quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Tempos verbais simples e compostos

Fui fazer uma visita a uns amigos em Itália e, em conversa sobre «como se diz isto ou aquilo na língua X ou Y», pus-me a comparar as conjugações dos verbos italianos com as portuguesas. Salta à vista que, tal como acontece em francês, a língua italiana usa tempos verbais que são compostos quando em português seriam tempos simples (por exemplo, o trapassato prossimo, equivalente ao francês plus-que-parfait; funcionam ambos como o português mais-que-perfeito). Isto levou-me a ir construir as formas compostas dos tempos verbais em português; todas são possíveis, mas nem todas se utilizam, e não têm certamente o mesmo significado semântico que as correspondentes formas simples (o perfeito composto nunca substitui o perfeito simples como o passé composé substitui o passé simple).

Exemplificado com o verbo FAZER, incluindo algumas formas galegas, ou usadas no vernáculo popular até tarde em Portugal, eis os tempos verbais compostos seguindo os seus tempos simples. As formas marcadas com * não são hoje usadas, mas já o foram até ao século XVI (v. o texto abaixo).

INDICATIVO
Presente simples
faço ― fazes ― fazem ― fazemos ― fazeis/fazedes ― fazemos
Presente composto [P. perf. comp.] [Passado próximo]
tenho ― tens ― tem ― temos ― tendes ― têm/tenhem > feito
Pretérito imperfeito simples
fazia ― fazias ― fazia ― fazíamos ― fazíeis ― faziam
Pretérito imperfeito composto [P. m. comp.] [Pass. contínuo]
tinha, tinhas, tinha, tínhamos, tínheis/tínhedes, tinham > feito
Pretérito perfeito simples
fiz, fizeste, fez, fizemos, fizestes, fizeram/fizerom
Pretérito perfeito composto [inexistente] [Passado anterior]
* tive, tiveste, teve, tivemos, tivestes, tiveram/tivérom > feito
Pretérito mais-que-perfeito simples
fizera, fizeras, fizera, fizéramos, fizéreis/fizéredes, fizeram
Pretérito mais-que-perfeito composto [inex.] [Pass. remoto]
* tivera, tiveras, tivera, tivéramos, tivéreis/tivéredes, tiveram > feito
Futuro do presente simples [Futuro imperfeito]
farei, farás, fará, faremos, fareis, farão
Futuro do presente composto [Futuro perfeito]
terei, terás, terá, teremos, tereis, terão > feito
Futuro do pretérito simples [Condicional presente]
faria, farias, faria, faríamos, faríeis, fariam
Futuro do pretérito composto [Condicional pretérito]
teria, terias, teria, teríamos, teríeis, teriam > feito

SUBJUNTIVO/CONJUNTIVO
Presente (simples)
faça, faças, faça, façamos, façais/façades, façam
Pretérito imperfeito (simples)
fizesse, fizesses, fizesse, fizéssemos, fizésseis/fizéssedes, fizessem
Pretérito perfeito (composto)
tenha, tenhas, tenha, tenhamos, tenhais/tenhades, tenham > feito
Pretérito mais-que-perfeito (composto)
tivesse, tivesses, tivesse, tivéssemos, tivésseis/tivéssedes, tivessem > f
Futuro imperfeito (simples)
fizer, fizeres, fizer, fizermos, fizerdes, fizerem
Futuro perfeito (composto)
tiver, tiveres, tiver, tivermos, tiverdes, tiverem > feito

INFINITIVO
Pessoal (ou Flexionado) simples
fazer, fazeres, fazer, fazermos, fazerdes, fazerem
Pessoal (ou Flexionado) composto
ter, teres, ter, termos, terdes, terem > feito
Impessoal (ou Não-flexionado) simples
fazer
Impessoal (ou Não-flexionado) composto
ter feito

GERÚNDIO
Gerúndio simples
fazendo
Gerúndio composto
tendo feito

Transcrevo aqui na íntegra o que escreveu o filólogo brasileiro Manuel Said Ali àcerca dos tempos compostos. Said Ali (como bem lembrou Eunice Pontes) não concordava com a inclusão das formas compostas junto com as formas simples nas tabelas da conjugação verbal, considerando-as antes conjugações perifrásticas, de origem semântica. Realço no texto a forma tive feito etc., que, pela ausência na fala corrente, se torna a mais intrigante de todas.

«Todos os tempos e modos do auxiliar ― salvo o próprio particípio do passado, e talvez, o mais-que-perfeito 58 [58 Os exemplos de tivera feito, por mim coligidos, têm todos o sentido ou de teria feito ou de tivesse feito.] ― se combinaram desde cedo com o particípio do verbo principal. Somente às dicções tive feito, tiveste feito, teve feito, etc., semelhantes na formação e no uso ao “passé antérieur” da língua francesa e conhecidas ainda muito bem dos quinhentistas, faltou vitalidade bastante que as conservasse na linguagem destes últimos séculos.

As diversas formas ter feito, tendo feito, tenho feito, tinha feito, tive feito, terei feito etc. irmanam-se todas por um traço semântico proveniente da origem comum, e o seu estudo ― mau grado a tradição até o presente seguida ― é para fazer-se em conjunto e fora do quadro das formas simples, aliviando-se assim o paradigma geral dos complicados ingredientes de tempos perfeitos compostos e tempos anteriores, passados e exatos.

Trata-se de uma conjugação perifrástica creada pela aproximação e enlace semântico de um elemento ativo ― habere ou tenere ― e um elemento passivo; aquele referindo-se ao sujeito da oração, este qualificando o objeto direto. Correm pelo falar moderno bastantes exemplos que lembram aquela primitiva fase dos dois verbos ainda não associados: sometida Bizancio tem a seu serviço indino (Lus., 3, 12); as aguias nas bandeiras tem pintadas (ib., 8, 5); tinha fechadas as portas com tal severidade... que nenhum estrangeiro lá podia entrar (Vieira, Serm., 8, 301); tenho acabadas seis Decadas (Couto, Dec., 4, Ep.).

Neste estado de independência, em que o particípio passivo indica o resultado de uma ação anterior, não se determina quem seja o respectivo agente, ao passo que na fusão semântica, se afirma ser ele o mesmo que o sujeito do verbo ter. Disto resulta compor-se uma expressão verbal ativa, em que a noção principal se passa ao particípio, reduzindo-se o verbo ter ao papel de lhe acrescentar, com as flexões usuais do verbo, a modalidade de realização perfeita até o presente, ou até determinado momento do pretérito ou futuro. Comparem-se tenho lido as obras de Virgilio, com leio as obras de Virgilio; terei feito o trabalho na semana próxima, com farei o trabalho; e com as formas simples comeu, fez se confrontem as formas compostas, esquecidas hoje, mas nem por isso menos sugestivas, dos exemplos seguintes: depois que ho Conde e ho Mestre ouverom comido...; veo sse pera elles o Conde Dom Alvaro (Fern. Lopes, D. J., 26); depois que el Rei teve determinado de pellejar... mandou duas gallees (ib., 225); e como teve feito nella [cidade] o que quiz, foi cercar D. João no forte em que estava (Couto, Dec., 4, 10, 6).

Na falta de designações melhores que diferenciem este aspecto verbal e o paradigma simples, podem-nos servir os termos perfectivo e imperfectivo, sem pretenderem contudo significar o mesmo que nas gramáticas de línguas eslavas, onde são empregados.

Responde ao imperfectivo fazia naturalmente a forma tinha feito; porém esta, por isso mesmo que é perfectiva, vem a dizer tanto como aquela outra forma sintética fizera, para cuja denominação se criou o superlativo mais-que-perfeito. Faz-lhe às vezes muito a miúdo, não só pela tendência analítica das línguas modernas, mas ainda porque permite distinguir a 3.ª pessoa do plural da do tempo perfeito.

