sábado, 19 de fevereiro de 2022

A Narrativa de Ficção ― NARRAÇÃO

NARRAÇÃO = enunciação, relato (produção do discurso)

1. Narrador: Nível

• Narrador extradiegético
• Narrador intradiegético (e metadiegético)
• Metalepse e «pseudodiegético»

O narrador pode situar-se dentro ou fora da história, isto é, pode ser personagem na história que narra ou não (independentemente de narrar na 3.ª ou na 1.ª pessoa). Genette escolheu, então, os adjectivos intradiegético e extradiegético para designar o narrador quanto à sua posição dentro ou fora da história (sendo que intradiegético = diegético), categoria da narração que ele designou por nível.

Se se considerar que a história está no primeiro nível, ou nível 1, logo à partida toda e qualquer história tem um narrador extradiegético: se está uma história a ser contada, ela está a ser contada por um narrador exterior a ela. Esse narrador estará num nível inferior à história, o «nível 0».

Se dentro dessa história de nível 1 (contada, portanto, por um narrador extradiegético, de «nível 0») houver uma personagem que, por sua vez, conta uma outra história (de nível 2, diferente da primeira), essa personagem será o narrador intradiegético: dentro do nível 1, conta um nível 2. 

Se dentro dessa outra história (nível 2), contada dentro da primeira (nível 1), houver outra vez uma personagem que conte uma história (nível 3), a essa personagem Genette dá a designação de narrador metadiegético (outros autores, começando por Mieke Bal, preferem usar o prefixo de inferioridade hipo, ainda que Genette tenha sido bem claro ao dizer que dentro do seu sistema conceitual cada narrador conta uma história de nível superior, e não inferior, àquele em que está; DR p. 227 nota 1, NDR p. 61 — eu prefiro manter o prefixo original meta para não multiplicar as confusões, já que são os conceitos, e não as palavras, que verdadeiramente importam aqui).

E assim sucessivamente: uma personagem dentro do nível 3, conta um nível 4; uma dentro do nível 4, conta um nível 5; outra dentro do nível 5, conta um nível 6... Genette menciona uma narrativa (o conto Menelaiad, de John Barth [1968]; NDR p. 58) em que há nada menos do que 7 níveis! Genette, porém, não criou mais neologismos para designar os narradores de nível superior ao metadiegético.

O sistema dos níveis é ilustrada por Genette usando balões de fala, como nos quadrinhos de banda desenhada (NDR pp. 56-57): [Carlos Reis (1987 e 2018) usa uma imagem com caixas e traços que também o ilustram competentemente.]
O narrador extradiegético A («nível 0», fora da história) conta uma história (nível 1) onde uma das personagens actua como narrador intradiegético B ao contar também uma história (nível 2) onde uma das personagens actua como narrador metadiegético C ao contar outra história (nível 3) onde uma das personagens actua como narrador D ao contar ainda outra história (nível 4), etc.

Acaba por ser uma técnica de encaixe: cada história contada dentro doutra, a primeira sendo a principal com outras encaixadas (ou pontualmente, como quando uma personagem conta uma história ou encontra um manuscrito e o lê; ou completamente, como nas Mil e Uma Noites ou no Decámeron, que são, cada um, um conjunto de histórias encaixadas) (Reuter 1997, p. 85).

Uma história dentro de outra história pode funcionar como uma digressão (por exemplo, numa pausa, numa analepse, etc.) para reduzir a velocidade ou alterar a ordem, criando tensão no leitor. Genette vai ao ponto de classificar seis tipos de relação funcional entre o nível (intra)diegético, ou nível 1, e o nível metadiegético, ou nível 2 (NDR pp. 62-63, afinação do que ele tinha proposto no DR pp. 242-243), mas eu penso que isto, por muito interesse que tenha em termos teóricos, não tem interesse em termos práticos, e é a prática que me interessa a mim.

Havendo vários níveis, o narrador de um pode interferir num outro (no discurso, não na história), por exemplo emitindo juízos de valor ou opiniões sobre o que se passa na história, o que os teóricos anglo-saxónicos costumam chamar de «intrusão do narrador». Genette criou o neologismo metalepse para designar esse fenómeno. 

