INTRODUÇÃO (a narrativa)
1. Narrativa = história + discurso + narração
• História
• Discurso
• Narração
[• Composição]
A narrativa é uma tipologia literária com definições várias consoante quem a estude (v. bons resumos em Aguiar e Silva pp. 385s, Reis & Lopes 1987 e Reis 2018, Alves 2009; Bourneuf & Ouellet 1978, a subsecção “Uma história de marinheiro” pp. 36-42 é um excelente resumo do que seja a narrativa).
Mas, em todas as definições (incluindo as que vêm nos dicionários da língua portuguesa, por exemplo na Infopédia [= Porto Editora], no Aulete e no Priberam [= Lello]), a narrativa implica uma história que seja contada, uma sucessão de acontecimentos experienciados por personagens (Aguiar e Silva p. 711); uma narrativa de ficção seria, então, a narração de uma sucessão de acontecimentos ficcionais (Rimmon 2002, p. 2).
[A distinção entre realidade e ficção, porém, esbate-se: Mircéa Eliade mostrou que a literatura oral se confundia com a religião, veìculando mitos como se fossem «histórias verdadeiras» contando tanto acontecimentos reais, como aventuras heróicas ou a criação do mundo (in Bourneuf & Ouellet 1978, p. 18); e já o poeta gaúcho Mario Quintana dizia “para mim, tudo é verdade mesmo” (no Caderno H, 1973).]
Alguns críticos dividem a narrativa em dois planos de linguagem, o das personagens e o do narrador, isto é, o que se narra (a história) e como se narra (o discurso) (Mesquita 1987, p. 21; Reis & Lopes 1988, p. 277; Gancho 2006, p. 37).
No entanto, para o teórico francês Gérard Genette (Discours du récit, em Figures III, 1972 [daqui para diante DR] e Nouveau discours du récit, 1983 [daqui para diante NDR]) a narrativa tem três ― e não dois ― planos, òbviamente relacionados, mas distintos: uma história, ou seja, o conteúdo de um enunciado, a sucessão de acontecimentos reais ou fictícios; um enunciado narrativo, isto é, o discurso (oral ou escrito) que corresponde ao relato de uma série de acontecimentos; e a narração, o acto de narrar em si mesmo, isto é, “um acontecimento: não aquele que se conta, mas aquele que consiste em que alguém conte alguma coisa” (DR pp. 71-72). Como tal, e para efeitos de estudo, atribui a cada um destes planos um termo técnico preciso em francês: histoire — récit — narration, respectivamente. Shlomith Rimmon-Kenan (2002, p. 3) segue a divisão de Genette e chama-lhes, em inglês: story — text — narration. Eu aqui, nesta série de postagens, vou seguir de muito perto o sistema de Genette e fazer uso dos termos em português: história — discurso — narração.
[Atenção que a palavra «récit» se costuma traduzir para português por «narrativa», mas Genette é muito claro p. 72: no sistema dele, «récit» significa sempre «discurso», “Je propose (...) de nommer (...) récit proprement dit le signifiant, énoncé, discours ou texte narratif lui-même” (excepto no título da obra, «discours du récit», claramente «discurso da narrativa», provàvelmente de propósito).]
Dos três planos da narrativa, o discurso é o único que se presta directamente à análise textual, o único que está disponível ao leitor ou ouvinte: é pelo discurso (expressão) que se tem acesso à história (conteúdo) através da narração (produção) (DR p. 73; Rimmon 2002, p. 4). Não há narrativa a não ser que se conte uma história de uma certa maneira. A narrativa é, portanto:
• a narração do discurso da história.
• a enunciação do enunciado da diegese.
• a produção da expressão do conteúdo.
• o relato do texto da ficção.
• quem conta e como é contado o que há para contar.
Eu acrescento um «quarto plano»: o da composição da narrativa, que equivale à sua redacção (se for escrita) ou à sua recitação (se for verbal, contada oralmente). Penso que muitos aspirantes a escritor (incluindo eu próprio!) confundem o desejo de pôr palavras e frases no papel com o de criar uma narrativa. Foi só depois de estudar os meandros da história, do discurso e da narração, que compreendi que a redacção do texto pouco tem a ver com a narrativa em si, e que é uma actividade que vem apenas depois de se ter construído uma narrativa lógica e original. É depois (e só depois) que entram a escolha do género narrativo, a boa gramática, as escolhas estilísticas, a estrutura dos parágrafos e da mancha tipográfica, etc.