Sérias dificuldades oferece à teoria, como à pratica, o perfectivo do presente com sua propensão para designar uma ação pretérita; e tão obscuras são as regras de seu emprego nas diversas línguas, que facilmente naufragam os que passam a utilizar-se desta forma verbal de um idioma para outro.

A razão da afinidade do presente perfectivo com o simples pretérito perfeito está em que todo e qualquer ato compreendido no tempo presente ― a que não sabemos limites ―, mas realizado, poucos segundos que sejam, antes do momento em que falamos, é por isso mesmo também ato pretérito. E naquelas línguas onde esta consideração prevaleceu em absoluto, pôde o presente perfectivo como j’ai reçu la lettre facilmente desbancar o uso do pretérito simples.

Em português porém entendemos vir a propósito o presente perfectivo ― e esta distinção não se faz nos demais tempos ― se o ato é durativo ou iterativo, como: tenho passado ou vivido bem, tenho lido muitos romances; mas não diremos ele tem morrido, tenho recebido a carta, porque são atos momentâneos sem continuidade nem repetição.

É contudo permitido ao cabo de um discurso mais ou menos alentado, de um trabalho ou esforço prolongado, proferir estas palavras: tenho dito, tenho acabado, tenho chegado, até aqui tendes chegado felizmente (Vieira, Serm. 8, 50). Estas conclusões resultam de um fenômeno de contágio. O fato durativo não está em nenhum dos mencionados verbos; mas o orador só se lembra do muito que tem falado, das razões que seguidamente tem exposto, do muito que lhe pareceu durar uma viagem.»

― Said Ali (1908) Dificuldades da Língua Portuguesa, 7.ª edição (2008). Academia Brasileira de Letras, pp. 145-147.


Bibliografia
• Evanildo Bechara (2009) Moderna Gramática Portuguesa, 37.ª edição. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira [1.ª ed. 1961].
• Rodrigo Bezerra da Silva (2015) Nova Gramática da Língua Portuguesa para Concursos, 7.ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Método.
• Domingos Paschoal Cegalla (2008) Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
• Pilar Vázquez Cuesta & Maria Albertina Mendes da Luz (1971) Gramática Portuguesa, 3.ª edição revista [original em espanhol: 1.ª ed. 1949. 2.ª ed. aumentada 1961; Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Edições 70; tradução de Ana Maria Brito e Gabriela de Matos, 1980, impressão de 1989].
• Celso Cunha & Luís F. Lindley Cintra (1984) Nova Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa: Edições Sá da Costa. [usei a 7.ª edição, publicada pela Lexicon, 2016]
• Celso Cunha & Luís F. Lindley Cintra (1985) Breve Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa: Edições Sá da Costa.
• Anabela Gonçalves & Teresa da Costa (2002) (Auxiliar a) Compreender os Verbos Auxiliares. Descrição e implicações para o ensino do Português como Língua Materna (Cadernos de Língua Portuguesa, #3). Lisboa: Colibri.
• Maria Helena Mira Mateus, Ana Maria Brito, Inês Duarte & Isabel Hub Faria (2003) Gramática da Língua Portuguesa, 5.ª edição revista e aumentada. Lisboa: Caminho [1.ª ed. 1983].
• Elisabetta Perini (2016) Grammatica italiana per tutti, nuova edizione. Firenze: Giunti.
• Eunice Pontes (1973) Verbos auxiliares em português. Petrópolis: Vozes.
• Manuel Said Ali Ida (2008) Dificuldades da Língua Portuguesa: Estudos e Observações, 7.ª edição. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras / Biblioteca Nacional (Brasil) [1.ª ed. 1908. 2.ª ed. 1919. 5.ª ed. 1957].
• Maria Margarete Fernandes de Sousa (1999) A questão das perífrases verbais. Revista de Letras 21(1/2):100-110. [v. para um bom apanhado do assunto]
• Vários Autores (2013-2020) Gramática do Português, 3 vols. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

sábado, 25 de junho de 2022

Citações scientíficas

"As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento."
― John Stuart Mill, Sobre a liberdade (1859), in Almeida & Murcho (2014), Janelas para a filosofia, p. 49.

"Na maior parte dos casos, o raciocínio não nos fornece uma demonstração, mas apenas razões para acreditar numa conclusão plausível, ou para preferi-la ligeiramente às alternativas."
― Thomas Nagel, A última palavra (1997), in Almeida & Murcho (2014), Janelas para a filosofia.


"A razão é a descoberta da verdade ou da falsidade. A verdade ou a falsidade consistem na concordância ou discordância seja com a relação real de ideias, seja com a existência real e a questão de facto. Logo, o que não for susceptível desta concordância ou discordância é incapaz de ser verdadeiro ou falso."
― David Hume, A treatise on human nature (1738), in Almeida & Murcho (2014), Janelas para a filosofia.

"[AK] A facilidade e a responsabilidade que nós (na Ciência) temos em mudar de paradigma, de ideia. Basta uma teoria melhor, basta evidências melhores, e a gente muda.
[ML] Museus como agentes de validação, mas de uma validação da informação que não é dogmática, quer dizer: se aparecerem evidências, em resultado da pesquisa, em resultado da razão e da análise, do pensamento, etc., nós (museus) temos obrigação de ser os primeiros a dizer «não, não é assim».
[AK] Passar essa tranqüilidade para a população, e quando nós (a Ciência, numa forma geral) não estivermos corretos, mudamos! Sem trauma, sem muito problema. Então a gente não se agarra às nossas ideias; a gente as tem em função das evidências que nós temos. Se as evidências mudam, a gente muda as ideias para transmitir o melhor conhecimento para a sociedade. E finalmente a Ciência tem de existir ― como os museus ― para o benefício das nossas sociedades. (...) Maravilhar o visitante, mas também criar nele a visão crítica de tudo o que o cerca."
― Alexandre Kellner (MN-UFRJ), numa sessão de Museus em Diálogo de Marta Lourenço (MuHNaC), no FB 26/06/2020.

"(...) na ciência, o objecto da investigação não é a natureza em si, mas a natureza subordinada à nossa maneira de colocar o problema. (...) A ciência já não é um espectador colorado em frente da natureza."
― Werner Heisenberg, A Imagem da Natureza na Física Moderna (1955), in Almeida & Murcho (2014), Janelas para a filosofia, p. 136.
Ou seja: uma questão de aproximação matemática... A implicação é que só os físicos é que podem entender a natureza em si ― até porque não podem observar directamente o objecto natural que estudam. Logo, não concebem a ciência como inductiva, mas deductiva a priori, observacional a posteriori, e é assim que Popper constrói a sua filosofia. Quanto a mim, a «natureza subordinada» de Heisenberg não pode ser generalizada e só pode ser entendida como aquilo que eu digo sempre: as minhas assunções só são válidas dentro e para os fins experimentais de um só artigo (ou tese); mas as interpretações de resultados continuam a ser inductivas. MP, 30 Jul 2020.

"(...) o conhecimento humano é sempre uma questão de sorte epistémica: quando usamos as nossas faculdades cognitivas com cuidado, produzimos muitas vezes conhecimento, mas produzimos também muitas vezes ilusão de conhecimento, e nada que possamos fazer poderá eliminar este último caso. Deste ponto de vista, o termo «conhecimento» limita-se a assinalar a nossa confiança relativa de que sabemos algo; contudo não é possível especificar de antemão os critérios que distinguem o conhecimento da ilusão de conhecimento porque é no próprio seio da nossa actividade cognitiva que vamos descobrindo as muitas maneiras como podemos estar enganados, e as muitas maneiras como tentamos tornar mais improvável que estejamos enganados. Assim, o que realmente conta é saber se uma crença é verdadeira e se as nossas justificações são suficientemente robustas, sendo aceitável que não garantam o conhecimento, desde que tornem muitíssimo improvável a ilusão."
― Aires Almeida & Desidério Murcho, Janelas para a filosofia (2014), p. 111.

