segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Tratamento ortográfico e estilístico de um muito citado excerto de Castelao

Alfonso Daniel Rodríguez Castelao, Sempre en Galiza (1944), p. 24 (no final do capítulo IX do «Adro»). Meme do Orgullo Galego, tirado da sua página do Facebook (2023-01-07).

É fácil ver que, com pequeníssimos ajustes ortográficos e estilísticos, a língua portuguesa não é senão a língua galega com outra vestimenta. Vou usar um excerto de um texto de Castelao para tentar mostrar isso. 

[Castelao foi um escritor e activista galego da primeira metade do século XX. E não falta nenhum til ao nome: é mesmo para se ler Castelau, como bacalhau; se fosse para ser Castelão teria de ficar Castelán ou Castelom na ortografia galega.]

Em 1 temos o texto original, tal como aparece no meme. Em 2 temos apenas a substituição do x por g, do n final por m, do z por ç, do s único intervocálico por ss, e a colocação do hífen nos verbos pronominais. Em 3 temos a transformação do om em ão, e da 2.ª pessoa do plural tradicional para a forma consagrada nas gramáticas normativas (uso do centro-sul de Portugal, Brasil e restantes países) ― e já é português dito correcto! Podia ter parado aqui. Mas fui um bocadinho mais longe: em 4 fiz mais umas minúsculas mudanças para melhor compreensão, e em 5 pus como seria mais usual dizer-se no uso moderno, com a 3.ª pessoa dos verbos a fazer vez da 2.ª.

1. «Irmáns: Fuxide sempre dos parvos. Non vos arrimedes a eles, porque poden roubarvos algo da vosa razón e transmitirvos a súa parvada. Deixádeos pasear, falar, danzar e medrar no seu mundo. E se algún parvo chega a ser autoridade non mostredes asombro, porque son cousas do sistema que combatimos e dos tempos en que nos cadrou vivir.»

2. «Irmans: Fugide sempre dos parvos. Nom vos arrimedes a eles, porque podem roubar-vos algo da vossa razom e transmitir-vos a sua parvada. Deixade-os passeiar, falar, dançar e medrar no seu mundo. E se algum parvo chega a ser autoridade nom mostredes assombro, porque som cousas do sistema que combatemos e dos tempos em que nos quadrou viver.»

3. «Irmãos: Fugi sempre dos parvos. Não vos arrimeis a eles, porque podem roubar-vos algo da vossa razão e transmitir-vos a sua parvada. Deixai-os passeiar, falar, dançar e medrar no seu mundo. E se algum parvo chegar a ser autoridade não mostreis assombro, porque são cousas do sistema que combatemos e dos tempos em que nos quadrou viver.»

4. «Irmãos: Fugi sempre dos parvos. Não vos achegais a eles, porque podem roubar-vos algo da vossa razão e transmitir-vos a sua parvoíce. Deixai-os passear, falar, dançar e crescer no seu mundo. E se algum parvo chegar a ser autoridade não mostreis assombro, porque são coisas do sistema que combatemos e dos tempos em que nos calhou viver.»

5. «Irmãos: Fujam sempre dos parvos. Não se acheguem a eles, porque podem roubar-lhes (a vocês) algo da sua (de vocês) razão e transmitir-lhes (a vocês) a sua (deles) parvoíce. Deixem-nos passear, falar, dançar e crescer no seu mundo. E se algum parvo chegar a ser autoridade não mostrem assombro, porque são coisas do sistema que combatemos e dos tempos em que nos calhou viver.»

E deixo aqui uma frase (que tirei já não sei de que fonte galega) para mostrar que até a sintaxe da língua é a mesma, só que com as suas variações regionais:

«Mas então como adquirem o reintegrado as pessoas?» ― sintaxe galega
«Mas então como é que as pessoas adquirem o reintegrado?» ― sintaxe portuguesa
«Mas então como as pessoas adquirem o reintegrado?» ― sintaxe brasileira

as pessoas ― sujeito
adquirem o reintegrado ― predicado (verbo + complemento directo)
é que ― partícula expletiva