2. História = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)
• Personagens
• Circunstâncias: espaços, tempo da história, etc.
• Enredo
No plano da história ou diegese ou ficção ― o conteúdo da narrativa — parece ser consensual que toda e qualquer narrativa de ficção é alicerçada em pelo menos quatro elementos (ou categorias): as personagens, as circunstâncias (muitas vezes divididas apenas em tempo e espaço), o enredo (acções e acontecimentos) e o narrador (Gancho 2006, pp. 6 e 11). São os conteúdos reconhecíveis da ficção (Reuter 1997, p. 21). Por vezes o tema de uma narrativa é também considerado um elemento.
“Um texto narrativo é aquele onde um narrador conta uma «história» em que entram personagens que se envolvem num enredo situado numa determinada circunstância (espaço, tempo, etc.)” (Teixeira & Bettencourt 1997, p. 105, adaptado).
“Num inquérito feito em 1965 para uma revista [francesa], umas dezenas de leitores adultos (...) definiam a sua conceição do verdadeiro romance:
• pintar caracteres, criar heróis e tipos, ser a «odisseia de um destino»;
• contar uma história, conter acção, apresentar situações variadas.” (Bourneuf & Ouellet 1972, p. 20)
“(...) para o leitor vulgar, o romance [a narrativa] é, em primeiro lugar, uma história complexa e inverosímil, encontros miraculosos, heróis demasiado perfeitos e heroínas demasiado belas para serem verdadeiros. «Fiction», dizem os anglo-americanos, «ilusão», poderíamos traduzir [para francês, mas também dá em português] sem grande infidelidade.” (Bourneuf & Ouellet 1972, pp. 5-6)
São, portanto, as personagens (com a sua caracterização e atributos, motivação e objectivo) e o enredo (com conflito e tensão, verosimilhança e causalidade, e uma estrutura) que conduzem a história (categorias fundamentais da narrativa, dizem Reis & Lopes 1987, p. 215), enquanto que as circunstâncias existem inevitàvelmente se aquelas existem, ainda que se possa dizer que um espaço (a cidade de Lisboa nas narrativas de Eça de Queirós, por exemplo) também possa, em certos casos, ser considerado uma personagem. “A diegese (ficção, história), como sucessão de eventos (...), é inconcebível fora do fluxo do tempo” (Aguiar e Silva, pp. 745s) e é a este que se chama tempo da história, não se confundindo nem com o tempo do discurso, nem com o tempo da narração; e corresponde ao tempo necessàriamente cronológico do universo ficcional onde as personagens e as acções acontecem (tempo que depois vai ser tratado ou elaborado não-cronològicamente, resultando no tempo do discurso).
Não havendo acção ou acontecimentos decorridos ao longo do tempo, não há história (nem narrativa). Por exemplo, as quatro proposições em «Roses are red/ Violets are blue/ Sugar is sweet/ And so are you» são verdadeiras ao mesmo tempo, não há uma sucessão temporal de umas para as outras no mundo ficcional representado por estas frases e, portanto, não há história (Prince 1980, p. 49, in Rimmon 2002, p. 16). É a presença de uma história que distingue um texto narrativo de um texto não narrativo (Rimmon 2002, p. 16). “A experiência do tempo estrutura-se em acções desenvolvidas numa intriga coesa” (Reis & Lopes 1987, p. 76).
Como se viu antes, no sistema de Gérard Genette a narração é um plano diferente da história e, como tal, o narrador será tratado como voz da narração e não como elemento da história.
3. Discurso = enunciado, texto (expressão da história)
• Tempo do discurso: ordem, velocidade, freqüência
• Modo do discurso: distância, perspectiva, alterações
O plano do discurso ou enunciado ou texto ― a expressão (escrita, oral ou audiovisual) da história — é o resultado do acto de enunciação de um narrador. É construído através de procedimentos de elaboração técnico-narrativa (Reis & Lopes 1987, p. 141) que são, à partida, independentes do conteúdo da narrativa. Aparenta resultar do labor do narrador, porque é este que vai organizar e mediar toda a expressão do conteúdo da narrativa, mas na prática o discurso depende das diferentes escolhas técnicas e criativas (Reuter 1997, p. 21) que a autora tem de fazer para construir/estruturar os elementos narrativos coerentemente e para causar os efeitos desejados nos leitores.
