>>>>>>>> Showing puro
__________Modo narrativo_________       Modo dramático
d. indirecto > d. indirecto livre > d. directo > representação dramática

Para efeitos do discurso, os pensamentos das personagens comportam-se como as falas das personagens (NDR pp. 42-43), por isso Genette inclui no discurso directo, imediato, aquilo a que tradicionalmente se dá o nome de «monólogo interior», porque “o essencial (...) não é que ele seja interior, mas que seja imediato [qu’il soit d’emblée]” (DR p. 193) e, no caso da sua variante stream of consciousness (traduzida como «corrente de consciência» por Reis & Lopes, «fluxo de consciência» por Assis Brasil), que saia de rajada, logo à primeira, fora de controlo [“sintaxe extremamente frouxa, pontuação escassa ou nula, grande liberdade, sob todos os pontos de vista, no uso do léxico, etc., sem qualquer intervenção do narrador e fluindo à medida que as ideias e as imagens, ora insólitas ora triviais, ora incongruentes ora verosímeis, vão aparecendo, se vão atraindo ou repelindo na consciência da personagem” (Aguiar e Silva pp. 747-750)].

Vale a pena, talvez, mencionar os sete tipos de discurso de Brian McHale (1978, ‘Free Indirect Discourse: a survey of recent accounts’, Poetics and Theory of Literature 3:249–287, pp. 258–259, v. tb. Norman Page 1973, Speech in the English Novel. London: Longman, pp. 31–35; in Rimmon 2002, pp. 111s), que subdividem a ilusão mimética de Genette. Não trazendo nada de novo, servem para lembrar que a gradação de distância é quase infinita e que estas tipologias do discurso são guias úteis mas flexíveis. Aqui fica uma tabela de equivalências, em francês:

Genette (1983, p. 38, chp. IX)
McHale (7 dégrées de mimétisme)
Exemplo.

1. Discours narrativisé (= indirect)
1. Sommaire diégétique [Resumo diegético]
« Marcel parla à sa mère pendant une heure. »

1. =
2. Sommaire moins purement diégétique
« Marcel informa sa mère de sa décision d’épouser Albertine. »

2. Discours transposé (= ind. libre)
3. Paraphrase indirecte du contenu (d. ind. régi)
« Marcel déclara à sa mère qu’il voulait épouser Albertine. »

2. =
4. Discours indirect (régi) partiellement mimétique
« Marcel déclara à sa mère qu’il voulait épouser cette petite garce d’Albertine. »

2.
5. Discours indirect libre
« Marcel alla se confier à sa mère : il fallait absolument qu’il épousât Albertine. »

3. Discours rapporté (= direct)
6. Discours direct
« Marcel dit à sa mère : Il faut absolument que j’épouse Albertine. »

3. =
7. Discours direct libre
« Marcel va trouver sa mère. Il faut absolument que j’épouse Albertine. »

Em todos os livros da escola e em qualquer manual da língua se podem encontrar as características tradicionais dos discursos. No discurso indirecto a linguagem e/ou personalidade não é a da personagem, mas a do narrador: “O narrador não abdica do seu estatuto de sujeito da enunciação: seleciona, resume e interpreta a fala e/ou os pensamentos das personagens, operando uma série de conversões a nível dos tempos verbais, da categoria lingüística de pessoa e das locuções adverbiais de tempo e de lugar” (Reis & Lopes 1987, p. 276). Normalmente tem objectividade, denotação, pontuação lógica (Veríssimo et al. 1999, p. 15). Usam-se:
1. Verbos na 3.ª pessoa.
2. Verbos declarativos seguidos de que ou se (Cardona & Santos, p. 77).
3. Verbos no pretérito imperfeito (indicativo), pretérito mais-que-perfeito (indicativo), futuro do pretérito (indicativo), pretérito imperfeito (conjuntivo).
4. Pronomes pessoais na 3.ª pessoa (ele/eles, ela/elas).
5. Pronomes ou determinantes demonstrativos: aquele/aqueles, aquilo.
6. Pronomes ou determinantes possessivos: seu (dele) / seus (deles).
7. Advérbios e expressões: ali, lá, além; então, naquele momento, naquele dia, na véspera, no dia seguinte, depois.
8. Frases interrogativas indirectas.
Ex. «Pedia-lhe às vezes que olhasse bem para ele, que olhasse bem e dissesse se aquele era o mesmo homem que ele tinha conhecido.»

No discurso indirecto livre o narrador fala quase como se fosse a personagem; é mais usado para transcrever pensamentos, mantém expressões peculiares da personagem (com respectiva pontuação) e segue tempos verbais como no discurso directo (DR p. 192). As palavras ditas ou pensadas por um personagem (discurso directo) são incorporadas no discurso do narrador (discurso indirecto) (Teixeira & Bettencourt 1997, p. 150). “É um discurso híbrido, onde a voz da personagem penetra a estrutura formal do discurso do narrador, como se ambos falassem em uníssono. A terceira pessoa e os tempos da narração coexistem lado a lado com os dêicticos [advérbios de contexto], as interrogações diretas, os traços interjetivos e expressivos, a ausência de recção [regência + concordância]. (...) Este tipo de discurso permite representar os pensamentos da personagem sem que o narrador abdique do seu estatuto de mediador. É, pois, um processo suscetível de incorporar no fluxo narrativo o «realismo subjectivo» que pode reger a representação do mundo interior das personagens.” (Reis & Lopes 1987, p. 277)
Ex. «Odiou Castanho, odiou Alcibíades, odiou-se a si mesmo. Fossem todos para o diabo!» (Érico Veríssimo).

O discurso directo é, portanto, o registro integral da fala da personagem (diálogos e monólogos), isto é, o narrador reproduz, directa e fielmente, as palavras pronunciadas ou pensadas pelas personagens (Teixeira & Bettencourt 1997, p. 149), como se as personagens falassem directamente, sem a interferência do narrador; é o máximo possível de ilusão mimética. É indicado convencionalmente na mancha gráfica por meio de «dois pontos, parágrafo, travessão» e as falas das personagens são introduzidas, finalizadas ou entremeadas por verbos como dizer, afirmar, responder, sugerir, perguntar, indagar, exclamar, concluir, etc. Normalmente tem subjectividade, conotação, pontuação expressiva, as falas das personagens ganham em naturalidade, tocadas pela emoção, reforçada por exclamações, interjeições, reticências, interrogações, vocativos e imperativos (Veríssimo et al. 1999, pp. 15 e 19). Usam-se:
1. Verbos na 1.ª ou 2.ª pessoa.
2. Verbos declarativos.
3. Verbos no presente (indicativo), pretérito perfeito (indicativo), futuro do presente (indicativo), futuro (conjuntivo), modo imperativo.
4. Pronomes pessoais na 1.ª pessoa (eu/nós) ou na 2.ª pessoa (tu/vós/você).
5. Pronomes ou determinantes demonstrativos: este/estes, esse/esses, isto/isso.
6. Pronomes ou determinantes possessivos: meu/meus, teu/teus.
7. Advérbios: aqui, cá, aí; agora, hoje, ontem, amanhã, logo.
8. Frases interrogativas directas.
Ex. «— Olha bem para mim, — pede-me às vezes — olha bem e diz lá se este é o mesmo homem que tu conheceste?...» (Manuel da Fonseca)

