quinta-feira, 3 de março de 2022

A Narrativa de Ficção ― DISCURSO (I)

DISCURSO = enunciado, texto (expressão da história)

1. Tempo do discurso: Ordem (anacronias)

• Analepse e prolepse
• Alcance e amplitude
• Silepse

Para designar as diferentes formas de desacordo entre a ordem dos acontecimentos na história e a ordem dos mesmos acontecimentos no discurso (DR p. 79), Genette usou o neologismo «anacronias»; subentende-se que nos casos em que a ordem no discurso corresponda exactamente à ordem na história dir-se-á «acronia» (mas, como lembra Aguiar e Silva p. 751, a coincidência perfeita entre ambos provàvelmente não existe). As anacronias são duas: 

analepse  ou «flashback», a retrospecção, no discurso, de acontecimentos na história que deveriam ter sido narrados mais cedo; é típica de discursos que começam in medias res (isto é, uma narração que põe o discurso a começar a meio da história) ou in ultimas res (começar no final da história); pode ser declarada pelo narrador («É necessário recuar», diz o narrador), ou não declarada, confundindo temporalidades distintas (Aguiar e Silva, pp. 752-754).

prolepse ou «flashforward», a antecipação, no discurso, de acontecimentos na história que só deveriam ser narrados mais tarde («Um dia, faltam mais de quatro meses, o Osório há-de dizer ao Alpoim...», Enseada amena, de Augusto Abelaira); é mais rara que a analepse (Aguiar e Silva, pp. 754-755).

Exemplo de análise da microestrutura da ordem temporal (DR p. 83):
    analepse     _________analepse_________
A2     [B1] C2    [D1    (E2) F1 (G2)    H1]    I2
                     prolepse     prolepse
Posições temporais na história: 1 passado, 2 presente
Posições temporais no discurso: segmentos de A a I em sucessão

Outro exemplo de análise da microestrutura (DR p. 85):
ana.    __________________grande analepse____________________
A4 [B3] [C5–D6 (E3) F6 (G3) (H1) (I7 [J3] [K8 (L2 [M9])]) N6] O4
                 elipse      pro.            pro.     pro.    ¯¯¯¯¯grande prolepse¯¯¯¯¯
Posições na história: 9 posições (o presente é o 4; vários passados e futuros)
Posições no discurso: 15 segmentos de A a O em sucessão

Genette introduziu os termos alcance (portée; eu uso aqui a tradução de Reis & Lopes 1987, que é também a de Fernando Cabral Martins e Maria Alzira Seixo 1979; em inglês fica reach) e amplitude: a primeira descreve a projecção de uma anacronia num tempo mais ou menos longe do presente (quer para o passado, quer para o futuro); a segunda refere-se à sua duração mais ou menos longa (DR pp. 89-90).

Tomando mão destes dois conceitos, Genette produziu uma completíssima taxonomia das analepses (DR pp. 90s) e das prolepses (DR pp. 105s), que eu não vou descrever aqui em pormenor, bastando mencionar que, quanto a questões de alcance, analepses seriam externas ou internas (estas, por sua vez, poderiam ser heterodiegéticas, homodiegéticas completivas ou homodiegéticas repetitivas) e quanto a questões de amplitude seriam completas ou parciais. As prolepses seguiriam a mesma nomenclatura. No glossário das páginas 279-282 esta nomenclatura taxonómica está mais clara do que no texto corrido.

As anacronias poderiam ainda ser «complexas» quando misturadas uma na outra em «analepses prolépticas» e «prolepses analépticas», isto é, quando numa analepse há uma antecipação do futuro e numa prolepse uma breve volta ao passado (DR p. 119). Genette considera ainda a possibilidade de uma analepse ser «aberta», ou seja, cujo término não é evidente (DR p. 119). 

Genette ainda foi inventar o conceito de silepse, que seria o conjunto de todos as partes do discurso que versassem sobre o mesmo assunto: silepse temporal (todos os segmentos anacrónicos), geográfica (todos os segmentos que tenham a ver com espaço; de viagens, por exemplo), temática (todos os segmentos com o mesmo tema), etc. Outro conceito que terá pouca ou nenhuma utilidade na prática...


2. Tempo do discurso: Velocidade (anisocronias)

• Elipse
• Resumo
• Cena
• Expansão
• Pausa

Velocidade define-se matemàticamente como a relação entre uma medida temporal e uma medida espacial. Foi, portanto, esse termo que Genette preferiu (NDR p. 23, ainda que anteriormente lhe tivesse chamado «duração» DR pp. 122s) para designar a relação entre a duração da história (medida em segundos, dias, meses, anos, etc.) e a duração [= comprimento ou longura ou extensão ou demora ou delonga] do texto (medida em linhas, parágrafos e páginas) (DR p. 123).