"Since the study of philosophy involves working with concepts rather than facts, the activity of philosophy seeks understanding rather than knowledge. In other words, emphasis in this course of study is placed on the reasoning process. Memorizing the subject matter of philosophy is less likely to give insight into the discipline than is engaging actively in the process of doing philosophy."
― Lee Archie & John G. Archie, Reading for Philosophical Inquiry (2004), p. 4.

"More than ever ideals of reason, science, humanism, and progress need a whole hearted defense. We take its gifts for granted: new borns who will live more than eight decades, markets overflowing with food, clean water that appears with a flick of a finger and waste that disappears with another, pills that erase a painful infection, sons who are not sent off to war, daughters  who can walk the streets in safety, critics of the powerful who are not jailed or shot, the world's knowledge and culture available in a shirt pocket. But these are human accomplishements, not cosmic birthrights. In the memories of many readers of this book—and in the experience of those in less fortunate parts of the world—war, scarcity, disease, ignorance, and lethal menace are a natural part of existence. We know that countries can slide back into these primitive conditions, and so we ignore the achievements of the Enlightenment at our peril. (...) The ideals of the Enlightenment are a product of human reason, but they always struggle with other strands of human nature: loyalty to tribe, deference to authority, magical thinking, the blaming of misfortune on evildoers."
― Steven Pinker, Enlightenment Now: The Case for Reason, Science, Humanism, and Progress (2018), pp. 19-20.

Five elements of Public Speaking:
1 communicator
2 message
3 medium
4 audience
5 effect
The speaker should be answering the question: "who says what in which channel to whom with this effect."

Dialoguing 101 (Doha Debates):
1 set goals
2 actively listen (talk less than listen; pay attention)
3 ask questions
4 focus on interests (find common interests)

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Paula Rego (1935-2022)

terça-feira, 10 de maio de 2022

Primeiros filmes do cinema em Portugal

Nos primeiros 50 anos de filmagens em Portugal. 

1894/1895 ― La Sortie de l'usine Lumière à Lyon (1.º filme de sempre)

1896 ― Caricaturas por Pina Vaz
1896 ― Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança (1.º filme feito em Portugal)
 
[1897, Jan. ― Filmagens da avenida Rio Novo (Rio Branco?), no Rio de Janeiro, por Aurélio Paz dos Reis? Se existirem, são as 1.ªs no Brasil]
1897 ― Ancoradouro de Pescadores na Baía de Guanabara
1897 ― Bailado de Crianças no Colégio, no Andaraí
1897 ― Chegada do trem em Petrópolis
1897 ― Uma artista trabalhando no trapézio do Politeama (1.ºs filmes feitos no Brasil)
1897 ― O Comboio de Recreio e Sintra

1900 ― Um Passeio de D. Carlos

1901 ― Regresso dos Soberanos da sua Viagem aos Açores

1902 ― Visita do Rei Eduardo VII de Inglaterra

1903 ― A Família Real
1903 ― Visita do Rei Afonso XIII de Espanha

1905 ― Visita do Imperador Guilherme II da Alemanha

1906 ― Os Lusíadas

1907 ― Batalha de Flores no Campo Grande
1907 ― O Rapto de uma Actriz

1908 ― Grisette (1.ª tentativa de filme sonoro em Portugal)

1909 ― A Cultura do Cacau (1.º filme em São Tomé e Príncipe)
1909 ― D. Manuel nas Festas do Centenário da Guerra Peninsular
1909 ― Os Crimes de Diogo Alves (filme inacabado)

1910 ― A Grande Corrida de Automóveis no D. Amélia
1910 ― Chantecler Atraiçoado
1910 ― Rainha Depois de Morta

1911 ― Os Crimes de Diogo Alves (o mais antigo filme de ficção portuguesa conservado)

1916 ― O Quim e o Manecas
1916 ― Uma Conquista de Cardo as Charlot no Jardim Zoológico de Lisboa

1917 ― A Rosa que se Desfolha (filme luso-brasileiro)
1917 ― Pratas, o Conquistador

1918 ― Frei Bonifácio
1918 ― Mal de Espanha
1918 ― Malmequer
1918 ― O Homem dos Olhos Tortos

1919 ― A Rosa do Adro
1919 ― Nascimento, Músico
1919 ― Nascimento, Sapateiro
1919 ― O Comissário de Polícia
1919 ― O Mais Forte

1920 ― A Visita do Rei dos Belgas a Lisboa ou Romão Gonçalves, Cantor e Nadador
1920 ― Barbanegra
1920 ― O Amor Fatal
1920 ― O Condenado
1920 ― Os Fidalgos da Casa Mourisca
1920 ― Romão Gonçalves, Boxeur e Atleta
1920 ― Romão, Chauffeur e Mártir

1921 ― Amor de Perdição
1921 ― Quando o Amor Fala...
1921 ― Velha Gaiteira

1922 ― A Sereia de Pedra
1922 ― As Mulheres da Beira
1922 ― O Centenário
1922 ― O Destino
1922 ― Os Faroleiros

1923 ― A Estrela de Brilhantes
1923 ― A Morgadinha de Val-Flor
1923 ― As Pupilas do Senhor Reitor
1923 ― Aventuras de Agapito
1923 ― Cláudia
1923 ― Lucros... Ilícitos
1923 ― O Castelo de Chocolate
1923 ― O Fado
1923 ― O Groom do Ritz
1923 ― O Primo Basílio
1923 ― O Suicida da Boca do Inferno
1923 ― Os Lobos
1923 ― Os Olhos da Alma
1923 ― Tempestades da Vida
1923 ― Tragédia de Amor

1924 ― A Tormenta
1924 ― Tinoco em Bolandas

1925 ― Charlotin e Clarinha

1926 ― A Calúnia
1926 ― O Bicho da Serra de Sintra
1926 ― O Desconhecido
1926 ― O Fauno das Montanhas

1927 ― O Táxi Nº 9297
1927 ― Rita ou Rito?...

1928 ― Bailando ao Sol
1928 ― Fátima Milagrosa
1928 ― O Afilhado de Santo António
1928 ― O Diabo em Lisboa

1929 ― Acabaram-se os otários (1.º filme sonoro no Brasil)
1929 ― A Dança dos Paroxismos
1929 ― José do Telhado
1929 ― Nazaré, Praia de Pescadores
1929 ― Um Passeio Auspicioso

1930 ― A Castelã das Berlengas
1930 ― Lisboa, Crónica Anedótica
1930 ― Maria do Mar
1930 ― Ver e Amar

1931 ― A Portuguesa de Nápoles (filme mudo)
1931 ― A Severa (1.º filme sonoro de Portugal)
1931 ― Douro, Faina Fluvial (filme mudo)
1931 ― Nua (filme mudo)

1932 ― Campinos do Ribatejo (filme mudo)
1932 ― Hulha Branca (filme mudo)

1933 ― A Canção de Lisboa (2.º filme sonoro e 1.ª longa-metragem inteiramente produzida em Portugal)

1934 ― A Obra da Junta Autónoma de Estradas (último filme mudo)
1934 ― Gado Bravo (filme sonoro)
1934 ― O Lançamento do Contra-torpedeiro DÃO (filme sonoro)
1934 ― Porto de Lisboa (filme sonoro)

1935 ― As Pupilas do Sr. Reitor

1936 ― Bocage
1936 ― Caramulo
1936 ― O Trevo de Quatro Folhas

1937 ― A Revolução de Maio
1937 ― Maria Papoila

1938 ― A Canção da Terra
1938 ― A Extraordinária Aventura do Zéca
1938 ― A Rosa do Adro
1938 ― Aldeia da Roupa Branca
1938 ― Arquipélago dos Açores
1938 ― Os Fidalgos da Casa Mourisca
1938 ― Sorte Grande
1938 ― Um Passeio na Beira-Baixa

1939 ― A Segunda Viagem Triunfal
1939 ― Varanda dos Rouxinóis
1939 ― Viagem do Chefe do Estado às Colónias de Angola e S. Tomé e Príncipe

1940 ― As Festas do Duplo Centenário
1940 ― Famalicão
1940 ― Feitiço do Império
1940 ― João Ratão
1940 ― Pão Nosso...
1940 ― Porto de Abrigo

1941 ― A Exposição do Mundo Português
1941 ― Moçambique
1941 ― O Pai Tirano
1941 ― O Pátio das Cantigas

1942 ― Ala-Arriba!
1942 ― Aniki Bóbó
1942 ― Férias à Beira-mar
1942 ― Lobos da Serra

1943 ― Amor de Perdição
1943 ― Ave de Arribação
1943 ― Fátima Terra de Fé!