É também muito comum encontrar nos manuais a técnica de conversão entre discurso directo e indirecto. Na passagem do discurso directo para o indirecto: presente > pretérito imperfeito; pretérito perfeito > pretérito mais-que-perfeito; futuro do presente > futuro do pretérito (condicional); modo imperativo > imperfeito do conjuntivo. Porém, há excepções, por exemplo (Guerra & Vieira 1995, p. 36 Caderno; Veríssimo et al. 1999, p. 20):
Directo: «Terás bons resultados, João?» [futuro]
Indirecto: «Ela perguntou ao João se teria bons resultados.» [pretérito perfeito + futuro do pretérito] OU «Ela pergunta ao João se terá bons resultados.» [presente + futuro]

Existe ainda uma classificação dos registos subjectivos do discurso (Reis & Lopes 1987, pp. 285s) pela presença de certas qualidades lingüísticas, sem fronteiras delimitadas (um mesmo fragmento textual pode ilustrar mais do que um registo). Trata-se, mais uma vez, de um instrumento teórico de pouca utilidade prática, que Carlos Reis até retirou da nova versão do seu dicionário (Reis 2018).


5. Modo do discurso: Perspectiva (focalizações)

• Focalização zero (perspectiva não focada, omnisciente)
• Focalização externa
• Focalização interna: fixa, variável ou múltipla

A «teoria das focalizações» (incluindo as alterações à perspectiva) consolidou-se como a mais feliz contribuição de Gérard Genette para os estudos sobre a narrativa (acham isso Rimmon, Assis Brasil, Carlos Reis, Aguiar e Silva p. 765, o próprio Genette NDR p. 44), substituindo conceitos de definição pouco precisa, como «ponto de vista», «visão», «foco narrativo», «aspecto», «restrição de campo», o sistema de Jean Pouillon, o de Norman Friedman ou o de Mieke Bal, entre outros (v. DR p. 206 para um bom resumo; ou Aguiar e Silva p. 765 nota 185 e p. 768 nota 193).

A perspectiva não focada (perspective non-focalisée ou focalisation zero na expressão de Genette) é o que na crítica anglo-saxónica se conhece por «narrador omnisciente» (confundindo modo do discurso com voz da narração): “onde o discurso não parece privilegiar nenhum «ponto de vista», introduzindo-se [o discurso] à vez e à vontade no pensamento de todas as personagens” da história (Genette, Fiction et Diction p. 63). Na prática, é onde o narrador sabe mais que as personagens ou, mais precisamente, diz mais do que o que sabem as personagens; Tzvetan Todorov simboliza-a por N > P (v. DR p. 206).

A focalização externa “consiste em [o discurso] se abster de qualquer incursão na subjectividade das personagens para não relatar senão os seus feitos e gestos, vistos do exterior, sem nenhum esforço para os explicar” (Genette, Fiction et Diction p. 63). Na prática, o narrador diz menos do que o que sabem as personagens; Todorov simboliza-a por N < P.

Na focalização interna, a mais complexa, o discurso entra na subjectividade das personagens. Na prática, o narrador apenas diz o que sabem as personagens ou, mais precisamente, não diz mais do que o que sabe uma dada personagem; Todorov simboliza-a por N = P. Pode ser fixa (a personagem focal é sempre a mesma), variável (a personagem focal não é sempre a mesma) ou múltipla (o mesmo evento é evocado por personagens focais diferentes) [a mim parece-me que estes subtipos também se podem aplicar à externa, mas enfim; são preciosismos taxonómicos de pouco interesse prático].

Um possível «truque» para saber se, num dado segmento discursivo redigido na 3.ª pessoa, a focalização é externa ou interna (proposto, aliás, pelo próprio Genette no DR p. 210, e antes dele por Barthes 1966, p. 20; v. Rimmon 2002, p. 77) é tentar reescrevê-lo na 1.ª pessoa: se isso for possível, é interna; se não for, é externa.

É bom ter sempre em mente que, no sistema de Genette, nunca é uma personagem que foca ou é focada: é o discurso ele próprio que é focado (ou «focalizado»), nunca uma personagem. Refutando o sistema de «focalizador versus focalizado» de Mieke Bal, Genette diz ainda que o «focalizador», a existir, só pode ser quem foca o discurso, isto é, o narrador (a voz da narração), nunca uma personagem (NDR p. 48). 

Portanto, se se usar essa sintaxe, é o narrador que foca o discurso nesta ou naquela personagem, neste ou naquele acontecimento. Não se trata, assim, na focalização interna, de «olhar através dos olhos de uma personagem» nem de «ver o que ela está a ver», mas de veìcular ao leitor a informação de que é esta ou aquela personagem que vê qualquer coisa e que coisa é essa (e quem diz vê diz ouve, cheira, toca, sente, degusta, pensa, enfim, percepciona). Desta maneira é possível mudar o foco sem que o tipo de focalização mude (NDR p. 51): interna sobre uma personagem passa a interna sobre outra personagem, por exemplo (o narrador foca o discurso numa personagem e depois foca-o noutra).

Diz Genette que uma focalização é sempre uma restrição (DR p. 209): o discurso só veìcula uma parte da informação (aquela que o autor escolhe passar). A focalização interna, por exemplo, “serve para isolar outra personagem (ou grupo) numa exterioridade misteriosa” (DR p. 209 nota 1) e só é plenamente realizada no discurso em monólogo interior (DR pp. 209-210), no qual o leitor e só o leitor sabe o que a personagem pensa, deixando todas as outras de fora. 

Não é demais lembrar que, uma vez que se pode contar uma história e vê-la ao mesmo tempo, mas também que se pode contar o que foi visto por outra pessoa, ver e contar são duas actividades diferentes e distingui-las é uma necessidade teórica (Rimmon 2002, p. 74). Faço, portanto, uma achega a duas classificações que exemplificam a comum confusão entre perspectiva e/ou distância (modo, «quem vê?») e voz (narração, «quem fala/conta?»), que o sistema de Genette veio clarificar. 

