sexta-feira, 21 de abril de 2023

Elina Albach toca Johann Sebastian Bach

Partita no. 5 in G major BWV 829 - Albach | Netherlands Bach Society

Principalmente a interpretação do minueto (15:48), com uso de ambos os teclados, é fenomenal.

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Heterografias, diferenças ortográficas e ortografia pessoal ― notas avulsas

Há quem tenha muitos problemas com ortografias pessoais. Porque toda a gente devia escrever da mesma maneira, dizem. E este preconceito está na base das regras ortográficas de 1990, cujo objectivo declarado era fazer com que as duas maneiras oficiais de escrever português se refundissem numa só. Porém, esse objectivo não pode ser atingido com estas regras: se antes havia duas ortografias para a língua, agora há... três! Porque há o uso brasileiro, o uso europeu e o uso angolano, porque Angola, o segundo país com mais falantes nativos do idioma, mantém em uso oficial as regras ortográficas de 1945. E se contássemos o idioma galego moderno seriam cinco ortografias, já que os galegos usam duas, uma oficial e outra, digamos, natural.

Mas macro-considerações à parte, mesmo se se aplicasse a ortografia de 1990 universalmente, continuariam a existir inúmeras palavras que se escreveriam diferentemente entre países ― ou mesmo entre regiões do mesmo país. Não me refiro, claro, ao uso de palavras diferentes para designar um mesmo conceito («ônibus = machimbombo = autocarro»), mas à mesma palavra que tem grafia ligeiramente diferente mesmo aplicando todas as regras de 1990. Vejamos exemplos:

Palavras:
aluguer ― aluguel
amígdala ― amídala
amnistia ― anistia
beringela ― berinjela
bosão ― bóson
cãibra ― câimbra
colagénio ― colágeno
câmara ― câmera
camião ― caminhão
casino ― cassino
champô ― xampu
connosco ― conosco
comummente ― comumente
desporto ― esporte
dezasseis ― dezesseis
dezassete ― dezessete
dezanove ― dezenove
eletrão ― elétron
equipa ― equipe
escuteiro ― escoteiro
esparguete ― espaguete
estado-unidense ― estadunidense
fotão ― fóton
golo ― gol
hidroelétrico ― hidrelétrico
húmido ― úmido
ião ― íon
íman ― ímã
indemne ― indene
K [capa] ― K [cá]
lavandaria ― lavanderia
maquilhagem ― maquiagem
microvilosidade ― microvilo
missanga ― miçanga
Neptuno ― Netuno
o/a nómada ― o/a nômade
omnisciente ― onisciente
o palindroma ― o palindromo
percentagem ― porcentagem
quotidiano ― cotidiano
rasto ― rastro
registo ― registro
ruptura ― rutura
súbdito ― súdito
subtil ― sutil
terramoto ― terremoto
verosímil ― verossímil

Aquilo é uma lista alfabética, mas consigo organizar algumas das palavras em grupos, seja pela falta de uma consoante, pela alteração de uma letra ou fonema, pela terminação, etc.

amígdala ― amídala
amnistia ― anistia
indemne ― indene
Neptuno ― Netuno
omnisciente ― onisciente
ruptura ― rutura
connosco ― conosco
comummente ― comumente

beringela ― berinjela
missanga ― miçanga

barião ― bárion
bosão ― bóson
electrão ― elétron
fotão ― fóton
ião ― íon
neutrão ― nêutron
protão ― próton
etc...

câmara ― câmera
dezasseis ― dezesseis
dezassete ― dezessete
dezanove ― dezenove
equipa ― equipe
escuteiro ― escoteiro
lavandaria ― lavanderia
terramoto ― terremoto

champô ― xampu
desporto ― esporte
esparguete ― espaguete
golo ― gol
maquilhagem ― maquiagem

estado-unidense ― estadunidense
hidroelétrico ― hidrelétrico

aluguer ― aluguel
o/a nómada ― o/a nômade
o palindroma ― o palindromo
percentagem ― porcentagem

camião ― caminhão
húmido ― úmido
íman ― ímã
quotidiano ― cotidiano
registo ― registro
súbdito ― súdito
subtil ― sutil