1944 ― A Menina da Rádio
1944 ― Gentes que Nós Civilizámos (Apontamentos Etnográficos de Angola)
1944 ― Inês de Castro
1944 ― O Violino de João
1944 ― Um Homem às Direitas

1945 ― A Noiva do Brasil
1945 ― A Vizinha do Lado
1945 ― Caldas de Aregos
1945 ― Cinco Lobitos
1945 ― É Perigoso Debruçar-se
1945 ― José do Telhado
1945 ― Madalena... Zero em Comportamento
1945 ― O Diabo São Elas...
1945 ― Sonho de Amor

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Citações sobre a narrativa

"Para Lobato, o conto é mesmo a narrativa de “causos” e deve se desenrolar levando com ele o leitor atento à sucessão dos fatos. (...) sua teoria do conto, a partir de seus modelos, Maupassant e Kipling: «Quero conto que conte coisas; conto donde eu saia podendo contar a um amigo o que aconteceu, como fulano morreu, se a menina casou, se o mau foi enforcado ou não.» (...) A origem dessas narrativas curtas está nas histórias que ouve, nos relatos que se espalham, em recriações de fábulas ou mitos tradicionais que vão se transformando nas ficções que se sucedem (...); é também sabendo ouvir de maneira toda especial a gente do interior e seus “causos”, incorporando e recriando sua linguagem (...): «Contos andam aí aos pontapés, a questão é saber apanhá-los. Não há sujeito que não tenha na memória uma dúzia de arcabouços magníficos, aos quais para virarem obra de arte, só falta o vestuário da forma, bem cortado, bem cosido, com pronomes bem colocadinhos». (...) não falta sequer o recurso ao fantástico, ao incrível fantasioso que dá aquele sal que considera imprescindível ao conto na construção do enredo que vai do amor romântico à história de terror." [«Grandes folhetinistas andam por este mundo de Deus perdidos na gente do campo, ingramaticalíssima, porém pitoresca no dizer como ninguém.» Monteiro Lobato no conto O mata-pau, in Contos Completos, p. 120]
― Beatriz Resende, na apresentação aos Contos Completos de Monteiro Lobato, pp. 10s.

"(...) texto fortemente entretecido de cortes, elipses, interrogações, dúvidas, anacolutos, litotes, com mudanças bruscas de interlocutor mesmo no meio da frase. E assim por diante, num discurso que habilmente desnorteia o leitor, ao mesmo tempo cativado e manipulado pela enganosa facilidade da leitura. (...) [A narradora] elege o microcosmo, examinando comportamentos e padrões de conduta, sem esquecer a lubrificação conferida pela hipocrisia (...). A narradora é instrumento aperfeiçoado, afinado e afiado, talvez a maior perícia da escritora. A elegância de uma escrita quase minimalista desposa a elegância das soluções de enredo. (...) duas categorias de contos ou grupo de contos: uma dos mais estruturados e uma dos menos estruturados, que já resvala para o fluxo da consciência."
― Walnice Nogueira Galvão, no posfácio da edição d'Os Contos de Lygia Fagundes Telles.


"(...) her economy, the boldness of her comic gift, her speed, her dramatic changes of the point of interest, her power to dissolve and reassemble a character and situation by a few lines (...)"
― V. S. Pritchett, on Katherine Mansfield, 1946 (v. Guardian bookblog).

"(...) what we usually mean by the [short story] genre is that concentrated form of writing that, breaking away from the classic short tale, became, as it were, the lyric poem of modern fictional prose. The great precursors were Chekhov, Henry James, Katherine Mansfield, James Joyce, and Sherwood Anderson. It took on a strong modernist evolution in the work of Hemingway, Faulkner, Babel and Kafka which, in the period after 1940, was followed by a new wave of experiment led by Beckett and Borges (...). The modern short story has therefore been distinguished by its break away from anecdote, tale-telling and simple narrative, and for its linguistic and stylistic concentration, its imagistic methods, its symbolic potential. (...) the story as an art of figures rather than adventures, (...) committed to the single occasion or the single concentrated image (...)."
― Malcolm Bradbury, from the introduction to The Penguin Book of Modern British Short Stories (1987).

"(...) the short story—in its earliest manifestations, the short tale or romance—as a form ideally suited to the expression of the imagination. (...) lends itself to experimentation and idiosyncratic voices. (...) it represents a concentration of imagination, and not an expansion; (...) and, no matter its mysteries or experimental properties, it achieves closure—meaning that, when it ends, the attentive reader understand why. (...) not a mere concatenation of events, as in a news account or an anecdote, but an intensification of meaning by way of events. Its "plot" may be wholly interior, seemingly static, a matter of the progression of a character's thought. Its resolution need not be a formally articulated statement (...), but it signals a tangible change of some sort."
"In addition to these qualities, most short stories (but hardly all) are restricted in time and place; concentrate upon a very small number of characters; and move toward a single ascending dramatic scene or revelation. And all are generated by conflict. The artist is the focal point of conflict. Lovers of pristine harmony, those who dislike being upset, shocked, made to think and to feel, are not naturally suited to appreciate art, at least not serious art; which, unlike television dramas and situation comedies, for instance, does not evoke conflict merely to solve it within a brief space of time. Rather, conflict is the implicit subject, itself; as conflict, the establishment of disequilibrium, is the impetus for the evolution of life, so is conflict the genesis, the prime mover, the secret heart of all art."
― Joyce Carol Oates, from the introduction to The Oxford Book of American Short Stories (1992), pp. 10s.

domingo, 3 de abril de 2022

Lygia Fagundes Telles (1918-2022)

"Lygia pertence a uma linhagem em nossa literatura que vem de Machado de Assis — crítica, velada, expressa no bom português de quem sabe escrever e toma a literatura a sério. Nunca facilitou e nunca se mostrou sujeita a modas ou tendências."

― Walnice Nogueira Galvão, no posfácio da edição d'Os Contos de Lygia Fagundes Telles.

terça-feira, 29 de março de 2022

A Narrativa de Ficção ― SUMÁRIO

NARRATIVA = história + discurso + narração

INTRODUÇÃO (a narrativa)
1. Narrativa = história + discurso + narração
2. História = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)
3. Discurso = enunciado, texto (expressão da história)
4. Narração = enunciação, relato (produção do discurso)
5. Composição (recitação, redacção)
6. Bibliografia

HISTÓRIA = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)
0. O tema
1. As personagens
2. As circunstâncias

DISCURSO = enunciado, texto (expressão da história)
1. Tempo do discurso: Ordem (anacronias)
2. Tempo do discurso: Velocidade (anisocronias)
3. Tempo do discurso: Freqüência (repetições)
5. Modo do discurso: Perspectiva (focalizações)
6. Modo do discurso: Alterações

NARRAÇÃO = enunciação, relato (produção do discurso)
1. Narrador: Nível
2. Narrador: «Pessoa»
3. Narrador: Tempo da narração
4. Narratário

COMPOSIÇÃO (recitação, redacção)
1. Géneros narrativos
2. Gramática da língua
3. Valorização estilística
5. Estratégias textuais
6. Notas e recomendações artísticas

1. Teoria e análise
2. Prática da escrita
3. Livros escolares
4. Corpus essencial da narrativa de ficção
5. Clássicos da narrativa de ficção na língua portuguesa

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.

sexta-feira, 25 de março de 2022

A Narrativa de Ficção ― INTRODUÇÃO

INTRODUÇÃO (a narrativa)

1. Narrativa = história + discurso + narração

• História
• Discurso
• Narração
[• Composição]

A narrativa é uma tipologia literária com definições várias consoante quem a estude (v. bons resumos em Aguiar e Silva pp. 385s, Reis & Lopes 1987 e Reis 2018, Alves 2009; Bourneuf & Ouellet 1978, a subsecção “Uma história de marinheiro” pp. 36-42 é um excelente resumo do que seja a narrativa). 