Aguiar e Silva (pp. 769s) oferece uma classificação em cinco pares de oposições (focalização heterodiegética versus homodiegética; interna versus externa; omnisciente versus restritiva; interventiva versus neutral; e fixa versus variável e múltipla), mas eu concordo com Carlos Reis (O Conhecimento da Literatura, nota 38 do capítulo 6, p. 268 da 2.ª edição brasileira) quando este especialista diz que “os termos em que Aguiar e Silva (pp. 769s) analisou a problemática da focalização constituem, nalguns aspectos, uma regressão (...). (...) Conceitos [que] confundem de novo a perspectiva narrativa com a narração, domínios evidentemente relacionados, mas autónomos (...).”

Já Norman Friedman (1955, “The Point of View in Fiction: The Development of a Critical Concept.” PMLA 70(5): 1160-1184) propôs uma classificação em sete tipos (omnisciência editorial, omnisciência neutra, «eu» como testemunha, «eu» como protagonista, omnisciência selectiva múltipla, omnisciência selectiva, e modo dramático; v. Aguiar e Silva p. 768 nota 193 para um bom resumo), muito usada em livros e cursos de escrita (por Timbal-Duclaux, p. ex.), mas tão complexa e minuciosa que Luiz Antonio de Assis Brasil deixou de a usar na sua famosa oficina literária (v. nota 2 ao capítulo 5): “A partir de certo momento, percebi que essa nomenclatura, se útil para os estudos literários, já não correspondia às formas assumidas pela narrativa atual; a multiplicidade e a minúcia das técnicas narrativas mais confundiam do que ajudavam os escritores em formação.”


6. Modo do discurso: Alterações

• Paralipse
• Paralepse

No contexto da perspectiva, Genette criou ainda dois conceitos para descrever as alterações à perspectiva dominante num dado discurso. Estas são infrações isoladas “que não contestam a tonalidade do conjunto” (DR p. 211).

A paralipse consiste em dar menos informação do que seria em princípio necessária (deixa de lado informações que devia dar). O exemplo típico são as histórias de detectives, onde uma focalização interna afinal não diz ao leitor tudo o que o detective sabe (v. DR p. 212).

A paralepse consiste em dar mais informação do que seria em princípio autorizado no código da focalização que rege o conjunto (dá informações que devia deixar de lado). Um exemplo é quando, estando em focalização externa, há uma breve incursão, em focalização interna, na consciência da personagem (DR p. 213).

Nenhum destes desvios implica uma mudança completa para outra focalização, apenas uma breve (lá está) alteração.

[-lipse: deixar passa, largar, excluir (elipse, paralipse)]
[-lepse: tomar, apanhar, agarrar, acadar (analepse, prolepse, paralepse, metalepse, silepse)]

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

A Narrativa de Ficção ― NARRAÇÃO

NARRAÇÃO = enunciação, relato (produção do discurso)

1. Narrador: Nível

• Narrador extradiegético
• Narrador intradiegético (e metadiegético)
• Metalepse e «pseudodiegético»

O narrador pode situar-se dentro ou fora da história, isto é, pode ser personagem na história que narra ou não (independentemente de narrar na 3.ª ou na 1.ª pessoa). Genette escolheu, então, os adjectivos intradiegético e extradiegético para designar o narrador quanto à sua posição dentro ou fora da história (sendo que intradiegético = diegético), categoria da narração que ele designou por nível.

Se se considerar que a história está no primeiro nível, ou nível 1, logo à partida toda e qualquer história tem um narrador extradiegético: se está uma história a ser contada, ela está a ser contada por um narrador exterior a ela. Esse narrador estará num nível inferior à história, o «nível 0».

Se dentro dessa história de nível 1 (contada, portanto, por um narrador extradiegético, de «nível 0») houver uma personagem que, por sua vez, conta uma outra história (de nível 2, diferente da primeira), essa personagem será o narrador intradiegético: dentro do nível 1, conta um nível 2. 

Se dentro dessa outra história (nível 2), contada dentro da primeira (nível 1), houver outra vez uma personagem que conte uma história (nível 3), a essa personagem Genette dá a designação de narrador metadiegético (outros autores, começando por Mieke Bal, preferem usar o prefixo de inferioridade hipo, ainda que Genette tenha sido bem claro ao dizer que dentro do seu sistema conceitual cada narrador conta uma história de nível superior, e não inferior, àquele em que está; DR p. 227 nota 1, NDR p. 61 — eu prefiro manter o prefixo original meta para não multiplicar as confusões, já que são os conceitos, e não as palavras, que verdadeiramente importam aqui).

E assim sucessivamente: uma personagem dentro do nível 3, conta um nível 4; uma dentro do nível 4, conta um nível 5; outra dentro do nível 5, conta um nível 6... Genette menciona uma narrativa (o conto Menelaiad, de John Barth [1968]; NDR p. 58) em que há nada menos do que 7 níveis! Genette, porém, não criou mais neologismos para designar os narradores de nível superior ao metadiegético.

O sistema dos níveis é ilustrada por Genette usando balões de fala, como nos quadrinhos de banda desenhada (NDR pp. 56-57): [Carlos Reis (1987 e 2018) usa uma imagem com caixas e traços que também o ilustram competentemente.]
O narrador extradiegético A («nível 0», fora da história) conta uma história (nível 1) onde uma das personagens actua como narrador intradiegético B ao contar também uma história (nível 2) onde uma das personagens actua como narrador metadiegético C ao contar outra história (nível 3) onde uma das personagens actua como narrador D ao contar ainda outra história (nível 4), etc.

Acaba por ser uma técnica de encaixe: cada história contada dentro doutra, a primeira sendo a principal com outras encaixadas (ou pontualmente, como quando uma personagem conta uma história ou encontra um manuscrito e o lê; ou completamente, como nas Mil e Uma Noites ou no Decámeron, que são, cada um, um conjunto de histórias encaixadas) (Reuter 1997, p. 85).

Uma história dentro de outra história pode funcionar como uma digressão (por exemplo, numa pausa, numa analepse, etc.) para reduzir a velocidade ou alterar a ordem, criando tensão no leitor. Genette vai ao ponto de classificar seis tipos de relação funcional entre o nível (intra)diegético, ou nível 1, e o nível metadiegético, ou nível 2 (NDR pp. 62-63, afinação do que ele tinha proposto no DR pp. 242-243), mas eu penso que isto, por muito interesse que tenha em termos teóricos, não tem interesse em termos práticos, e é a prática que me interessa a mim.

Havendo vários níveis, o narrador de um pode interferir num outro (no discurso, não na história), por exemplo emitindo juízos de valor ou opiniões sobre o que se passa na história, o que os teóricos anglo-saxónicos costumam chamar de «intrusão do narrador». Genette criou o neologismo metalepse para designar esse fenómeno. 