A meu modesto ver, se os lingüistas insistem mesmo em que é preciso escrever cada palavra de uma só maneira, estas é que eram as palavras cuja ortografia se deviam preocupar em unificar! Porque não há uma razão válida para escolher entre uma ou outra forma da palavra ― quando muito pode-se escolher um critério, ou mais etimológico («berinjela», do árabe, e todas as palavras do árabe se transcrevem com j para o som /ʒ/), ou mais consagrado pelo uso («beringela», forma que aparece em todos os dicionários desde Bluteau, excepto no Aurélio). Não havendo consenso, escolher-se-ia uma das possibilidades em troca-por-troca, com sensatez e boa vontade: a mim, não me incomodaria nada escrever «conosco, úmido, registro» se do outro lado aceitassem escrever «amnistia, estado-unidense, ião», por exemplo. Fazer esta escolha seria mais unificador do que prescrever a ausência ou não de consoantes diacríticas (ditas «consoantes mudas») ou a alternância de acento tónico entre agudo e circunflexo. 

Os termos científicos, principalmente, que tantas vezes vêm de línguas estrangeiras por traduções feitas ad hoc pelos próprios cientistas, quase sempre sem competências de tradução, têm ortografias tão díspares que dificultam muito a troca de ideias em português! Não me refiro aqui a casos de decalque direito, sem razão de ser, de outra língua, como «a mídia», muito usado no Brasil, tida como feminina talvez porque acaba em a, mas vindo da pronúncia inglesa da palavra latina media, plural de medium, que em português se diz «meio», logo deveria ser «os media», plural masculino, ou melhor ainda «os meios». Coisas destas eu acho simplesmente um erro, como o é reset, palavra muito usada em Portugal, mas pronunciada /rèzéte/ em vez de /risséte/, e posta como substantivo («o /rèzéte/») quando é um verbo (to re-set) e, como tal, devia usar-se simplesmente «repôr».

Há ainda outras divergências que não são niveladas pelas regras de 1990, como nos acentos, e noutras que são mais de uso e de sintaxe mas que talvez pudessem ser arrumadas numa ortografia coesa ― ou melhor ainda: assumir de vez que «prémio» e «prêmio» são a mesmíssima palavra, e não duas palavras cada uma com a sua ortografia, como tanto se vê por essa Wikipédia afora!

Acentos:
bebé ― bebê
cónego ― cônego
[forma ― fórma ― fôrma]
gémeo ―gêmeo
judo ― judô
metro ― metrô

Locuções:
no/ao meio de ― em meio a/ao
debaixo ― embaixo
levar a conhecer ― levar para conhecer
depois de eu ter feito ― depois que eu fiz
chamar ... à/ao ― chamar de ... a/o

Género e número:
a sanduíche ― o sanduíche
a feromona ― o feromônio
a hormona ― o hormônio
a trilobite ― o trilobita
a orbital atómica ― o orbital atômico
a carpete ― o carpete
as calças ― a calça

Países e cidades:
Amsterdão ― Amsterdã
Bagdade ― Bagdá
Banguecoque ― Bancoque
Chade ― Tchade
Chéquia ― Tchéquia
Copenhaga ― Copenhague
Helsínquia ― Helsinque
Irão ― Irã
Madagáscar ― Madagascar
Mali ― Máli
Maurícias ― Maurício
Moscovo ― Moscou
Teerão ― Teerã
Vietname ― Vietnã

Mesmo com as regras de 1990 mantêm-se, divertidamente, as escritas duplas de tantas e tantas palavras típicas, com significado estável, que extravasam as fronteiras de países, regiões ou mesmo bairros. Só pelo hábito ― e não por uma imposição ― uma versão poderá suplantar outra. Nas festas da minha terra aparece sempre a tradicional discussão sobre se se escreve «febras» ou «fevras» (ou «fêveras»)! Eu advogo que nenhuma está errada e que todas se devem usar.