“O romancista opera nos feitos que quer narrar um corte e uma escolha, muitas vezes de ordem cronológica (...) privilegiar certos factos e deixar outros na sombra. Compõe a história [o discurso] para produzir um certo efeito no leitor, para reter a sua atenção, comovê-lo, provocar reflexão. Organiza a matéria-prima da sua história para lhe dar uma forma artística.” (Bourneuf & Ouellet 1978, p. 31)
Gérard Genette inspira-se nas categorias da gramática do verbo para as designações das categorias do discurso da narrativa («discours du récit»): modo e tempo (e voz para a narração: a voz do narrador, DR pp. 75-76).
O tempo do discurso é uma sucessão de enunciados (frases, períodos, parágrafos) e resulta do tratamento ou elaboração do tempo da história; só é igual ao tempo da história se essa sucessão de enunciados corresponder cronològicamente à sucessão dos acontecimentos. “O tempo do discurso é o arranjo textual dos acontecimentos da história; é unidireccional e irreversível, mas também é repetição e mudança” (Rimmon 2002, pp. 45-46). “O tempo do discurso é o resultado de uma estratégia textual que interage com a resposta dos leitores e lhes impõe um tempo de leitura” (Umberto Eco, Seis passeios, 3.º passeio p. 53). “O romance [a narrativa] é (...) uma arte temporal (...), é discurso, quer dizer, implica sucessão e movimento” (Bourneuf & Ouellet p. 169).
As relações entre o tempo da história e o tempo do discurso são de ordem, de velocidade (Genette inicialmente diz «duração») e de freqüência (DR p. 77). Isto é:
• relação entre a ordem temporal da sucessão dos acontecimentos na história e a ordem (pseudo-)temporal da disposição desses acontecimentos no discurso;
• relação entre a velocidade variável dos acontecimentos na (ou segmentos da) história e a (pseudo-)velocidade desses acontecimentos no discurso [= comprimento ou longura ou extensão ou demora ou delonga do texto, medida em linhas, parágrafos e páginas, NDR p. 23];
• relação entre as capacidades de repetição da história e as do discurso.
Genette decidiu designar tècnicamente como modos do discurso aquilo a que na mesma frase chama “modalidades (formas e graus) da «representação» narrativa” [“modalités (formes et degrés) de la «représentation» narrative”, DR p. 75]. Os modos do discurso são apenas dois, a distância e a perspectiva (incluindo as alterações à perspectiva), palavras que são metáforas para designar os modos de regulação da informação veiculada pelo discurso (DR p. 203) por selecção quantitativa e qualitativa do que é narrado. Genette distingue o modo do discurso (qual é a personagem cujo ponto de vista orienta a perspectiva narrativa? quem vê?) da voz do narrador (quem é o narrador? quem fala?).
A distância corresponde, grosso modo, à oposição anglo-saxónica entre to show (mostrar, mimesis) e to tell (contar, diegesis), que Genette, como veremos, considera não uma oposição, mas uma gradação de telling criando maior ou menor ilusão mimética. A perspectiva (e suas alterações) são as «focalizações», neologismo criado por Genette para estruturar com reduzida ambigüidade velhos termos como «ponto de vista», «visão», «foco narrativo», «aspecto», «restrição de campo», etc.
Resumindo, o discurso pode apresentar as acções e os acontecimentos da história (Veríssimo et al. 1998, p. 28, adaptado):
a. por ordem cronológica, igual, portanto, à da história;
b. com alteração da ordem cronológica (anacronia), recorrendo a analepse (recuo a acontecimentos passados) ou prolepse (antecipação de acontecimentos futuros);
c. à mesma velocidade dos acontecimentos na história (isocronia), por exemplo, na cena dialogada;
d. a uma velocidade diferente (anisocronia), recorrendo ao resumo (condensação dos acontecimentos), à elipse (omissão de acontecimentos) e à pausa (interrupção da história para dar lugar a descrições ou digressões);
e. a uma maior ou menor distância da história;
f. a esta ou àquela perspectiva da história.
4. Narração = enunciação, relato (produção do discurso)
• Narrador: nível, «pessoa», tempo da narração
• Narratário
Plano da narração ou enunciação ou relato ― a produção do discurso — é o acto de enunciação de um narrador e dirige-se, explícita ou implìcitamente, a um narratário (Reis 2001). Genette observa três categorias da «voz do narrador»: o nível do narrador, a «pessoa» do narrador e o tempo da narração; enquanto que o narratário merece tratamento à parte.