Mas, em todas as definições (incluindo as que vêm nos dicionários da língua portuguesa, por exemplo na Infopédia [= Porto Editora], no Aulete e no Priberam [= Lello]), a narrativa implica uma história que seja contada, uma sucessão de acontecimentos experienciados por personagens (Aguiar e Silva p. 711); uma narrativa de ficção seria, então, a narração de uma sucessão de acontecimentos ficcionais (Rimmon 2002, p. 2). 

[A distinção entre realidade e ficção, porém, esbate-se: Mircéa Eliade mostrou que a literatura oral se confundia com a religião, veìculando mitos como se fossem «histórias verdadeiras» contando tanto acontecimentos reais, como aventuras heróicas ou a criação do mundo (in Bourneuf & Ouellet 1978, p. 18); e já o poeta gaúcho Mario Quintana dizia “para mim, tudo é verdade mesmo” (no Caderno H, 1973).] 

Alguns críticos dividem a narrativa em dois planos de linguagem, o das personagens e o do narrador, isto é, o que se narra (a história) e como se narra (o discurso) (Mesquita 1987, p. 21; Reis & Lopes 1988, p. 277; Gancho 2006, p. 37). 

No entanto, para o teórico francês Gérard Genette (Discours du récit, em Figures III, 1972 [daqui para diante DR] e Nouveau discours du récit, 1983 [daqui para diante NDR]) a narrativa tem três ― e não dois ― planos, òbviamente relacionados, mas distintos: uma história, ou seja, o conteúdo de um enunciado, a sucessão de acontecimentos reais ou fictícios; um enunciado narrativo, isto é, o discurso (oral ou escrito) que corresponde ao relato de uma série de acontecimentos; e a narração, o acto de narrar em si mesmo, isto é, “um acontecimento: não aquele que se conta, mas aquele que consiste em que alguém conte alguma coisa” (DR pp. 71-72). Como tal, e para efeitos de estudo, atribui a cada um destes planos um termo técnico preciso em francês: histoire récit narration, respectivamente. Shlomith Rimmon-Kenan (2002, p. 3) segue a divisão de Genette e chama-lhes, em inglês: story text narration. Eu aqui, nesta série de postagens, vou seguir de muito perto o sistema de Genette e fazer uso dos termos em português: história discurso narração.

[Atenção que a palavra «récit» se costuma traduzir para português por «narrativa», mas Genette é muito claro p. 72: no sistema dele, «récit» significa sempre «discurso», “Je propose (...) de nommer (...) récit proprement dit le signifiant, énoncé, discours ou texte narratif lui-même” (excepto no título da obra, «discours du récit», claramente «discurso da narrativa», provàvelmente de propósito).]

Dos três planos da narrativa, o discurso é o único que se presta directamente à análise textual, o único que está disponível ao leitor ou ouvinte: é pelo discurso (expressão) que se tem acesso à história (conteúdo) através da narração (produção) (DR p. 73; Rimmon 2002, p. 4). Não há narrativa a não ser que se conte uma história de uma certa maneira. A narrativa é, portanto:

• a narração do discurso da história.

• a enunciação do enunciado da diegese.

• a produção da expressão do conteúdo.

• o relato do texto da ficção

quem conta e como é contado o que há para contar.

Eu acrescento um «quarto plano»: o da composição da narrativa, que equivale à sua redacção (se for escrita) ou à sua recitação (se for verbal, contada oralmente). Penso que muitos aspirantes a escritor (incluindo eu próprio!) confundem o desejo de pôr palavras e frases no papel com o de criar uma narrativa. Foi só depois de estudar os meandros da história, do discurso e da narração, que compreendi que a redacção do texto pouco tem a ver com a narrativa em si, e que é uma actividade que vem apenas depois de se ter construído uma narrativa lógica e original. É depois (e só depois) que entram a escolha do género narrativo, a boa gramática, as escolhas estilísticas, a estrutura dos parágrafos e da mancha tipográfica, etc.


2. História = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)

• Personagens
• Circunstâncias: espaços, tempo da história, etc.
• Enredo

No plano da história ou diegese ou ficção ― o conteúdo da narrativa — parece ser consensual que toda e qualquer narrativa de ficção é alicerçada em pelo menos quatro elementos (ou categorias): as personagens, as circunstâncias (muitas vezes divididas apenas em tempo e espaço), o enredo (acções e acontecimentos) e o narrador (Gancho 2006, pp. 6 e 11). São os conteúdos reconhecíveis da ficção (Reuter 1997, p. 21). Por vezes o tema de uma narrativa é também considerado um elemento. 

“Um texto narrativo é aquele onde um narrador conta uma «história» em que entram personagens que se envolvem num enredo situado numa determinada circunstância (espaço, tempo, etc.)” (Teixeira & Bettencourt 1997, p. 105, adaptado).

“Num inquérito feito em 1965 para uma revista [francesa], umas dezenas de leitores adultos (...) definiam a sua conceição do verdadeiro romance: 
• pintar caracteres, criar heróis e tipos, ser a «odisseia de um destino»;
• contar uma história, conter acção, apresentar situações variadas.” (Bourneuf & Ouellet 1972, p. 20)

“(...) para o leitor vulgar, o romance [a narrativa] é, em primeiro lugar, uma história complexa e inverosímil, encontros miraculosos, heróis demasiado perfeitos e heroínas demasiado belas para serem verdadeiros. «Fiction», dizem os anglo-americanos, «ilusão», poderíamos traduzir [para francês, mas também dá em português] sem grande infidelidade.” (Bourneuf & Ouellet 1972, pp. 5-6)

São, portanto, as personagens (com a sua caracterização e atributos, motivação e objectivo) e o enredo (com conflito e tensão, verosimilhança e causalidade, e uma estrutura) que conduzem a história (categorias fundamentais da narrativa, dizem Reis & Lopes 1987, p. 215), enquanto que as circunstâncias existem inevitàvelmente se aquelas existem, ainda que se possa dizer que um espaço (a cidade de Lisboa nas narrativas de Eça de Queirós, por exemplo) também possa, em certos casos, ser considerado uma personagem. “A diegese (ficção, história), como sucessão de eventos (...), é inconcebível fora do fluxo do tempo” (Aguiar e Silva, pp. 745s) e é a este que se chama tempo da história, não se confundindo nem com o tempo do discurso, nem com o tempo da narração; e corresponde ao tempo necessàriamente cronológico do universo ficcional onde as personagens e as acções acontecem (tempo que depois vai ser tratado ou elaborado não-cronològicamente, resultando no tempo do discurso). 

Não havendo acção ou acontecimentos decorridos ao longo do tempo, não há história (nem narrativa). Por exemplo, as quatro proposições em «Roses are red/ Violets are blue/ Sugar is sweet/ And so are you» são verdadeiras ao mesmo tempo, não há uma sucessão temporal de umas para as outras no mundo ficcional representado por estas frases e, portanto, não há história (Prince 1980, p. 49, in Rimmon 2002, p. 16). É a presença de uma história que distingue um texto narrativo de um texto não narrativo (Rimmon 2002, p. 16). “A experiência do tempo estrutura-se em acções desenvolvidas numa intriga coesa” (Reis & Lopes 1987, p. 76).