Um outro fenómeno acontece quando uma história (p. ex. nível 2), que seria contada por uma personagem (nível 1), acaba por ser contada pelo narrador de nível inferior («nível 0») — Genette atribui a isto o adjectivo «pseudodiegético». A meu ver esta noção é pouco importante, já que a distinção do narrador entre níveis é puramente taxonómica e, na prática da escrita contemporânea, os níveis acabam por se misturar destas e doutras maneiras (por exemplo, nada impede o narrador de contar uma história onde ele mesmo é uma personagem que conta outra história onde ele mesmo é outra vez personagem a contar outra história... ou seja, que o narrador extradiegético, o narrador intradiegético e o narrador metadiegético sejam todos uma só entidade que actua em níveis diferentes.


2. Narrador: «Pessoa»

• Narrador heterodiegético
• Narrador homodiegético: autodiegético ou alodiegético
• «Estatuto do narrador»

O narrador pode contar uma história na 3.ª ou na 1.ª pessoa verbal — e Assis Brasil diz mesmo que, para fins práticos, são as únicas modalidades da escrita de ficção que importam (2019, p. 241). Gérard Genette, porém, argumenta que essa não é a distinção mais útil na categoria da pessoa e prefere falar em «pessoa», sempre entre aspas, ou, melhor, na relação entre o narrador (ou a narração, ou a voz; o que, para o caso, vai dar ao mesmo) e a história. Diz Genette (DR p. 252, em tradução livre, minha):

“A escolha do romancista não é entre duas formas gramaticais, mas entre duas atitudes narrativas (...):
1. pôr a história a ser contada por uma das suas personagens, ou
2. pôr a história a ser contada por um narrador estranho a ela.”

À primeira atitude corresponde um narrador homodiegético, e à segunda um narrador heterodiegético.

Assim sendo (diz Genette ali naquelas reticências do meio), as formas gramaticais da 3.ª ou da 1.ª pessoa dos verbos não são senão a conseqüência mecânica desta escolha de atitude. Na prática, um narrador homodiegético acaba sempre por se exprimir na 1.ª pessoa, enquanto que um narrador heterodiegético não. Genette vai até mais longe dizendo que o narrador pode intervir a qualquer momento na narração e designar-se a si próprio pelo pronome da 1.ª pessoa (enquanto narrador, e não enquanto personagem, se o for) e que, por isso mesmo, toda e qualquer narração é sempre virtualmente feita na 1.ª pessoa (DR p. 252; NDR p. 65). 

Ele dá vários exemplos, o mais evidente será o Don Quixote de la Mancha de Cervantes, onde, logo na primeira frase, o narrador diz «não quero recordar-me» (1.ª pessoa): “En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor.” Estamos, portanto — e apenas por causa daquela oração subordinada — perante um narrador homodiegético na 1.ª pessoa; sem ela, o narrador naquela frase seria heterodiegético na 3.ª pessoa: “En un lugar de la Mancha [...] no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor.

A existência de verbos na 1.ª pessoa remete para duas situações (DR p. 252): o narrador designando-se a si próprio como narrador (extradiegético), ou o narrador identificando-se com uma das personagens (intradiegético). O que leva ao entrelaçar da «pessoa» do narrador com o nível onde está o narrador (o «estatuto do narrador»), explicitada por Genette num quadro (DR p. 256; e incluindo focalização NDR p. 88) que vou aqui adaptar:

1. Narrador extradiegético e heterodiegético: conta uma história de onde está ausente.
2. Narrador extradiegético e homodiegético: conta uma história onde está presente como personagem.
3. Narrador intradiegético e heterodiegético: personagem que conta uma história de onde está ausente.
4. Narrador intradiegético e homodiegético: personagem que conta uma história onde está presente como personagem (conta a sua própria história).

Daqui se vê que um narrador extradiegético e homodiegético é sempre intradiegético como personagem (está presente na história) e extradiegético como narrador (NDR p. 91 nota 1), enquanto que um narrador intradiegético e homodiegético acontece no caso clássico das autobiografias.