No sistema de Genette, a «voz» designa as relações tanto entre a narração e o discurso, como entre a narração e a história, na mesma medida em que o tempo e o modo do discurso se referem às relações entre o discurso e a história (DR pp. 75-76). Daqui se vê como esta planificação triangular funciona bem num sistema teórico, mas também na prática:
Narração
(voz) / \ (voz)
História — Discurso
(tempo e modo)
Faço aqui uma nota àcerca dos vários tipos de tempo na narrativa. Já se viu atrás que tempo da história, tempo do discurso e tempo da narração são coisas diferentes. Umberto Eco considera que há ainda um tempo de leitura, isto é, o tempo que quem lê demora a ler uma narrativa (Eco, Seis passeios, 3.º passeio pp. 50s), que Aguiar e Silva subsome no tempo do discurso. Bourneuf & Ouellet separam o tempo da aventura (equivalendo, mais ou menos, ao tempo da história + o tempo do discurso de Genette), o tempo da escrita (talvez semelhante ao tempo da narração de Genette, ou então o tempo que uma narrativa demora a ser redigida, incluindo, quiçá, todo o tempo de revisão e edição) e o tempo de leitura (similar, presumìvelmente, ao de Eco). Luiz Antonio de Assis Brasil (2019, pp. 328s) mostra um complicado esquema que inclui tempo da escrita, tempo da narrativa (= ao tempo do discurso de Genette), tempo como percebido por uma personagem (parte do tempo da história que inclui os tempos psicológicos de todas as personagens) e tempo de leitura [ficando a faltar o tempo da narração e o tempo cronológico = tempo real da história].
Estas questões teóricas dos tempos podem ser lidas nos dicionários literários (Reis & Lopes 1987; Reis 2018; Ceia 2018) e noutras obras especializadas (Aguiar e Silva pp. 745s; Bourneuf & Ouellet 1972, pp. 169s; Rimmon pp. 45s; e em Genette, evidentemente); eu aqui vou cingir-me aos três tempos técnicos de Genette, que são aqueles de verdadeira importância para a narrativa.
5. Composição (recitação, redacção)
• Géneros narrativos
• Gramática da língua
• Valorização estilística
• Modos de apresentação do discurso
• Estratégias textuais
• Recomendações artísticas
O meu quarto plano, o da composição — recitação ou redacção da narração — vem depois de se ter construído uma narrativa lógica e original. Não basta ter uma ideia e saber redigir correctamente: a elaboração de uma narrativa requer o conhecimento e a prática de certos recursos técnicos que permitam construir a ideia que uma autora tem em mente (Sabarich & Dintel 2001).
É depois de se ter construído essa narrativa lógica e original que começa a composição de um texto literário consistente e de qualidade. Para compôr uma narrativa (o que Reuter chama la mise en texte, que se pode traduzir por montagem de texto ou produção/criação do texto, isto é, a redacção de facto da narrativa), um escritor socorre-se de recursos múltiplos que implicam escolhas formais, lexicais e sintácticas, retóricas e estilísticas, textuais, etc. (Reuter 1997, p. 22). “A composição estrutura esses elementos num todo harmonioso nas justas proporções, respondendo a uma preocupação estética” (E. M. Forster, in Bourneuf & Ouellet 1972, p. 43).
6. Bibliografia
• Teoria e análise
• Prática da escrita
• Livros escolares
• Corpus essencial
• Clássicos na língua portuguesa
Tentei estudar sobretudo a bibliografia em língua portuguesa, mas tornou-se inevitável recorrer a fontes noutras línguas, principalmente Genette, que eu estava em condições de ler no original. Comecei por recorrer aos meus velhos livros escolares, que ainda são os melhores para aprender muitas destas coisas, ou ao menos para atingir um conhecimento inicial que depois aprofundei. As outras obras, separei-as em «teoria» e «prática», que me pareceu uma separação evidente porque o meu interesse sempre foi chegar às boas práticas da escrita da narrativa, mas com um mínimo (um máximo?) do conhecimento teórico produzido por tantos estudiosos e tantas estudiosas por esse mundo académico fora. Finalmente, breves listas de obras-mores da narrativa literária.
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