abdómen ― *abdome
açoute ― açoite
afouto ― afoito
arqueiro ― archeiro
assobio ― assovio
beber ― *bever ― *beuer, *buer
bouça ― boiça
cenoura ― *cenoira
cobarde ― covarde
couro ― coiro
cousa [galego] ― coisa
doudo ― doido
Douro ― Doiro
dous [galego] ― dois
entrepôr ― interpôr
espécimen ― espécime
febras ― fevras ― fêveras
flauta ― frauta
flecha ― frecha
flor ― fror
germe ― gérmen
hífen ― *hife
louça ― loiça
louco ― *loico
loura ― loira
mouro ― moiro
*noute ― noite
ouça ― oiça
ouro ― oiro
*outo ― oito
ouvir ― *oivir
papoula ― papoila
percêbes ― percêves
pouso ― poiso
planta ― pranta
pública ― *púbrica
quando ― cando [galego]
quatorze ― catorze
quatro ― catro [galego]
regímen ― regime
ruptura ― rotura
saudade ― soidade
Setúbal ― *Setúval
sobreiro ― sovereiro
tanja ― *tângera
tesouras ― tesoiras
touro ― toiro

Regressando ao assunto da ortografia pessoal, eu tendo a escrever com uma ortografia que exprima aquilo que quero dizer. Daí que faça uso do acento grave e do trema como tinha sido justificado nas regras de 1911 (modificadas em 1920 e base da acentuação do Formulário de 1943), nas quais as palavras, apesar de ficarem pejadas de acentos que antes não tinham, ficam com uma grafia muito mais legível («aqüífero», que eu já ouvi gente a ler */akífero/; «peùgada», que Camilo escrevia «piúgada», não pode ser com i porque vem de «peúga» (de «pé»), mas «peugada» tende a ser lida como ditongo, */pêugáda/).

-qüe, -que
-qüi, -qui
[saüdade]
[faïscar]
[O uso do trema para os hiatos é mais dúbio, porém, e eu tendo a usá-lo apenas no qu-, senão acaba por dividir famílias de palavras: «faïscar» mas «faísca»... E teria de ser «*caïr», «*saïr», mesmo «peügada».]

prègar
inclusivè
vicè-
Gùiana
sòmente
vàlidamente
[Sem acento tendo a ler */valìdamente/.]

E o problema das regras ortográficas de 1990 é que, justamente, não me permitem exprimir o que eu quero dizer. A palavra «coleção» sem c não se lê necessàriamente da mesma maneira que «colecção» com c: pode muito bem ler-se */cólção/, como «colesterol» é lido /cól-che-tról/ por gente portuguesa, e /có-lêss-tê-róu/ por gente brasileira. O mesmo para «direção» (*/dirção/), «diretor» (*/dirtor/); «tecto» escrito «teto» ler-se-á */têto/, e não /této/. E não apenas fonològicamente: «adoção» torna-se o acto de adoçar, e não o de adoptar. E se do substantivo «sintaxe» vem o adjectivo «sintáctico», nada impede que «sintático» (sem c) venha de *sintato, ou ― já agora ― que de «sintaxe» venha *sintáxico, *sintásico, *sintássico ou *sintácico... 

*aceção ― acepção
*adotar ― adoptar
*perceção ― percepção

afecto ― *aféto ― afeito
directo ― *diréto ― direito
su(b)jecto ― *su(b)jéto ― su(b)jeito
tecto ― *této ― teito

Por outro lado, há que admitir que o idioma falado muda. Não sou contra uma a[c]tualização da grafia que responda às necessidades da fala. Por exemplo, as palavras da família de «acção», e semelhantes, podem perfeitamente beneficiar da queda do c diacrítico. Já quase ninguém em Portugal lê */àtuar/, nem */àtividade/, nem */àtriz/, isto é, o a tende a fechar ― já não faz sentido o c; já no Brasil ele tende a ser sempre aberto, quer tenha c ou não tenha. Há vários outros exemplos:

ação, coação, exação, inação, interação, reação, redação, transação
ativo, coativo, exativo, inativo, interativo, reativo, redativo, transativo
ato, coato, exato, inato, interato, reato, redato, transato

acionar, etc.
atividade, etc.
atual, etc.
atuar, atriz

ano 1257: acçõ
ano 1340: auçom
ano 1352: aucçom
ano 1352: acção

caráter, caraterística,
ótimo, otimização,
perentório

Neste sentido a Academia das Ciências de Lisboa propõe um aperfeiçoamento da ortografia preconizada em 1990 [ref]. Eu não concordo com tudo (os grupos -ect- parecem-me particularmente discutíveis), mas eu sou apenas um amador.

ação, acionar, 
abstrato, abstracionismo, 
[afetivo,] 
atual, 
atuar, 
batizar, 
[coleção,] 
[direção, diretor,] 
exato, 
noturno, 
ótimo, otimista, 
[projeto] 

Apesar de todas estas regras e diferenças e assim-ou-assado, a base ideológica disto tudo é que me incomoda. Mas porque é que não podia haver duas maneiras de escrever a língua? E porque é que cada pessoa não pode escrever como muito bem quiser, aliás como se fazia até ao século XX? Isto ultrapassa-me.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

As Artes, um pequeno apontamento

Word cloud made with https://wordart.com/.