Um outro fenómeno acontece quando uma história (p. ex. nível 2), que seria contada por uma personagem (nível 1), acaba por ser contada pelo narrador de nível inferior («nível 0») — Genette atribui a isto o adjectivo «pseudodiegético». A meu ver esta noção é pouco importante, já que a distinção do narrador entre níveis é puramente taxonómica e, na prática da escrita contemporânea, os níveis acabam por se misturar destas e doutras maneiras (por exemplo, nada impede o narrador de contar uma história onde ele mesmo é uma personagem que conta outra história onde ele mesmo é outra vez personagem a contar outra história... ou seja, que o narrador extradiegético, o narrador intradiegético e o narrador metadiegético sejam todos uma só entidade que actua em níveis diferentes.


2. Narrador: «Pessoa»

• Narrador heterodiegético
• Narrador homodiegético: autodiegético ou alodiegético
• «Estatuto do narrador»

O narrador pode contar uma história na 3.ª ou na 1.ª pessoa verbal — e Assis Brasil diz mesmo que, para fins práticos, são as únicas modalidades da escrita de ficção que importam (2019, p. 241). Gérard Genette, porém, argumenta que essa não é a distinção mais útil na categoria da pessoa e prefere falar em «pessoa», sempre entre aspas, ou, melhor, na relação entre o narrador (ou a narração, ou a voz; o que, para o caso, vai dar ao mesmo) e a história. Diz Genette (DR p. 252, em tradução livre, minha):

“A escolha do romancista não é entre duas formas gramaticais, mas entre duas atitudes narrativas (...):
1. pôr a história a ser contada por uma das suas personagens, ou
2. pôr a história a ser contada por um narrador estranho a ela.”

À primeira atitude corresponde um narrador homodiegético, e à segunda um narrador heterodiegético.

Assim sendo (diz Genette ali naquelas reticências do meio), as formas gramaticais da 3.ª ou da 1.ª pessoa dos verbos não são senão a conseqüência mecânica desta escolha de atitude. Na prática, um narrador homodiegético acaba sempre por se exprimir na 1.ª pessoa, enquanto que um narrador heterodiegético não. Genette vai até mais longe dizendo que o narrador pode intervir a qualquer momento na narração e designar-se a si próprio pelo pronome da 1.ª pessoa (enquanto narrador, e não enquanto personagem, se o for) e que, por isso mesmo, toda e qualquer narração é sempre virtualmente feita na 1.ª pessoa (DR p. 252; NDR p. 65). 

Ele dá vários exemplos, o mais evidente será o Don Quixote de la Mancha de Cervantes, onde, logo na primeira frase, o narrador diz «não quero recordar-me» (1.ª pessoa): “En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor.” Estamos, portanto — e apenas por causa daquela oração subordinada — perante um narrador homodiegético na 1.ª pessoa; sem ela, o narrador naquela frase seria heterodiegético na 3.ª pessoa: “En un lugar de la Mancha [...] no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor.

A existência de verbos na 1.ª pessoa remete para duas situações (DR p. 252): o narrador designando-se a si próprio como narrador (extradiegético), ou o narrador identificando-se com uma das personagens (intradiegético). O que leva ao entrelaçar da «pessoa» do narrador com o nível onde está o narrador (o «estatuto do narrador»), explicitada por Genette num quadro (DR p. 256; e incluindo focalização NDR p. 88) que vou aqui adaptar:

1. Narrador extradiegético e heterodiegético: conta uma história de onde está ausente.
2. Narrador extradiegético e homodiegético: conta uma história onde está presente como personagem.
3. Narrador intradiegético e heterodiegético: personagem que conta uma história de onde está ausente.
4. Narrador intradiegético e homodiegético: personagem que conta uma história onde está presente como personagem (conta a sua própria história).

Daqui se vê que um narrador extradiegético e homodiegético é sempre intradiegético como personagem (está presente na história) e extradiegético como narrador (NDR p. 91 nota 1), enquanto que um narrador intradiegético e homodiegético acontece no caso clássico das autobiografias.

Genette criou ainda o neologismo autodiegético para definir um caso particular de narrador homodiegético: quando o narrador da história de nível 1 se identifica como a personagem principal («personagem-heroína») que conta a sua própria história (é, portanto, extradiegético, mas que também pode ser intradiegético se contar histórias de nível 2 enquanto personagem, por exemplo, na sua autobiografia). É o chamado «narrador-herói», por oposição ao único outro tipo possível de narrador homodiegético, que será o «narrador-testemunha» (NDR p. 69); Genette não chega a atribuir um adjectivo a este último caso, mas poderia muito bem ter usado alodiegético (auto, αὐτο, o mesmo; alo, ἄλλος, o outro).

Finalmente, Genette classifica as funções do narrador em cinco tipos (DR pp. 261-265): narrativa, textual (de régie no original francês; directing na tradução inglesa; de regência na tradução portuguesa, que não me parece suficientemente explicativa), comunicativa, testemunhal e ideológica. As mais úteis talvez sejam a textual e a ideológica. Mas, mais uma vez, isto tem interesse em termos teóricos, não em termos práticos (aliás, há outras classificações, v. por exemplo em Aguiar e Silva p. 759).


3. Narrador: Tempo da narração

• Narrador posterior (ou ulterior)
• Narrador anterior
• Narrador simultâneo 
• Narrador intercalado

Descobrir qual é a posição temporal do narrador em relação à história que está a contar é quase um tropismo, de tão evidente que é: o narrador ou conta a história depois dela ter acontecido (narrador posterior ou narração ulterior), ou antes dela ter acontecido (sonhos ou profecias; narrador ou narração anterior), ou ao mesmo tempo que ela acontece (narração simultânea) ou uma mistura das três (narração intercalada). 

Esta classificação de Genette (DR pp. 228-234; NDR pp. 52-55 e 87) tem certamente mérito teórico (para a análise crítica de narrativas clássicas, por exemplo), mas não consigo ver como é que estar sempre consciente da posição do narrador pode ser útil na prática da escrita (talvez para algum efeito estilístico?). 

[N.B. Não confundir o tempo da narração nem com o tempo do discurso, nem com o tempo da história.]


4. Narratário

• Narratário extradiegético ou intradiegético (ou metadiegético)
• Narratário heterodiegético ou homodiegético

O narratário é uma entidade abstracta que, por definição, existe obrigatòriamente onde exista um narrador: se o narrador conta uma história, conta-a a alguém; esse alguém é o narratário. Se o narrador é uma personagem a contar uma história a outra personagem, esta segunda é a narratária. Se o narrador não for uma personagem, estará a contar a história a um narratário não especificado (que se poderia identificar com o «leitor ideal», NDR p. 91, mas v. a grande diatribe que Genette faz contra este e outros conceitos supérfluos, NDR pp. 93-107).