Como se viu antes, no sistema de Gérard Genette a narração é um plano diferente da história e, como tal, o narrador será tratado como voz da narração e não como elemento da história.


3. Discurso = enunciado, texto (expressão da história)

• Tempo do discurso: ordem, velocidade, freqüência
• Modo do discurso: distância, perspectiva, alterações

O plano do discurso ou enunciado ou texto ― a expressão (escrita, oral ou audiovisual) da história — é o resultado do acto de enunciação de um narrador. É construído através de procedimentos de elaboração técnico-narrativa (Reis & Lopes 1987, p. 141) que são, à partida, independentes do conteúdo da narrativa. Aparenta resultar do labor do narrador, porque é este que vai organizar e mediar toda a expressão do conteúdo da narrativa, mas na prática o discurso depende das diferentes escolhas técnicas e criativas (Reuter 1997, p. 21) que a autora tem de fazer para construir/estruturar os elementos narrativos coerentemente e para causar os efeitos desejados nos leitores. 

“O romancista opera nos feitos que quer narrar um corte e uma escolha, muitas vezes de ordem cronológica (...) privilegiar certos factos e deixar outros na sombra. Compõe a história [o discurso] para produzir um certo efeito no leitor, para reter a sua atenção, comovê-lo, provocar reflexão. Organiza a matéria-prima da sua história para lhe dar uma forma artística.” (Bourneuf & Ouellet 1978, p. 31)

Gérard Genette inspira-se nas categorias da gramática do verbo para as designações das categorias do discurso da narrativa («discours du récit»): modo e tempo (e voz para a narração: a voz do narrador, DR pp. 75-76).

O tempo do discurso é uma sucessão de enunciados (frases, períodos, parágrafos) e resulta do tratamento ou elaboração do tempo da história; só é igual ao tempo da história se essa sucessão de enunciados corresponder cronològicamente à sucessão dos acontecimentos. “O tempo do discurso é o arranjo textual dos acontecimentos da história; é unidireccional e irreversível, mas também é repetição e mudança” (Rimmon 2002, pp. 45-46). “O tempo do discurso é o resultado de uma estratégia textual que interage com a resposta dos leitores e lhes impõe um tempo de leitura” (Umberto Eco, Seis passeios, 3.º passeio p. 53). “O romance [a narrativa] é (...) uma arte temporal (...), é discurso, quer dizer, implica sucessão e movimento” (Bourneuf & Ouellet p. 169).

As relações entre o tempo da história e o tempo do discurso são de ordem, de velocidade (Genette inicialmente diz «duração») e de freqüência (DR p. 77). Isto é:
• relação entre a ordem temporal da sucessão dos acontecimentos na história e a ordem (pseudo-)temporal da disposição desses acontecimentos no discurso;
• relação entre a velocidade variável dos acontecimentos na (ou segmentos da) história e a (pseudo-)velocidade desses acontecimentos no discurso [= comprimento ou longura ou extensão ou demora ou delonga do texto, medida em linhas, parágrafos e páginas, NDR p. 23];
• relação entre as capacidades de repetição da história e as do discurso.

Genette decidiu designar tècnicamente como modos do discurso aquilo a que na mesma frase chama “modalidades (formas e graus) da «representação» narrativa” [“modalités (formes et degrés) de la «représentation» narrative”, DR p. 75]. Os modos do discurso são apenas dois, a distância e a perspectiva (incluindo as alterações à perspectiva), palavras que são metáforas para designar os modos de regulação da informação veiculada pelo discurso (DR p. 203) por selecção quantitativa e qualitativa do que é narrado. Genette distingue o modo do discurso (qual é a personagem cujo ponto de vista orienta a perspectiva narrativa? quem vê?) da voz do narrador (quem é o narrador? quem fala?).

A distância corresponde, grosso modo, à oposição anglo-saxónica entre to show (mostrar, mimesis) e to tell (contar, diegesis), que Genette, como veremos, considera não uma oposição, mas uma gradação de telling criando maior ou menor ilusão mimética. A perspectiva (e suas alterações) são as «focalizações», neologismo criado por Genette para estruturar com reduzida ambigüidade velhos termos como «ponto de vista», «visão», «foco narrativo», «aspecto», «restrição de campo», etc.

Resumindo, o discurso pode apresentar as acções e os acontecimentos da história (Veríssimo et al. 1998, p. 28, adaptado):
a. por ordem cronológica, igual, portanto, à da história;
b. com alteração da ordem cronológica (anacronia), recorrendo a analepse (recuo a acontecimentos passados) ou prolepse (antecipação de acontecimentos futuros);
c. à mesma velocidade dos acontecimentos na história (isocronia), por exemplo, na cena dialogada;
d. a uma velocidade diferente (anisocronia), recorrendo ao resumo (condensação dos acontecimentos), à elipse (omissão de acontecimentos) e à pausa (interrupção da história para dar lugar a descrições ou digressões);
e. a uma maior ou menor distância da história;
f. a esta ou àquela perspectiva da história.


4. Narração = enunciação, relato (produção do discurso)

• Narrador: nível, «pessoa», tempo da narração
• Narratário

Plano da narração ou enunciação ou relato ― a produção do discurso — é o acto de enunciação de um narrador e dirige-se, explícita ou implìcitamente, a um narratário (Reis 2001). Genette observa três categorias da «voz do narrador»: o nível do narrador, a «pessoa» do narrador e o tempo da narração; enquanto que o narratário merece tratamento à parte. 

No sistema de Genette, a «voz» designa as relações tanto entre a narração e o discurso, como entre a narração e a história, na mesma medida em que o tempo e o modo do discurso se referem às relações entre o discurso e a história (DR pp. 75-76). Daqui se vê como esta planificação triangular funciona bem num sistema teórico, mas também na prática: 
      Narração
     (voz) / \  (voz)
História    — Discurso
      (tempo e modo)

Faço aqui uma nota àcerca dos vários tipos de tempo na narrativa. Já se viu atrás que tempo da história, tempo do discurso e tempo da narração são coisas diferentes. Umberto Eco considera que há ainda um tempo de leitura, isto é, o tempo que quem lê demora a ler uma narrativa (Eco, Seis passeios, 3.º passeio pp. 50s), que Aguiar e Silva subsome no tempo do discurso. Bourneuf & Ouellet separam o tempo da aventura (equivalendo, mais ou menos, ao tempo da história + o tempo do discurso de Genette), o tempo da escrita (talvez semelhante ao tempo da narração de Genette, ou então o tempo que uma narrativa demora a ser redigida, incluindo, quiçá, todo o tempo de revisão e edição) e o tempo de leitura (similar, presumìvelmente, ao de Eco). Luiz Antonio de Assis Brasil (2019, pp. 328s) mostra um complicado esquema que inclui tempo da escrita, tempo da narrativa (= ao tempo do discurso de Genette), tempo como percebido por uma personagem (parte do tempo da história que inclui os tempos psicológicos de todas as personagens) e tempo de leitura [ficando a faltar o tempo da narração e o tempo cronológico = tempo real da história]. 

Estas questões teóricas dos tempos podem ser lidas nos dicionários literários (Reis & Lopes 1987; Reis 2018; Ceia 2018) e noutras obras especializadas (Aguiar e Silva pp. 745s; Bourneuf & Ouellet 1972, pp. 169s; Rimmon pp. 45s; e em Genette, evidentemente); eu aqui vou cingir-me aos três tempos técnicos de Genette, que são aqueles de verdadeira importância para a narrativa.


5. Composição (recitação, redacção)

• Géneros narrativos
• Gramática da língua
• Valorização estilística
• Modos de apresentação do discurso
• Estratégias textuais
• Recomendações artísticas

O meu quarto plano, o da composição — recitação ou redacção da narração — vem depois de se ter construído uma narrativa lógica e original. Não basta ter uma ideia e saber redigir correctamente: a elaboração de uma narrativa requer o conhecimento e a prática de certos recursos técnicos que permitam construir a ideia que uma autora tem em mente (Sabarich & Dintel 2001).