The Arts
Major constituents of the arts include literature – including poetry, novels and short stories, and epics; performing arts – among them music, dance, and theatre; culinary arts such as baking, chocolatiering, and winemaking; media arts like photography and cinematography, and visual arts – including drawing, painting, ceramics, and sculpting. Some art forms combine a visual element with performance (e.g. film) and the written word (e.g. comics).

As Artes de Vasari
• Pintura, 
• Escultura, 
• Arquitectura.

As Artes Ornamentais
• O vitral, a pintura mural, a miniatura gótica.
• Orfèvrerie, émaillerie, tapisserie.
• Azulejaria, loiça, vidros.
• Mobiliário e interiores.

Artes liberales
• Trivium – an introductory curriculum involving grammar, rhetoric, and logic.
• Quadrivium – a curriculum involving the "mathematical arts" of arithmetic, geometry, music, and astronomy.

Artes mechanicae
Johannes Scotus Eriugena (9th century) divides them somewhat arbitrarily into seven parts:
• vestiaria (tailoring, weaving)
• agricultura (agriculture)
• architectura (architecture, masonry)
• militia and venatoria (warfare and hunting, Military education, "martial arts")
• mercatura (trade)
• coquinaria (cooking)
• metallaria (blacksmithing, metallurgy)
In his "Didascalicon," Hugh of St Victor (12th century) includes navigation, medicine and theatrical arts instead of commerce, agriculture and cooking.

Referências
[Esqueci-me de as apontar... logo, infelizmente, não faço ideia de onde é que estas coisas vêm...]

terça-feira, 18 de abril de 2023

Citações peripandémicas

"Agora a regra era o prazer, um hedonismo atabalhoado, resumido numa frase repetida por Dora quando precisava de explicar a si mesma o sentido da sua nova vida: «Eu agora mando-me de cabeça!» Depois de anos de privações, de sexo regulamentar, da violência constringente do quotidiano, a motivação era aproveitar a vida ― essa vaga aspiração espiritual da modernidade ― que não era mais do que um conjunto de actividades banais e lúdicas, jantar fora, sair à noite..."
― Bruno Vieira Amaral, O mal dos outros, pp. 47-48.

"... I could no longer see myself sitting on a rock with seaweed in my hair, awaiting that phantom ship for which all women love to suppose they hunger..."
― Katherine Mansfield, In a German pension, p. 58.

"O mau não é ter uma ilusão, o mau é iludir-se."
― José Saramago, A Caverna, p. 88, Caminho.

"E arrumara um jeito de achar nas coisas simples e honestas a graça de um pecado."
― Clarice Lispector, A Hora da Estrela, p. 63.

"A sociedade, as leis, os governos, as religiões, os juízes, as morais, tudo que é força social organizada presta mão forte à Estupidez Onipotente."
― Monteiro Lobato, «Os negros», in Negrinha [Contos Completos, Biblioteca Azul, p. 395].

"(...) gente (...) que se ligava a ela por uma espécie de desprezo ávido, porque o rebaixamento da ama [patroa] os compensava das humilhações que lhe sofriam."
― Agustina Bessa-Luís, Os Meninos de Ouro, 1984, p. 14, Guimarães.

"Era agora respeitado como pioneiro pelos seus colegas, por quase todos, e fazia um ar superior, fingindo que não, fingindo que sua superioridade se mostrava, natural e independentemente de sua vontade, e que ele procurava escondê-la."
― Maria Isabel Barreno, O mundo sobre o outro desbotado, p. 65.

"(...) e se ela escapava ao sortilégio, é que a alma dos outros não tem a mesma transparência. À primeira vista, o gosto da razão científica tão arreigado no seu espírito não se coadunava muito com deduções desta natureza. No entanto, pensando melhor, tais juízos partiam de argumentos alicerçados no real: manias, doenças, tiques psicológicos e morais, etc. Não eram construções à toa."
― Carlos de Oliveira, Uma abelha na chuva, p. 170, Sá da Costa.