Daqui se vê que narrador e narratário estarão sempre no mesmo nível e que, portanto, a mesma classificação criada por Genette para o narrador serve também para o narratário: onde houver um narrador extradiegético, haverá um narratário extradiegético; onde o narrador for intradiegético, o narratário será intradiegético. Genette discorre sobre o narratário em DR pp. 265-267 e NDR pp. 90-93, mas remete para Gerald Prince (1973) “Introduction à l’étude du narrataire” Poétique 14:178-196, que considera um estudo mais competente.

A distinção entre homodiegético e heterodiegético também se poderia aplicar ao narratário, mas Genette não a faz explìcitamente. Porém, menciona um caso particular (NDR p. 92): o «narratário-herói», que resulta numa história contada na 2.ª pessoa verbal («Tu és...», «Vós fizestes...», «Você tem...»), que Genette considera uma variante de narrador heterodiegético, já que este foi definido por não falar na 1.ª pessoa (e não por falar apenas na 3.ª). Ali o narrador (heterodiegético) falará do narratário enquanto personagem, para o narratário enquanto tal (por definição igualmente heterodiegético, portanto, ainda que pudesse parecer homodiegético).

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

A Narrativa de Ficção ― COMPOSIÇÃO (I)

COMPOSIÇÃO (recitação, redacção)

1. Géneros narrativos 

• Conto 
• Novela 
• Romance 

Há três modos literários: o narrativo (normalmente em prosa), o lírico (normalmente em poesia, mal haja a prosa poética) e o dramático (o teatro, supostamente um misto dos outros dois), uma classificação que aparece sob várias guisas desde Platão, Aristóteles e Horácio até hoje (v. Aguiar e Silva pp. 339s). O modo narrativo é associado ao texto em prosa, mas pode muito bem existir em poesia (aliás, o poema épico é clàssicamente incluído no modo narrativo e não no lírico), para não falar do relato oral (dramatizado?), que seria a origem da narrativa. Dentro do modo narrativo, consideram-se três gêneros principais de narrativa ficcional: o conto, a novela e o romance.

Massaud Moisés descreve e analisa maravilhosamente cada um deles no seu livro A Criação Literária ― Prosa I (1967). Em vez de «géneros» também se lhe chamam tipos, espécies, fórmas, fôrmas, subgéneros (se os modos forem chamados de gêneros), etc. Na minha cabeça faria sentido que, tal como na música temos a forma sonata, a forma ternária, a forma rondó, etc., na literatura teríamos a forma romance, a forma novela, a forma conto, etc. (v. Aguiar e Silva pp. 385s, 596-604, 639-646).

“Muito mais complexo que o problema das fôrmas poéticas é o das fôrmas em prosa. Primeiro, porque não se trata apenas de descrevê-las, (...) mas de diferençá-las. Segundo, porque constitui problema ainda aberto e de notória atualidade. A caracterização e o histórico das fôrmas poéticas pertencem à retórica tradicional, enquanto a distinção e a análise das fôrmas em prosa constituem questões da moderna teoria literária.” (Moisés, Criação p. 19)

“O aspecto numérico pode confundir o observador que relegar a segundo plano o conteúdo e a estrutura das obras. Se é verdade que o conto encerra breve dimensão, também é certo que isso decorre de fatores intrínsecos: os contos não são contos porque têm poucas páginas, mas, ao contrário, têm poucas páginas porque são contos.” (Moisés, Criação p. 24)

“Mas, que ingredientes são esses? (...) A ação, as personagens, o tempo, o espaço, a trama, a estrutura, o drama, a linguagem, o leitor, a sociedade, os planos narrativos, etc. Porque comuns ao romance, à novela e ao conto, podem levar ao equívoco de supor improcedentes todas as tentativas de estabelecer fronteiras entre as três fôrmas. O fato de o conto abranger ingredientes do romance não invalida a distinção entre as duas fôrmas, uma vez que se movem no mesmo território  a prosa de ficção. O que resta firmar é a sua diferença, calcada na densidade, intensidade e arranjo dos componentes: a título de exemplo, as personagens do conto discrepam das que protagonizam o romance e a novela por sua densidade, intensidade e estrutura.” (Moisés, Criação p. 25)

O conto é uma narrativa em que os elementos formam uma unidade sintética, isto é, poucas personagens, circunstância pouco caracterizada, um único conflito, que é resolvido; narração é o recurso mais usado; descrição e dissertação tendem a anular-se:

|___|    Unidade dramática

A novela é uma narrativa em que a acção tem a primazia e onde os eventos e as cenas se sucedem em ritmo rápido até ao clímax; número ilimitado de personagens; liberdade de espaço e tempo; diálogo e narração são os recursos mais usados; descrição pode estar presente (v. p. ex. Moisés pp. 103s). Sucessividade dramática: continuidade pela permanência de uma ou mais personagens, ou continuidade por substituição:

|___| > |___| > |___||___| > |___| > |___|  
Pluralidade mas sucessividade dramáticas

O romance é uma narrativa que envolve um número considerável de personagens, circunstâncias várias (liberdade total de espaço e tempo), múltiplos conflitos e intrigas paralelas que resolvem (ou não) todas no final (v. Aguiar e Silva pp. 671s). Diálogo, narração e descrição presentes; dissertação pode estar presente:

     |___| |___|
|___| |___| |___|    Pluralidade e simultaneidade dramáticas
     |___| |___|

Os originais destes esquemas gráficos são de Massaud Moisés (1967) A Criação Literária  Prosa I. Podem ser encontrados em Mário Carmo & M. Carlos Dias (1976, p. 161), em Gomes (1987, p. 98) e em Veríssimo et al. (1999, pp. 307-308). Parece-me que são excelentes visualizações das semelhanças e diferenças entre estes gêneros narrativos, ainda que a geometria de linhas rectas e ângulos não agradasse inteiramente a Massaud Moisés!

Para além destas «fôrmas» principais, há ainda o conto de fadas (fábula, conto maravilhos, conto popular, tale), a epopeia (poema épico), a prosa poética (Veríssimo et al. 1998, p. 32), o apólogo, a anedota, a parábola (Gomes, 1987, p. 89) como géneros narrativos ficcionais, e também ensaios, crónicas, biografias, memórias, artigos que podem ser mais ou menos ficcionados (Veríssimo et al. 1999, p. 306), alguns também estudados por Massaud Moisés (A Criação Literária ― Prosa II, 1967).


2. Gramática da língua

• Morfologia
• Sintaxe
Análise de texto

Saber a gramática da língua em que se escreve (as normas que a regulam) é essencial para redigir uma narrativa. As partes da gramática da língua portuguesa aqui mais necessárias são a morfologia (forma e flexão das palavras), a sintaxe (estrutura da frase) e a análise de texto. Também fazem parte da gramática a fonologia (função dos sons), a fonética (produção dos sons), a ortografia (representação dos sons), a pontuação (sinais gráficos), a semântica (significados) e a pragmática (comunicação), mas penso que são aqui supérfluas. Há ainda o léxico (totalidade das palavras), que, se bem entendo, situa-se fora da gramática. Uma gramática pode ser normativa (ou prescritiva, porque prescreve uma norma), descritiva (porque apenas descreve uma norma), histórica (porque pesquisa a história da norma) ou comparativa (porque compara várias normas ou várias línguas). Naturalmente, não vou compilar toda uma gramática: vou apenas listar os tópicos que me parecem mais importantes para quem escreve narrativas.