Genette criou ainda o neologismo autodiegético para definir um caso particular de narrador homodiegético: quando o narrador da história de nível 1 se identifica como a personagem principal («personagem-heroína») que conta a sua própria história (é, portanto, extradiegético, mas que também pode ser intradiegético se contar histórias de nível 2 enquanto personagem, por exemplo, na sua autobiografia). É o chamado «narrador-herói», por oposição ao único outro tipo possível de narrador homodiegético, que será o «narrador-testemunha» (NDR p. 69); Genette não chega a atribuir um adjectivo a este último caso, mas poderia muito bem ter usado alodiegético (auto, αὐτο, o mesmo; alo, ἄλλος, o outro).

Finalmente, Genette classifica as funções do narrador em cinco tipos (DR pp. 261-265): narrativa, textual (de régie no original francês; directing na tradução inglesa; de regência na tradução portuguesa, que não me parece suficientemente explicativa), comunicativa, testemunhal e ideológica. As mais úteis talvez sejam a textual e a ideológica. Mas, mais uma vez, isto tem interesse em termos teóricos, não em termos práticos (aliás, há outras classificações, v. por exemplo em Aguiar e Silva p. 759).


3. Narrador: Tempo da narração

• Narrador posterior (ou ulterior)
• Narrador anterior
• Narrador simultâneo 
• Narrador intercalado

Descobrir qual é a posição temporal do narrador em relação à história que está a contar é quase um tropismo, de tão evidente que é: o narrador ou conta a história depois dela ter acontecido (narrador posterior ou narração ulterior), ou antes dela ter acontecido (sonhos ou profecias; narrador ou narração anterior), ou ao mesmo tempo que ela acontece (narração simultânea) ou uma mistura das três (narração intercalada). 

Esta classificação de Genette (DR pp. 228-234; NDR pp. 52-55 e 87) tem certamente mérito teórico (para a análise crítica de narrativas clássicas, por exemplo), mas não consigo ver como é que estar sempre consciente da posição do narrador pode ser útil na prática da escrita (talvez para algum efeito estilístico?). 

[N.B. Não confundir o tempo da narração nem com o tempo do discurso, nem com o tempo da história.]


4. Narratário

• Narratário extradiegético ou intradiegético (ou metadiegético)
• Narratário heterodiegético ou homodiegético

O narratário é uma entidade abstracta que, por definição, existe obrigatòriamente onde exista um narrador: se o narrador conta uma história, conta-a a alguém; esse alguém é o narratário. Se o narrador é uma personagem a contar uma história a outra personagem, esta segunda é a narratária. Se o narrador não for uma personagem, estará a contar a história a um narratário não especificado (que se poderia identificar com o «leitor ideal», NDR p. 91, mas v. a grande diatribe que Genette faz contra este e outros conceitos supérfluos, NDR pp. 93-107).

Daqui se vê que narrador e narratário estarão sempre no mesmo nível e que, portanto, a mesma classificação criada por Genette para o narrador serve também para o narratário: onde houver um narrador extradiegético, haverá um narratário extradiegético; onde o narrador for intradiegético, o narratário será intradiegético. Genette discorre sobre o narratário em DR pp. 265-267 e NDR pp. 90-93, mas remete para Gerald Prince (1973) “Introduction à l’étude du narrataire” Poétique 14:178-196, que considera um estudo mais competente.

A distinção entre homodiegético e heterodiegético também se poderia aplicar ao narratário, mas Genette não a faz explìcitamente. Porém, menciona um caso particular (NDR p. 92): o «narratário-herói», que resulta numa história contada na 2.ª pessoa verbal («Tu és...», «Vós fizestes...», «Você tem...»), que Genette considera uma variante de narrador heterodiegético, já que este foi definido por não falar na 1.ª pessoa (e não por falar apenas na 3.ª). Ali o narrador (heterodiegético) falará do narratário enquanto personagem, para o narratário enquanto tal (por definição igualmente heterodiegético, portanto, ainda que pudesse parecer homodiegético).

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.

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