"Nós, os peninsulares, não empregamos indiferentemente as variedades de diminutivos, que possui em abundância a nossa língua. Entre um mulher a quem chamamos Luisita e outra que nos valeu a mais doce denominação de Luisinha, vai uma diferença considerável (...)."
― Júlio Dinis, "Os Novelos da Tia Filomela" in Serões da Província, p. 125 (vol. 1, ed. Civilização, 1970) ou p. 154 (vol. II das Obras Completas, Lello, s/d).

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Textos medievais galegos ou portugueses

Cada língua tem as suas características distintivas. E o que as distingue umas das outras pode ser usado para prospectar os traços de uma língua num texto escrito noutra. Uma das características típicas da língua galega ou portuguesa é a «síncope do n intervocálico», isto é, uma palavra latina que tinha lá no meio uma letra n, perdeu-a quando o latim se ambientou ao noroeste peninsular tornando-se «romanço ocidental ibérico». Não sabemos porquê; sabemos que aconteceu.

Os mais antigos textos escritos em latim mas com traços de galego ou português são:
• A carta de doação à igreja de Souselo (870)
• A carta de fundação e dotação da igreja de Lordosa (882)
• Um excerto do testamento de Dona Múnia (959)
• Uma carta de venda e doação (1026)
• O registo de Dom Paterno (1090)


Na carta de fundação e dotação da igreja de Lordosa, redigida inteiramente em latim, o escrivão cometeu dois erros de ortografia: onde deveria ter escrito monastica, escreveu «moastica»; e, na mesma linha, em vez de elemosynas pôs «elemosias». Deixou cair o n! Talvez porque era assim que falava ― sinal de que falava já o romanço ocidental, e não latim. Monastica vem, naturalmente, de monasterium, que deu «moasteriu > *moasteiro > mosteiro» etc. Elemosynas levou a «esmolas»; se não fosse a «síncope do l intervocálico», outra característica distintiva da língua, a etimologia ver-se-ia melhor (haveria de ser «elimósias» ou «elimosas» ― em catalão ficou «almoines», e em espanhol castelão é «limosnas» ― mas fluiu, talvez, «*eimosias > *emoslas > esmolas»).

m   o   a   sti   c   a                     e   l   em   o   s   i   a
(É um a esquisito, mas é um a, grafado de duas maneiras.)
Pormenor da carta de fundação e dotação da igreja de Lordosa, datada de 882, onde se vê o "erro" do copista em «mo[n]astica» e «elemos[yn]a». O original está na Torre do Tombo.

Os primeiros textos em galego ou português (os que estão rasurados, já se mostrou convincentemente que são menos antigos) são:
1175 O pacto dos irmãos Pais (anterior a 15 de Abril de 1175)
1175 A notícia de fiadores (c. 1175)
1175 Registo de Dom Martinho
1175 Anotação de Pedro Parada
1171-1177 Notícia de herdades
1178 Testamento em Pendurada
1190 Carta foral de Benfeita
1196 Ora Faz ost'o senhor de Navarra, cantiga de maldizer
séc. XII (2.ª metade) Notícia do abade Dom Pedro
1211-1216 Notícia de torto (c. 1214, entre 1211 e 1216)
1214 Testamento de Dom Afonso II
1220-1225 Testamento de Dona Froille
1222 A cessão do mosteiro de Armeses à condessa Dona Sancha
1228 Foro do bom burgo de Castro Caldelas (pode ser de c. 1275)
1231 Núcleo diplomático no mosteiro de Melom
[ver também a minha postagem anterior]

As quatro colectâneas de poesia trovadoresca em galego ou português, dos finais do século XII até meados do século XIV (apenas conhecidas por cópias dos séculos XV e XVI), são:
Cancioneiro da Biblioteca Nacional (anteriormente conhecido como «Cancioneiro Colocci-Brancuti»)
Cancioneiro da Vaticana
Cancioneiro da Ajuda (anteriormente conhecido como «Cancioneiro do Colégio dos Nobres»).
Cantigas de Santa Maria (mandado compilar por Afonso, o Sábio, rei da Galiza)