Morfologia 
Classes de palavras, Formação de palavras, Família de palavras.

Substantivos (= nomes), Adjectivos, Determinantes (incluindo Artigos), Verbos (Flexão verbal [modo, tempo, número, pessoa, voz, aspecto]; Conjugações 1 activa – formas simples «partirei», 2 activa – formas compostas «terei partido», 3 passiva «serei partido», 4 reflexa «partir-me-ei», 5 pronominal «parti-lo-ei» e 6 pronominal reflexa «partir-m[e-l]o-ei»; Vozes activa, passiva e reflexiva), Pronomes (e Locuções pronominais)Advérbios (e Locuções adverbiais), Quantificadores (e Locuções quantificadoras), Preposições (e Locuções prepositivas), Conjunções (e Locuções conjuncionais), Interjeições (e Locuções interjectivas), Partículas expletivas ou de realce.

NOTA: segundo a terminologia do Dicionário Terminológico (2010), os numerais cardinais estão agora dentro dos quantificadores, mas os numerais ordinais são agora adjectivos numerais; as conjunções «porém», «todavia» e «contudo» são agora advérbios conectivos; os pronomes indefinidos também funcionam como quantificadores ou como determinantes («uso pronominal dos quantificadores e dos determinantes indefinidos»).

Verbos auxiliares: ter e haver (tempos compostos), mas também ser e estar (voz passiva), dever e poder, começar e andar, ir e vir; e ainda acabar de, deixar de, haver de, ter de, ter que, estar para. (Coelho & Costa 1997, p. 198; Anabela Gonçalves & Teresa da Costa 2002 (Auxiliar a) Compreender os Verbos Auxiliares, Edições Colibri, pp. 97-98)

Sintaxe
Frase, oração (= proposição) e período. Elementos estruturais, Funções sintácticas. Concordância, Regência.

Sujeito, Predicado, Vocativo, Modificador da frase (= Complemento circunstancial). Complemento directo (= BR objecto directo), Complemento indirecto (= BR objecto indirecto), DT Complemento oblíquo (= Complemento circunstancial ou Complemento directo precedido de preposição = BR objecto directo preposicionado), Complementos circunstanciais (= DT modificadores do predicado = BR adjuntos adverbiais). Predicativo do sujeito, Predicativo do complemento directo (= BR predicativo do objecto). Agente da passiva (e Paciente da passiva). Atributo (= DT modificador restritivo = BR adjunto adnominal), Complemento determinativo (= DT complemento do nome = BR adjunto adnominal), Aposto ou continuado (= DT modificador apositivo). 

NOTA: pode haver orações sem predicado («Histórias!») ou com predicado subentendido («O homem pensa; a Natureza, não.»); BR, terminologia usada no Brasil (Nomenclatura Gramatical Brasileira, 1959, usada na Gramática de Cunha & Cintra 1985). DT, terminologia do Dicionário Terminológico (2010). As restantes são terminologias da Nomenclatura Gramatical Portuguesa (1967), a «tradição gramatical» usada oficialmente em Portugal até 2004. «A terminologia dos complementos está longe de estar uniformizada.» (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 29, p. 189)

Período: oração ou conjunto de orações que exprimem uma ideia completa. Oração absoluta ou independente. Orações coordenadas. Oração principal (ou subordinante) e orações subordinadas. 

«(...) um fonema ou um conjunto de fonemas formam uma sílaba; uma sílaba ou um conjunto de sílabas formam uma palavra; uma palavra ou um conjunto de palavras formam uma oração ou proposição; uma oração ou proposição ou um conjunto delas formam um período; um período ou um conjunto de períodos formam um parágrafo; e, finalmente, o conjunto dos parágrafos forma o discurso.» (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 29, p. 189)

Articulação da frase: frases simples (uma só oração) ou complexas (duas ou mais orações); frases longas ou curtas; ordem directa ou inversa dos elementos da frase; articulação das orações (parataxe, coordenação, subordinação) (Moreira & Pimenta 1999, p. 355).

Articuladores do discurso: «isto é»; «por exemplo»; «todavia»; «no entanto»; «mas»; «pois»; «daí»; «quer»; «assim sendo»; «por outro lado»; «em suma»; «antes»; «embora» (Veríssimo 1998, pp. 335-336).

Análise de texto
Análise morfológica: 
«Hoje a neve cobriu os prados e as casas com um manto cândido.»
1. hoje – advérbio (de tempo)
2. a – artigo (definido, feminino, singular)
3. neve – substantivo (comum, feminino, singular)
4. cobriu – verbo (3.ª conjugação, 3.ª pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo, voz activa)
5. os – artigo (definido, masculino, plural)
6. prados – substantivo (comum, masculino, plural)
7. e – conjunção (copulativa)
8. as – artigo (definido, feminino, plural)
9. casas – substantivo (comum, feminino, plural)
10. com – preposição
11. um – artigo (indefinido, masculino, singular)
12. manto – substantivo (comum, masculino, singular)
13. cândido – adjectivo (masculino, singular)

Análise sintáctica da oração (a frase simples):
«Hoje a neve cobriu a paisagem com um manto cândido.»
1. hoje –  = modificador da frase = complemento circunstancial
2. a neve – sujeito
3. cobriu – predicado 
4. a paisagem – complemento directo = objecto directo
5. com um manto –  complemento circunstancial = modificador do predicado = adjunto adverbial
6. cândido – atributo = modificador restritivo = adjunto adnominal
NOTA: na verdade, à função de predicado corresponde todo segmento «cobriu a paisagem com um manto cândido», estando, portanto, os complementos dentro do predicado (e «cândido» estará, por sua vez, dentro do complemento circunstancial, que, completo, será «com um manto cândido»); mas, para facilitar a apresentação da análise, divido logo a oração nas menores partes.

Análise sintáctica do período (a frase complexa): 
«Hoje a neve cobriu a paisagem com um manto cândido e os meninos decidiram que tinham esperado este momento para pegar nos trenós e irem divertir-se.»
1. hoje a neve cobriu a paisagem com um manto cândido 
– oração coordenada com a 2
2. e os meninos decidiram 
– oração coordenada com a 1, principal da 3
3. que tinham esperado este momento 
– oração subordinada à 2, principal da 4
4. para pegar nos trenós 
– oração subordinada à 3, coordenada com a 5
5. e irem [eles: sujeito oculto] 
– oração coordenada com a 4, principal da 6
6. divertir-se 
– oração subordinada à 5
NOTA: nesta frase a subordinação é recursiva (umas subordinadas dentro de outras subordinadas); a classificação das orações coordenadas e subordinadas é mais intricada do que isto, mas deixo-a para os taxinomistas.