É depois de se ter construído essa narrativa lógica e original que começa a composição de um texto literário consistente e de qualidade. Para compôr uma narrativa (o que Reuter chama la mise en texte, que se pode traduzir por montagem de texto ou produção/criação do texto, isto é, a redacção de facto da narrativa), um escritor socorre-se de recursos múltiplos que implicam escolhas formais, lexicais e sintácticas, retóricas e estilísticas, textuais, etc. (Reuter 1997, p. 22). “A composição estrutura esses elementos num todo harmonioso nas justas proporções, respondendo a uma preocupação estética” (E. M. Forster, in Bourneuf & Ouellet 1972, p. 43).


6. Bibliografia

• Teoria e análise
• Prática da escrita
• Livros escolares
Corpus essencial 
• Clássicos na língua portuguesa

Tentei estudar sobretudo a bibliografia em língua portuguesa, mas tornou-se inevitável recorrer a fontes noutras línguas, principalmente Genette, que eu estava em condições de ler no original. Comecei por recorrer aos meus velhos livros escolares, que ainda são os melhores para aprender muitas destas coisas, ou ao menos para atingir um conhecimento inicial que depois aprofundei. As outras obras, separei-as em «teoria» e «prática», que me pareceu uma separação evidente porque o meu interesse sempre foi chegar às boas práticas da escrita da narrativa, mas com um mínimo (um máximo?) do conhecimento teórico produzido por tantos estudiosos e tantas estudiosas por esse mundo académico fora. Finalmente, breves listas de obras-mores da narrativa literária.

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.

quarta-feira, 16 de março de 2022

A Narrativa de Ficção ― HISTÓRIA (I)

HISTÓRIA = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)

0. O tema

• Tema, assunto e mensagem
• Motivos e símbolos
• Tom

Por vezes incluído como elemento da história, o tema é uma ideia ou conceito em torno do qual se desenvolve a história, por exemplo: o amor, o sofrimento, a inocência, a coragem; o bem versus o mal, a vida versus a morte; o poder (ganho ou perda), o indivíduo (versus o sistema ou a sociedade), a mudança (física ou psicológica), a sobrevivência (de um personagem ou de uma ideia); um mistério, uma busca, etc. (Gancho 2006, p. 34; v. também Carvalho, p. 107).

O assunto é a concretização do tema nos factos da história, isto é, aquilo que acontece na história para fazer a leitora compreender qual é o tema, enquanto que a mensagem é um pensamento ou conclusão que se possa depreender da história; nas fábulas populares é a «moral da história», mas nas narrativas modernas nem sempre a mensagem é moral, podendo ser imoral ou amoral (Gancho 2006, p. 34). 

James Scott Bell (2004, pp.132-133) fala ainda em motivos (uma imagem ou frase repetida ao longo da história) e em símbolos (algo representativo de outro algo): a água pode ser um motivo central, recorrente, aparecendo em rios, no mar, na chuva; e também pode ser um símbolo, por exemplo, o medo de se afogar que uma personagem possa ter poderá ser símbolo de outros medos mais profundos, ou o fluxo da água como símbolo do fluxo do tempo. O tom da história pode ser humorístico ou sério, ligeiro ou negro, introspectivo ou aventuroso, etc.


1. As personagens

Persona, ficção, construção textual
• Protagonista, antagonista, personagens secundárias, figurantes
Round character ou flat character
• Personagem-tipo, caricatura, personagem colectiva
• Caracterização...

As personagens são entidades fictícias que desempenham o enredo, isto é, que executam as acções e a quem acontecem os acontecimentos (passe o pleonasmo!). As personagens só existem se agirem ou falarem, se interferirem no enredo; as acções e os acontecimentos só existem (e só fazem sentido coerente e plausível) por causa das personagens (Fernando Ferrara 1974 [‘Theory and model for the structural analysis of fiction’, New Literary History, 5, 245–268], p. 252, in Rimmon 2002, p. 37). Personagens e enredo são, portanto, interdependentes (Rimmon 2002, pp. 37-38), mas “é a personagem que com mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza” (Rosenfeld in Cândido et al. 1964, p. 21).

“Para designar os agentes da narrativa, os teorizadores e críticos literários de língua inglesa utilizam preferentemente o termo «caracteres» (characters). Trata-se de um termo com escassa tradição na terminologia literárias das línguas românicas e com um conteúdo psicológico e moral muito acentuado. Julgamos que o termo «personagem», com uma longa tradição na literatura, no teatro, nas artes plásticas e no cinema, pode e deve continuar a ser utilizado em narratologia. Na sua própria origem etimológica — persona — manifesta-se a ideia de «ficção» (...) Os textos literários narrativos são produzidos por homens para serem lidos por homens e que, por isso, os animais, os objectos e os conceitos que neles desempenhem funções de agente se encontram inevitavelmente antropomorfizados, mesmo que só implicitamente, porque o homem projecta neles os seus valores ou exprime através deles os seus valores (...). As personagens nunca são «formas vazias» ou «puros operadores» (...), remetem sempre (...) para um determinado horizonte de valores, para uma determinada ideologia.” (Aguiar e Silva, p. 694)

As personagens são elementos-chave do investimento ideológico e psicológico dos leitores, nas quais eles se projectam e com as quais se identificam como se elas fossem de carne e osso (Rimmon 2002, p. 35). Mas as personagens são construções textuais (Reuter 1997, p. 41). “Uma simples mas sã evidência: que uma personagem romanesca não é nada mais do que a projecção da vontade do romancista” (Jean-Louis Curtis 1950 [Sartre et le roman], citado em Bourneuf & Ouellet 1978, p. 129). Uma personagem é sempre invenção, mesmo que seja baseada numa pessoa (ou entidade) real; é definida na história pelos juízos que outras personagens e/ou o narrador fazem sobre ela. 

A escritora Toni Morrison, Nobel da Literatura (citada por Assis Brasil 2019, p. 56), dizia que ela é que controlava as personagens, que ela é que escrevia e que, portanto, não era possível deixar que as personagens escrevessem os livros por ela. “Personagens não têm existência independente, mas sim aquela que lhes foi dada pelo ficcionista” (Assis Brasil 2019, p. 65). O que justifica, então, a persistência da ideia das personagens ganharem vida própria? Diz Assis Brasil (p. 56): “quando [a] personagem está bem construíd[a], [ela] deve fazer algumas coisas perante certas circunstâncias e não pode fazer outras, sob pena de ficar inconsistente.

Quanto ao papel (ou função) desempenhado no enredo, as personagens podem ser classificadas (já desde o teatro clássico de Téspis e Ésquilo, e da Poética de Aristóteles) em: protagonista, a personagem principal, herói (que tem características superiores às do seu grupo; a mais complexa e a que está mais vulnerável perante o conflito) ou anti-herói (que tem características iguais ou inferiores às do seu grupo); antagonista, a personagem que se opõe ao protagonista, porque tem características diametralmente opostas ou simplesmente atrapalhando-o com suas acções (é muitas vezes um vilão); personagens secundárias, personagens menos importantes, auxiliares, ajudantes, testemunhas, com participação menor ou menos freqüente no enredo; ou figurantes, personagens que não desempenham qualquer papel específico, embora a sua existência seja importante para a compreensão do enredo (Carlos Reis [1978] considera mesmo os figurantes como parte das circunstâncias, do espaço social, do ambiente das personagens) (Teixeira & Bettencourt 1997, p. 105).