Para o seu Novo Dicionário do Português Arcaico ou Medieval (edição do autor, 2019), Américo Venâncio Lopes Machado Filho usou os seguintes textos antigos:
sXIII - Foro real de Afonso, o Sábio
sXIV - Tradução do Flos Sanctorum
sXIV - Tradução do Livro das Aves
sXIV - Tradução dos Diálogos de São Gregório (testemunho D)
1399 - Tratado dos sacramentos da ley antiga e nova
sXV - Vida de Tarsis
1415 - Livro dos Usos da Ordem de Cister
1434 - Crónica de el-rei D. Pedro I, de Fernão Lopes
1436 - Crónica de el-rei D. Fernando I, de Fernão Lopes
1443 - Crónica de el-rei D. João I, de Fernão Lopes
1486 - História de mui nobre Vespasiano
1500 - Carta de Pêro Vaz de Caminha
1536 - Grammatica da lingoagem portuguesa, de Fernão de Oliveira

Bibliografia adicional:
Corrêa de Oliveira & Saavedra Machado (1964) Textos portugueses medievais. Coimbra: Coimbra Editora.

Primeiros textos em galego ou português

Estes oito documentos manuscritos aparecem em várias fontes como contendo os textos mais antigos escritos originalmente em galego ou português, tanto quanto se conhece por ora.

• O pacto dos irmãos Pais (anterior a 15 de Abril de 1175)
• A notícia de fiadores (c. 1175)
• Ora Faz ost'o senhor de Navarra, cantiga de maldizer (c. 1200, por vezes é datado especìficamente de 1196 sem fundamento que o prove)
• A notícia de torto (c. 1214, entre 1211 e 1216)
• O testamento de Dom Afonso II (1214)
• A cessão do mosteiro de Armeses à condessa Dona Sancha Fernandes (1222)
• Foro do bom burgo de Castro Caldelas (1228, mas pode ser de c. 1275)
• Núcleo diplomático no mosteiro de Melom (1231)
[ref1ref2ref3ref4; ref5]

Mas a lista é mais vasta, basta seguir os trabalhos de José António Souto Cabo. De vez em quando encontra-se na Torre do Tombo mais outro documento dos inícios do século XIII ou mesmo do século XII, quer originário do Entre-Douro-e-Minho (ou arredores), quer da Galiza (ou arredores). A língua vernácula (que se falava corriqueiramente, diferente do latim que se usava para escrever) já estava perfeitamente formada, já era antiga, quando pela primeira vez se escreveu. E era (e é?) a mesma em ambas as margens do rio Minho, já lá dizia Ricardo Carvalho Calero (in Carvalho Calero Atual, Através Editora, 2012):
• "o galego é autóctono a ambas bandas do Minho" (1981, p. 95)
• "o galego era a língua oral e escrita aquém e além Minho" (1981, p. 97)
• "(...) o galego fosse suplantado polo castelhano numha parte do território em que se formou. Umha parte só, porque o galego se formou a ambas as beiras do Minho." (1986, p. 176)

Portanto, tanto faz chamar-lhe galego antigo como português antigo (e com mais propriedade se lhe devia chamar apenas galego). É interessante consultar os seguintes mapas:
• Mapa da área de repartição de origem da língua (das Astúrias ao Vouga, e não apenas até ao Douro), de Joseph Piel [ver, por exemplo, aqui]. NOGUEIRA, Carlos Filipe. O conceito geográfico-linguístico de Galécia Maior. In: Sete Ensaios sobre a Obra de J. M. Piel. Lisboa: Publicações do Instituto de Linguística da Faculdade de Letras de Lisboa, pp. 75-103, 1988.
• Mapa dos trovadores, de Monteagudo. MONTEAGUDO, Henrique. Nas orixes da lírica trobadoresca galego-portuguesa. In: O século de Xelmírez. Santiago de Compostela: Consello da Cultura Galega, pp. 387-437, 2013.

Pormenor do mapa da origem dos trovadores, de Henrique Monteagudo, citado acima.

Eis a transcrição dos primeiros quatro. Tentei marcar ― tanto quanto o meu amadorismo o permite ― as secções nìtidamente vernáculas (a letra preta normanda) no meio das latinas (a azul); tudo o que estiver em letra redonda balouça entre uma e outra com pouca nitidez.