3. Valorização estilística

• Oratória, retórica e estilística
• Figuras de estilo, vícios de linguagem
• Outros processos de valorização estilística

“Estilo é o modo de escrever as palavras, as frases, os parágrafos e, enfim, todo o texto — e, importante, não está submisso às regras formais da língua” (Assis Brasil p. 523). Vou aqui chamar de valorização estilística a um conjunto de recursos expressivos e de procedimentos lingüísticos que visam criar no leitor ou na ouvinte um efeito desejado. Porque nasce da imaginação da autora, o valor estilístico tem infinitas possibilidades de expressão: “A utilização de uma adjectivação sugestiva, a ligação inusitada de um substantivo a um adjectivo, o uso de uma pontuação que sugira o estado de alma, a opção por uma sequência de vocábulos de um determinado campo semântico, a utilização de processos enfáticos, etc.” (in Ciberdúvidas daLíngua Portuguesa [consultado em 12-02-2022]).

“Como determinar os elementos estruturais que condicionam a «temperatura» de um texto literário?  A sua visualidade possui imagens nítidas ou amorfas, brilhantes ou embaçadas, estáticas ou dinâmicas? A sua luminosidade é clara ou escura, cromática ou monocroma, refulgente ou opaca? O seu ritmo é lento ou acelerado, marcado ou difuso? A sua musicalidade é sonora ou surda, aguda ou grave, estridente ou suave, monótona ou variada? A sua atmosfera é leve ou pesada, fria ou quente, abafada ou arejada, expansiva ou constrangedora?” (Novaes Coelho 1974, pp. 94s).

As actuais questões de estilo têm origem na oratória clássica e na retórica literária, que desaguaram na moderna estilística, até que “estilo passou a significar o modo pessoal de escrever” (Gomes 1987, p. 45). O plano da oratio (oração = oratória) tem 5 partes (Barthes 1970, p. 176):
1. exórdio;
2. narração ou acção (relato dos factos);
3. argumentação ou prova;
4. digressão;
5. epílogo.
Este plano ainda hoje se vê na típica estrutura de qualquer texto em 3 partes: introdução (= exórdio), desenvolvimento (= narração + argumentação + digressão) e conclusão (= epílogo).

A retórica literária (escrita) vem da retórica clássica (oral mais do que escrita) em que um discurso tem 5 fases:
1. invenção (eresis, inventio = achar o que dizer);
2. disposição (taxis, dispositio = o plano, a ordem das partes do discurso);
3. elocução (lexis, elocutio = as figuras, isto é, os ornamentos do discurso);
4. memória (mneme, memoria = memorizar o discurso) e
5. pronunciação (hypokrisis, pronuntiatio = proferir o discurso oralmente).  
A invenção era a recolha de argumentos para a defesa de uma causa; a disposição era a organização dos argumentos; a elocução era a parte relativa à escolha das palavras e do estilo; a memória era o confiar do discurso à memória, sabê-lo de cór; e a pronunciação era proferir o discurso oralmente, com dicção e gesticulação escolhidas para o efeito desejado.

No contexto do trivium medieval e renascentista (grammatica, rhetorica e dialectica), Petrus Ramus, um autor muito influente, decide retirar à retórica a inventio e a dispositio e passá-las para o âmbito da dialética (ou lógica, como também se lhe começou a chamar). Ora, como a memoria e a pronuntiatio têm pouco a ver com a comunicação escrita e são mais da esfera da comunicação oral, a retórica escrita ficou reduzida à elocutio, isto é, às figuras de retórica, a retórica literária, daí o sentido pejorativo da palavra «retórica» quando designa algo de apenas superficial ou ornamental. Com essas figuras se desenvolveu modernamente a estilística, que ainda adoptou uma das virtudes da elocutio, a clareza, entre outras qualidades do estilo (por exemplo, simplicidade, precisão, concisão, originalidade, ordem, adequação, etc.) (v. López Cano 1975, pp. 10s; todo o livro de Mateus 2018; mas principalmente a excelente explicação da passagem da retórica clássica [oratória] para a estilística moderna [textual] em Segre 1985, pp. 225s; ver também Barthes 1970).

"A estilística se preocupa com a(s) maneira(s) de exprimir o pensamento por meio da linguagem e tem como objeto de estudo a expressão linguística e mais precisamente o estilo. O pensamento pode ser expresso pelo léxico, pelas estruturas gramaticais da língua, mas também pelas circunstâncias, pelas motivações que estão por trás da produção de uma obra. É essa dicotomia que faz com que alguns estudiosos da estilística valorizem apenas o nível linguístico da expressão, enquanto outros associam a estilística apenas à literatura." (Cardoso 2017, Estilo e discurso literário)

Valor figurado das palavras: sentido diferente do que têm na realidade (Cardona & Santos 1994, p. 256). A melhor ferramenta que eu conheço para compreender as figuras de estilo ainda é a claríssima página de Márcia Fernandes, onde as figuras estão demonstradas com tiras de banda desenhada (https://www.todamateria.com.br/figuras-de-linguagem/). Esta categorização em quatro grupos, sendo apenas uma das muitas possíveis, é a que aparece (com mais ou menos variações) nas fontes que consultei:

1. Fónicas, fonéticas ou do som: aliteração, paronomásia, assonância, onomatopeia, aférese, elisão, síncope.

2. 
Sintácticas, morfossintácticas ou de construção: elipse, zeugma, hipérbato, polissíndeto, assíndeto, anacoluto, pleonasmo, silepse, anáfora, quiasmo, paralelismo ou simetria, anástrofe ou inversão.

3. Semânticas ou de palavras (tropos): metáfora, comparação, imagem, metonímia, sinédoque, antonomásia, catacrese, sinestesia, perífrase, metalepse; alegoria, símbolo.

4. De pensamento: hipérbole, eufemismo, disfemismo, litotes, ironia, personificação ou prosopopeia, antítese, paradoxo, gradação, apóstrofe, preterição.

Reuter (1997, pp. 111s) considera que, na prática da narrativa contemporânea, não se encontram todas as figuras, mas apenas três grandes tipologias de figuras
a. Comparação, metáfora e imagem; 
b. Metonímia e sinédoque; 
c. Hipérbole, elipse e litotes. 

Semelhantes às figuras, os vícios de linguagem são os seguintes: cacofonia, ambiguidade, arcaísmos, solecismos, barbarismos, neologismos, estrangeirismos, eco, pleonasmo vicioso (v. Gomes 1987, pp. 62-63; Martino 2014, pp. 579s).

