sem título
Não pensei mesmo que a aparelhagem se poderia ressentir daquela música, mas ressentia-se... À medida que se esforçava para me dar a leitura fria do CD, aquecia a pouco e pouco, o mostrador ficando cada vez mais brilhante enquanto mostrava (nunca percebi bem porquê) o tempo a passar, qual relógio de tempo limitado.
No segundo andamento da sinfonia, a aparelhagem dir-se-ia que suava. Eu suava de certeza, sentado incomodamente no sofá macio, incomodado pela força da música. Pensava em mim e em todas as sensações que aquela música me fazia sentir. Esquecia-me de pensar nos livros e nos móveis e em tudo o que, ali na sala, também era obrigado a sentir aquela música por minha causa. Na verdade não pensava — só sentia.
E quando a música se aproximava de um ponto alto e eu me agarrava ao sofá e contraía os músculos e tentava segurar o coração para que não me saltasse do peito, não percebi que a aparelhagem também se queria agarrar a qualquer coisa e aguentar o impacto da onda de sensações.
No final do grande clímax, mesmo nos seus últimos segundos, a aparelhagem não aguentou mais, resvalou até ao chão, o pedestal de revistas desmanchada, escorrendo como uma cascata de papel, ajudada por uma lufada de ar vinda da janela e que aparece sempre que a Natureza é obrigada a mostrar o seu mais íntimo.
A aparelhagem ficou inerte, caída, a luz do mostrador apagado, a porta das cassetes aberta como a boca aberta de um cadáver, enquanto revistas continuavam a chover-lhe em cima como flores atiradas para cima de um caixão... Ela não aguentara, não aguentava mais, nunca aguentaria mais fosse o que fosse. Bruckner tem destas coisas...
Escrito em Abrantes, a 8 de Setembro de MMVI
Escrito em Abrantes, a 8 de Setembro de MMVI
2 comentários:
Coitada da aparelhagem, até eu já suava com a descrição. Não conheço Bruckner, nem sei se vou conhecer!
Gostei!
Gira! concordo, parece mesmo que estamos a viver no texto. Para apreciadores de música :D
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