Em princípio, o discurso da narrativa reparte-se e organiza-se numa diversidade infinita de velocidades. No entanto, cinco andamentos são claramente individualizáveis: a elipse, o resumo, a expansão, a pausa (às quais Genette atribuiu o neologismo «anisocronias») e a cena (que seria, então, a «isocronia»). Existe uma gradação nestes andamentos consoante o tempo do discurso (TD) se aproxima ou afasta do tempo da história (TH):

>>> >>> gradação (DR pp. 128-130) <<< <<<
Elipse Resumo         Cena [Expansão] Pausa
TD = 0 TD < TH TD = TH        [TD > TH] TD = ∞
TH = ∞                                 TH = 0
(TD <<< TH) (TD ≃ TH)         (TD >>> TH)

A elipse e o resumo equivalem a uma redução do tempo do discurso em relação ao tempo da história, enquanto a expansão e a pausa equivalem a um aumento; a cena seria a igualdade. Pausa e elipse opõem-se; resumo (diegesis) e cena (mimesis, v. o modo Distância, na postagem DISCURSO II) opõem-se.

Uma elipse poderá ser determinada ou indeterminada, explícita ou implícita, qualificada ou hipotética, segundo Genette (DR pp. 139s). Elipses são fragmentos breves do discurso em que se “exclui determinados acontecimentos diegéticos, dando origem a vazios narrativos (saltos temporais ou espaciais, omissões: «Dias depois...», «Passados três anos...»; «Noutra cidade...», «Entretanto, na casa ao lado...»; TH = ∞, TD = 0). O narrador pode informar o leitor de que omitiu factos por irrelevantes, monótonos, maçadores, escabrosos, etc. («De propósito, saltamos por cima dos pormenores da partida...» diz o narrador em A queda dum anjo de Camilo); outras vezes a elipse não é assinalada e é intencionalmente deixada ao leitor a reconstituição do que foi omitido, baseando-se nas poucas informações que o texto lhe oferece (típico do romance contemporâneo)” (Aguiar e Silva p. 757). Serve para acelerar o ritmo, para não ter de fornecer à leitora informações desnecessárias, para adiar a narração de certos acontecimentos (criando suspense), para aproximar duas cenas separadas pelo tempo, ou para mudar de tema (Sabarich & Dintel, 2001).

O resumo (summary em inglês, língua em que o termo foi proposto primeiro, e cuja tradução, quer para francês quer para português, não é «sumário», mas «resumo», mal haja a escolha de Genette DR p. 129) poderá ser, por exemplo, “a narração em poucos parágrafos de muitos dias ou anos de existência (TD < TH), sem detalhe de acção ou de falas” (DR pp. 130s). Não recria detalhadamente um trecho da história; usa termos abstractos, qualificativos, catalogação; e serve para acelerar o ritmo, para oferecer informação relevante mas que não merece tornar-se uma cena, ou para fazer a transição entre duas cenas (Sabarich & Dintel, 2001).

A cena é uma “concentração dramática, desimpedida de descrições ou digressões, e de interferências anacrónicas” (DR p. 142). A cena isócrona pura teria uma velocidade não só igual à história, mas também constante, isto é, sem acelerações nem desacelerações em relação à história (TD = TH): «Este diálogo, que parece estirado, correu em menos de quatro minutos» diz o narrador em Agulha em palheiro de Camilo, e se lermos o tal diálogo em voz alta, cronometrando, verificamos que dura efectivamente pouco mais de três minutos. Na prática isto é raro acontecer porque o discurso não regista a cadência da fala nem as hesitações (TD ≃ TH) (DR p. 123; Aguiar e Silva pp. 755-756). Construir uma cena é recriar minuciosamente um momento da história com forte visualização (usa imagens, diálogos), para que a leitora tenha a impressão de que se desenrola diante dos seus olhos (Reuter 1997, p. 61). De acordo com Sabarich & Dintel (2001), uma cena tem sempre três elementos: moldura (frame, os elementos fixos do cenário: móveis, paredes, janelas, paisagem, etc.), atmosfera (elementos variáveis do cenário: luz, temperatura, sons, aromas, etc.) e acção (o que acontece: qualquer movimento, pensamento, diálogo, etc.). “A reprodução fiel do diálogo entre as personagens implica a utilização do discurso (...) directo: surge então a cena, momento de dramatização da narrativa [mimesis] que constitui a tentativa mais aproximada de imitação, no plano do discurso, da duração dos eventos diegéticos [isocronia]” (Reis & Lopes 1988, p. 236). Serve para criar a ilusão de que a narração avança em tempo real, ou para caracterizar as personagens a partir das suas próprias acções, palavras ou pensamentos (Sabarich & Dintel, 2001).

Para Genette, a expansão não é um andamento canónico, entrando fàcilmente dentro da cena dialogada (“uma espécie de cena lenta”, DR p. 130). Chatman, porém, considera (acertadamente, a meu ver) que “é preciso mais tempo para dizer os pensamentos do que para os pensar” (TD > TH) (v. Reis 2018, p. 147, sob a designação de «extensão»), o que implica que expansão seja diferente tanto da cena como da pausa. O próprio Genette diz que a expansão, apesar de tudo, é perfeitamente realizável.