Outros processos de valorização estilística
Para além dos seus significados habituais, os seguintes tópicos adquirem matizes expressivos (v. Carmo & Dias 1977, pp. 85s ― mas principalmente a parte sintáctica em Vázquez Cuesta & Mendes da Luz 1971, que é particularmente rica e completa):
1.      Presença ou omissão do artigo:
a.       presença do artigo definido (afectividade ou familiaridade; valor depreciativo);
b.      omissão do artigo definido (acumulação ou rapidez nas enumerações; valor afectivo);
c.       presença do artigo indefinido (intensificação; marcação de símbolos);
d.      omissão do artigo indefinido (referência a uma espécie ou categoria).
2.      Valor afectivo do pronome (familiaridade; simpatia; respeito; exclamação; recriminação; ironia; desprezo).
3.      Expressividade do adjectivo:
a.       anteposto ao substantivo;
b.      superlativado (pela repetição; pelo sufixo diminutivo; por frases populares);
c.       substantivado;
d.      empregado em série (para indicar ampliação da forma ou do conteúdo da frase; ou plenitude transbordante; ou percepção dual da realidade; ou ritmo e melodia);
e.       transposto na frase (adjectivo expressivo ― variante de hipálage e de sinédoque).
4.      Valor expressivo do verbo:
a.       Tempo: presente histórico (ou narrativo) ― com um valor temporal de pretérito perfeito, que surge no sintagma narrativo para atualizar um evento passado, conferindo-lhe maior vivacidade (Reis & Lopes 1988, p. 282);
b.      Tempo: presente momentâneo, durativo, habitual (Veríssimo et al. 1999, p. 297-299).
c.       Tempo: pretérito imperfeito descritivo (ou narrativo);
d.      Tempo: pretérito imperfeito iterativo, durativo (substitui o presente ou o imperativo para suavizar uma afirmação, serve de suporte ao discurso indirecto livre; Veríssimo et al. 1999, p. 297-299);
e.       Tempo: pretérito perfeito simples (indica uma acção que se produziu num certo momento no passado; Veríssimo et al. 1999, p. 297-299).
f.       Tempo: pretérito perfeito composto (expressa a repetição de um acto ou a sua continuidade até ao presente; Veríssimo et al. 1999, p. 297-299).
g.      Tempo: pretérito mais-que-perfeito (em substituição do condicional composto ou do pretérito imperfeito do conjuntivo);
h.      Tempo: pretérito mais-que-perfeito simples (refere-se a uma acção ocorrida antes de outra acção já passada; Veríssimo et al. 1999, p. 297-299).
i.        Tempo: futuro simples (para indicar um estado de dúvida ou uma ordem);
j.        Gerúndio (introduz um acção anterior, simultânea ou posterior à da acção principal; progressão indefinida; acção durativa quando associado aos verbos ir, vir ou estar; Veríssimo et al. 1999, p. 297-299).
k.      Modo: indicativo com valor de imperativo;
l.        Modo: conjuntivo em orações independentes (desejo; ordem; exclamação);
m.    Modo: infinitivo com valor de imperativo;
n.      Voz: activa (chama a atenção para o sujeito);
o.      Voz: passiva (dá relevo ao objecto ou à própria acção);
p.      Aspecto: durativo ou imperfectivo (acção inacabada);
q.      Aspecto: conclusivo ou perfectivo (acção acabada);
r.        Aspecto: incoativo (início da acção);
s.       Aspecto: resultativo (fim da acção);
t.        Aspecto: obrigativo (obrigatoriedade da acção).
5.      Partícula expletiva ou de realce (aparentemente desnecessária, realça o sentido da frase: é que; ; ; que; etc.).
6.      Expressividade do advérbio:
a.       sugerindo imagens (em vez do adjectivo);
b.      como elemento metafórico;
c.       provocando emoções diversas;
d.      como elemento revelador de animismo;
e.       associado ao adjectivo (função atributiva);
f.       como elemento antitético do verbo;
g.      imprimindo musicalidade à frase.
7.      Interjeição (exprime estados emocionais que, para serem traduzidos, necessitariam de muitas palavras).
8.      Sinais de pontuação (exclamação; reticências).

Suspensão da frase: a frase fica por acabar, para que o leitor use a sua imaginação. Ex. «E há tantas árvores no campo...» (Gomes et al. 1993, p. 202)

Repetição: o uso intencional da repetição intensifica a ideia a transmitir. Ex. «Era uma vez uma velha muito velha e muito feia e muito má...»

“Atente-se, a título de exemplo, na forma como o narrador de O crime do padre Amaro se refere ao Libaninho: «Rosto gordinho», «passinho miúdo», «babando-se de ternura devota», «saracoteando-se, com um pigarrinho agudo», «a sua vozinha era quase chorosa» (p. 61-62) — o traço estilístico dominante é, sem dúvida, a sobrecarga de diminutivos, que neste contexto funcionam conotativamente, indiciando um temperamento efeminado e beato sobre o qual recai a ironia do narrador.” (Reis & Lopes 1988, p. 165)

Ainda sobre o valor expressivo do verbo
Alternância do pretérito imperfeito com o pretérito perfeito. O imperfeito implica ausência de limites de um processo; o perfeito tende a delimitar e encerrar um processo. O perfeito faz progredir a acção e, como tal, é freqüentemente usado para os acontecimentos principais; o imperfeito é usado para acontecimentos secundários, que ajudam a compreender, mas não fazem avançar a acção. Por exemplo, numa narrativa ideal, se suprimíssemos as orações com verbos no imperfeito, a imagem global das acções continuaria perceptível; essa imagem seria completamente destruída se suprimíssemos as orações com o verbo no perfeito. (Reuter 1997, pp. 98-100)

“É a ambigüidade desse tempo verbal [o pretérito imperfeito] que o torna extremamente adequado à narração de sonhos ou pesadelos. [...] Grande parte do prazer que se tem em ler Sylvie deve-se a uma alternância muito bem calculada entre o [pretérito] imperfeito e o pretérito perfeito, o emprego do imperfeito criando uma atmosfera onírica na história.” (Umberto Eco, Seis passeios, 1.º passeio pp. 17s)

“O emprego do particípio desacompanhado de auxiliar exprime fundamentalmente o estado resultante de uma ação acabada. Além disso, o particípio dos verbos transitivos tem valor passivo. Portanto, ao utilizar esses dois termos, o narrador consegue, ao mesmo tempo, caracterizar um estado do sujeito «Ateneu» e apontar a ação e o agente que provocam esse estado. Por meio dessa estratégia lingüística, facilmente verificável pela análise gramatical, o sujeito do verbo «ser» torna-se passivo de uma ação que tem o seu agente declarado.” (Brait 1985, p. 21)

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.