PACTO DE IRMÃOS
Ego Gomenze Pelaiz facio a tibi irmano meo Ramiru Pelaiz isto plazo ut non intret meo maiordomo inilla villa super vostros homines deslo mormuiral. & de inde antre as casas d’Ousenda Grade & d’Elvira Grade. & inde pora pena longa & de ista parte per illa petra cavada de Sueiro Ramiriz dou vobis isto que sejades meo amico bono. & irmano bono & que adjuderis me contra toto homine fora el rei & suos filios. & si Pelagio Soariz. ou Menendo Pelaiz. ou Velasco Pelaiz. ou Petro Martiniz. Daquele que torto fezer a Don Ramiru. ou a Don Gomeze si quiser caber en dereito & se non ajudarmonos contra illos. Des illo mormoiral ata en frojom non laver {jure} mala Dos ergo illos que abet hodie fora se ganar herdade de gavaleiros ou de engeoida. & in vostra herdade habet tal foro quale dóóspital. & herdade for de penores & ibi morar suo dono dar calupnia & fosadeira & si se for dela abere tal foro quomodo vostros herdades. Se {homenem} entrar enaquela vila que torto tenia a Don Gomeze dar dereito dele si seu for de Don Ramiro {quen} de fora venia. & {quen} isto plazo exierit ad vos Ramiro Pelaiz se erar coregelo & se non {q} volverit peitar quinientos soldos. jsto pleito est taliado de isto maio que venit ad.IJs. anos.

NOTÍCIA DE FIADORES
Linha 1 →  Noticia fecit pelagio romeu de fiadores Stephano pelaiz .xxi. solidos lecton .xxi. soldos pelai garcia .xxi. soldos. Güdisaluo Menendice. xxi soldos
Linha 2 →  Egeas anriquici xxxta soldos. petro cõlaco .x. soldos. Güdisaluo anriquici .xxxxta. soldos Egeas Monííci .xxti. soldos [i l rasura] Ihoane suarici .xxx.ta soldos
Linha 3 →  Menendo garcia .xxti. soldos. petro suarici .xxti. soldos Era Ma. CCaa xiitia Istos fiadores atan .v. annos que se partia de isto male que li avem

ORA FAZ HOST'O SENHOR DE NAVARRA
"Ora faz host'o senhor de Navarra,,
pois em Proenç'est el-rei d'Aragom;
nom lh'ham medo de pico nem de marra
Tarraçona, pero vezinhos som,
nem ham medo de lhis poer boçom
e riir-s'-am muit'em dura edarra;
mais se Deus traj'o senhor de Monçon,
bem mi cuid'eu que a cunca lhis varra.
Se lh'o bom rei varrê'la escudela
que de Pamplona oístes nomear,
mal ficará aquest'outr'em Todela,
que al nom há [a] que olhos alçar:
ca verrá i o bom rei sejornar
e destruir atá burgo d'Estela,
e veredes Navarros lazerar
e o senhor que os todos caudela.
Quand'el-rei sal de Todela, estrẽa
ele sa host'e tod'o seu poder;
bem sofrem i de trabalh'e de pẽa,
ca vam a furt'e tornam-s'em correr;
guarda-s'el-rei, com'é de bom saber,
que o nom filhe luz em terra alhẽa,
e onde sal, i s'ar torn'a jazer
ao jantar ou se nom aa cẽa."