Uma pausa pode ser descritiva, mas também pode ser constituída por intrusões do narrador, por reflexões ou digressões (de uma personagem ou por intervenções do narrador) (DR pp. 128-129 notas) que suspendem a progressão da história (TH = 0, TD = ∞), por exemplo, para relatar seqüências no tempo psicológico e podem corresponder de facto a uma segunda história inserida na principal (Aguiar e Silva, p. 758) ou acções secundárias (como viagens ou deslocações), ou caracterização de personagens secundárias, repetição de informações (as três chaves no conto O Tesouro do Eça poderiam ser só uma). “Uma das técnicas que um autor pode utilizar para se demorar ou diminuir a velocidade é a que permite ao leitor dar «passeios inferenciais»” (Eco, Seis passeios, 3.º passeio, pp. 47s). Serve para desacelerar o ritmo, para recriar a moldura e a atmosfera em que se desenvolve a acção, ou para focar a atenção do leitor num objecto ou em algum outro elemento do cenário, ou para dar ênfase aos pensamentos do narrador ou da personagem (Sabarich & Dintel, 2001).

Nos romances clássicos (de épocas anteriores à publicação de À la recherche du temps perdu de Marcel Proust, que Genette estuda ao longo do seu DR), a oposição fazia-se sobretudo entre cena detalhada/dialogada e resumo, isto é, entre conteúdo dramático e conteúdo não dramático: “o verdadeiro ritmo do cânone romanesco (...) é a alternância de resumos não dramáticos (com função de espera e de ligação) e de cenas dramáticas cujo papel na acção [no enredo do romance] é decisivo” (DR p. 142). 

Ainda hoje, alternando resumos e cenas evita-se que uma narração se torne monótona. Decidir quais os trechos da história que devem aparecer resumidos e quais encenados depende da importância da informação que se desejar dar a cada trecho (Sabarich & Dintel, 2001). Por meio de acelerações e desacelerações o autor pode criar angústia, suspense, tensão ou acalmia no leitor, etc. Daí a oposição entre narrativas de acção (aceleração ou igualdade entre tempos) e narrativas psicológicas (descritivas ou explicativas; lentas) (Reuter 1997, pp. 88s).

Em termos do ritmo de leitura, e segundo aconselham Sabarich & Dintel (2001), para que seja lento é preciso: introduzir pausas; empregar orações subordinadas ou pelo menos frases mais longas; empregar o pretérito imperfeito, indicando acção em processo de realização ou não concluída; empregar verbos de estado (ser, estar, ter) e o menor número possível de verbos de acção; recorrer a palavras que transmitam a ideia de lentidão; introduzir figuras retóricas como a analogia e a comparação. Para que seja rápido é preciso: empregar frases curtas; empregar orações coordenadas (evitando as subordinadas) e justaposição de frases; empregar o presente ou o pretérito perfeito, indicando acção concluída; empregar verbos de acção; recorrer a palavras que transmitam a ideia de velocidade.


3. Tempo do discurso: Freqüência (repetições)

• Discurso singulativo simples
• Discurso singulativo anafórico
• Discurso repetitivo 
• Discurso iterativo: determinação, especificação e extensão

Genette utilizou a palavra freqüência para designar as relações de repetição entre o discurso e a história (DR p. 145). Se um acontecimento na história for repetido (ou não), o seu enunciado no discurso pode ser igualmente repetido (ou não), o que dá quatro tipos possíveis de relação:

• um d. pode contar uma vez o que se passou uma vez na h.
• um d. pode contar muitas vezes o que se passou muitas vezes na h.
• um d. pode contar muitas vezes o que se passou uma vez na h.
• um d. pode contar uma vez o que se passou muitas vezes na h.

Genette chamou de discurso singulativo tanto o primeiro como o segundo, e qualificou o segundo como singulativo anafórico (o primeiro seria então o singulativo simples, acrescento eu). Ao terceiro chamou discurso repetitivo e ao quarto iterativo. Vejamos exemplos (DR pp. 146-147, variações da frase de Proust “Hier, je me suis couché de bonne heure” traduzidas livremente por mim):

Discurso singulativo simples: “Ontem deitei-me cedo.”

Discurso singulativo anafórico: “Na segunda-feira deitei-me cedo; na terça-feira deitei-me cedo; na quarta-feira deitei-me cedo...”

Discurso repetitivo: “Ontem deitei-me cedo; ontem deitei-me cedo; ontem deitei-me cedo...”

Discurso iterativo: “Todos os dias da semana deitei-me cedo.”

No discurso iterativo, Genette vai mais longe e observa nele três traços distintivos (DR p. 157) a que chama determinação (os seus limites diacrónicos, isto é, o seu início e o seu fim no tempo), especificação (o ritmo da recorrência das suas unidades constituintes) e extensão (a amplitude diacrónica de cada uma das suas unidades constituintes), mas não me vou aqui alargar sobre isto.

Francamente, eu acho estas relações de repetição e a sua taxonomia pouco interessantes e pouquíssimo importantes em termos práticos. Parecem-me a conseqüência de outros procedimentos (da caracterização das personagens ou da estrutura do enredo, por exemplo) ou meras escolhas estilísticas, certamente muito típicas de Proust (e daí a ênfase que, conscientemente, Genette lhes dá, v. NDR p. 9), mas estar sempre consciente delas não deve ser muito útil para quem escreve. Posso estar enganado, claro...

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.

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