NOTÍCIA DE TORTO
1 D[e] noticia de torto que fecerun a laurencius fernandiz por plazo qve fece goncauo
2 ramiriz antre suos filios e lourenzo ferrnandiz quale podedes saber: e oue auer de erd[ade]
3 e d auer tanto quome uno de suos filios d aquanto podesen auer de bona de seuo pater; e fio li os seu
4 pater e sua mater. E depois fecerun plazo nouo e conuen uos a saber quale: in ille seem
5 taes firmamentos quales podedes saber. <E f...q> ramiro goncaluiz e goncaluo gonca[luiz e]
6 eluira goncaluiz forun fiadores de sua irmana que o[to]rgase aqu[e]le plazo come illos
7 Super isto plazo ar fe[ce]run suo plecto. e a maior aiuda que illos hic connocerun que les
8 acanoce<r>se laurenzo ferrnandiz sa irdade per plecto que a teuese o abate de sancto martino
9 que como uencesen o[ct]ra que asi les dese de ista o abade. E que nunqua illos lecxasen
10 daquela irdade d. sen seu mandato. Se a lexaren intregaren ille de octra que li plaza
11 E D auer que ouerun de seu pater nu[n]qua <le> li inde derun parte. Deu <a lauren....> dun goncalu
12 o a laurenco fernandiz e martin gonc[a]luiz xii <a> casaes por assas de sua auóó
13 E filarun li illos inde vi casales <quanto er> cun torto. E podedes saber como man
14 do Dun goncauo a sua morte. De xvi casales de ueracin que defructarun e que li
15 nunqua inde der[un] quinnon. E de vii e medio casaes antre coina e bastuzio unde li
16 nunqua derun quinion. E de tres in tefuosa unde li nu[n]qua ar der[un] nada. E iiºs in figeerec
17 do unnde nun<nada>qua li derun quinon. E iiºs in tamal unde li non ar derun quinon. E da sena
18 ra de coina unde li non ar derun quinon. E d uno casal de coina que leuarun inde iii anos
19 o frcuctu cun torto. E por istes tortos que li fecerun tem qua a seu plazo quebrantado
20 e qua li o deuen por sanar. E de pois ouerun seu mal e meteu o abade paz a[n]tre illes
21 inno carualio de laurecdo. E rogou o o abate tanto que beiso cun illes. E derun li
22 xviiii Morabitinos qui li filarun. E de pos iste plecto pre[n]derun li <on> o seruical otro
23 ome de sa casa. e troserun no xviiii dias per montes e fecerun les tan máá prison
24 per que leuarun deles quanto poderun auer. E de pois li desunro goncauo goncauiz
25 sa fili[a] pechena. E irmar[un] li xiii casales unde perdeu fructu. E isto
26 fui de pois que furun fijdos ant o abate. E de pois que furun infiados por iuizo de ilo
27 rec. E nunqua ille feze neu<n> mal por todo aqueste. E feze les <ta qua> agudas
28 quales aqui ouirecdes: Super sua aguda fez testiuigo cun goncauo cebolano
29 E super sa aiuda ar fui li a casa e filo li quanto que li agou e deu a illes. E super sa
30 aiuda oue testifigo cun petro gomez omezio que li custou maes <qua> Ka .c. Morabitinos
31 E super sa aiud[a] oue mal cun goncaluo gomez que li custou multo da auer
32 e muita perda. E in sa aiuda oue mal cun go[n]caluo suariz. E in sa aiuda
33 oue mal cun ramiro fernandiz que li custov muito auer muita perda.
34 E in sa aiuda fui iiªs fezes a coi[m]bra. E in sa aiuda dixe mul[tas] <f> uices
35 e ora in ista tregua furun a ueracin amazarun li os omes erma[run] li x casaes
36 seu torto al rec. E super sa iud[a] mandoc lidar seus omes cun mar
37 <M> tin iohanes que quir[i]a desunrar sa irmana. E cun ille e cun sa casa
38 e cun seu pam e cun seu uino uencestes uosa erdade. E cun ille
39 existis de sua casa in ipso die que uola quitarun. E ille teue a uosa
40 rezon. E otras aiudas multas que < >fez. E plus li a custado
41 uosa aiuda qua li inde cae d erdade. E subre becio e super
42 fíjmento se ar quiserdes ouir as desonras que ante ihc furun
43 ar ouide as: Venerun a uila e fila[run] li o porco ante seus filios e com
44 erun si lo. Venerun alia uice er filarun otro ante illes
45 er comerun s o. Venerun in alia uice er filiarun una ansar ante
46 sa filia er comerun s a. In alia uice ar filiarun li o pane ante
47 suos filios. In alia uice ar ue[ne]run hic er filarun inde o uino
48 ante illos
49 Otra uice uenerun li filar ante seus filios quanto que li agarun in quele
50 casal. E furun li <o> u ueriar e prenderun inde o conlazo unde mamou [?]
51 re e gacarun no e getarun in tera polo cecar e le[ua]run delle quanto oue.
52 In alia uice ar furun a feracin e prenderun iiºs omes e gacarun nos e leuarun
53 deles quanto que ouerun. In otra fice ar prenderun otros iiºs a se[u] irmano pelagio
54 fernandiz e iagarun nos. In otra ue[ne]run a [?]ge [?]tros e leuarun s o [?]
55 ante pelagio fernandiz