Outras classificações são correntes, como a de E. M. Forster (1937, Aspects of the novel) em round characters, o que se traduz insatisfatòriamente por «personagens redondas ou modeladas ou tridimensionais» (dinâmicas, com densidade psicológica, capazes de alterar o seu comportamento e, portanto, de evoluir) e flat characters, «personagens planas ou desenhadas ou bidimensionais» (estáticas, comportam-se de forma previsível, não evoluem); Rimmon (pp. 42-43) faz uma refutação bastante lúcida desta classificação de Forster, mostrando que há muitas personagens que não mudam ao longo da narrativa e que, ainda assim, apresentam uma grande complexidade (ex. Bloom, no Ulysses de James Joyce); e outras muito simples que no entanto se desenvolvem ― e todos os cambiantes entre os dois pólos (a de Forster é, portanto, uma falsa dicotomia). Há ainda a classificação de Propp (doador, auxiliar, etc.), de difícil aplicação fora dos contos de fadas populares, ou a de Greimas (actante, adjuvante, etc.), cujas teorias são demasiado extensas, abstractas, ultrapassadas e de escassa utilidade para a prática da narrativa (podem ser lidas em Aguiar e Silva e mesmo em Timbal-Duclaux, por exemplo).

Podem ver-se, ainda, a «personagem-tipo», que representa um grupo social ou profissional reconhecível, e de que conhecemos os melhores exemplos nos autos de Gil Vicente; a caricatura, marcada por uma característica muito vinculativa; e a personagem colectiva, um grupo de indivíduos animado por uma só vontade: uma família, uma comunidade, uma cidade, um bairro [“A personagem básica nem é um indivíduo, nem um grupo social, mas uma cidade” (Aguiar e Silva, p. 702).] (Veríssimo et al. 1998, p. 27).

• Caracterização directa e caracterização indirecta
• Atributos e «ficha da personagem»
• Nome, vocabulário, sensações físicas, situações diferentes
• Questão essencial, motivação e objectivo
• Hierarquia de valores

Como as personagens são construções, elas são montadas pelos leitores a partir dos vários indícios dispersos pelo autor ao longo do texto (Rimmon 2002, p. 38), o que se designa por caracterização (melhor seria «personalização», já que não usamos a palavra «character», mas enfim). As características das personagens podem ser fornecidas à leitora pela fala do narrador ou das personagens (caracterização directa, usando adjectivos, nomes ou partes do discurso), ou deduzidas pela leitora a partir do comportamento das personagens (caracterização indirecta, pelas acções, falas, ambiente, aparência externa, etc.); na maior parte das narrativas ambos os modos ocorrem (caracterização mista) (Teixeira & Bettencourt 1997, p. 105; Moreira & Pimenta 1999, p. 316; Rimmon 2002, p. 61). A caracterização também se pode classificar como simples ou complexa, ou ainda física, psicológica ou social, etc.

Uma personagem é, com efeito, uma rede de indícios de caracterização distribuída ao longo do continuum textual (Rimmon 2002, p. 61). A escolha de certos atributos é forçada pela progressão da informação («um homem, chamado Pedro» — seria, em princípio, incoerente se se chamasse Leonor; e, se assim fosse, a leitora ficaria logo curiosa em saber o porquê de um homem se chamar Leonor ― o nome seria um plot device, como se verá na postagem HISTÓRIA II, sobre «O enredo») ou pelo lugar na frase («ele, lhe»... «eu, me»); a leitora é assim conduzida na atribuição de valores às personagens (Reuter 1997, p. 106). Os atributos das personagens são (a-c, Reuter 1997, pp. 100s; d-h, Timbal-Duclaux 1994, pp. 61s e 102s):
a. nomes (João), remetem para uma época, um género, uma geografia;
b. pronomes (ele, este);
c. perífrases (irmão mais velho); 
d. singular ou plural;
e. masculino ou feminino, animal, planta, ser inanimado, etc.;
f. de origem popular ou erudita; 
g. caracterizado por adjectivos (grande ou pequeno, inteligente ou idiota, etc.);
h. qual o seu habitat.

Isto é o que aparece muitas vezes nos manuais de escrita como a «ficha da personagem»; pode ter mais ou menos itens, desde que a personagem fique suficientemente caracterizada (p. ex. Timbal-Duclaux 1994, pp. 101-102). Luiz Antonio de Assis Brasil sugere uma divisão em elementos básicos (idade, situação financeira, preferências culturais, local onde mora, transportes que toma), questões mais profundas (sentimentos, sensações, fobias, crenças, o que espera dos outros, altuísta ou egoísta? opção sexual predominante, conservadora ou progressista? contradições que nem a própria personagem consegue explicar) e motivações (porque faz o que ela faz? o que quer da vida? porque age como age? qual o seu objectivo nessa história?).

Existe uma técnica da acumulação de indícios através de um narrador em 3.ª pessoa (Brait, p. 58), “simulando um registro contínuo, focalizando a personagem nos momentos precisos que interessam ao andamento da história e à materialização dos seres que a vivem” (Brait, p. 56). Não é preciso fazer a descrição física porque a leitora cria a sua própria imagem da personagem.

“O nome é um elemento importante na caracterização da personagem (...). O romancista declara em geral o nome da personagem logo que inicia o seu retrato, mas, por vezes, pode pintar esse retrato sem mencionar imediatamente o seu nome. Carlos de Oliveira abre o seu romance Uma abelha na chuva com um retrato inominado (...). O nome do personagem só será desvendado no capítulo seguinte. Obtém-se assim um efeito de expectativa, que prende e aguça a curiosidade do leitor. (...) O nome da personagem funciona como um indício, como se a relação entre o significante (nome) e o significado (conteúdo psicológico, idiológico, etc.) fosse motivada intrinsecamente. (...) Álvaro Silvestre, protagonista de Uma abelha na chuva, tem um apelido que denota e conota rusticidade, uma árvore genealógica de lavradores e labregos contraposta à linhagem dos Pessoas, Alvas e Sanchos, donde procede a mulher com quem casou; esta contraposição explica-se logo no capítulo III: 
«... ela própria se apresentou:
— Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho... Silvestre.
Destacou com ironia o sobrenome do marido.»
(...) Quando os retratos são inexistentes ou escassos, a personagem (...) adquire significação (...) através das suas palavras, dos seus actos e das suas oposições, diferenças e afinidades relativamente a outras personagens.” (Aguiar e Silva, pp. 704-706)

“[A] personagem usará um vocabulário e um tipo de frase que correspondam [à] formação escolar, vivências e leituras [dela], e não os que [o autor] usa. Esse aspecto costuma ser negligenciado.” (Assis Brasil, p. 233) “Para tornar verosímil uma descrição centrada numa personagem, o autor pode utilizar diversos artifícios: mudança de luminosidade (uma luz que se acende, o dia que desponta, o cair do crepúsculo, etc.), que obrigam ou convidam a personagem a reparar nos seres, nos objectos e nas paisagens; deambulação da personagem, com conseqüente descrição do que vai vendo; situação da personagem, ou na proximidade de uma janela que lhe permite ver o mundo exterior, ou num lugar de onde pode avistar um grande espaço (alto de um monte, cimo de um edifício); etc.” (Aguiar e Silva, p. 744). Como diz Assis Brasil (p. 303): “Você usa todos os sentidos em sua ficção? Quanto maior o número de sensações físicas experimentadas pelo personagem, mais o leitor acreditará nele.” Colocar a mesma personagem em situações diferentes ajuda a aprofundá-la (in EscreverEscrever, Personagens para ficção).

Stendhal: “Suponhamos que um estenógrafo se podia tornar invisível e manter-se um dia ao lado de M. Pétiet, escrevia tudo o que dissesse, anotava todos os seus gestos; um excelente actor, munido deste procès-verbal, poderia reproduzir-nos M. Pétiet tal como ele foi nesse dia. Mas, a menos que M. Pétiet tivesse um carácter muito notável e fizesse acções muito notáveis também, esse espectáculo só poderia interessar àqueles que o conhecessem” (citado por Bourneuf & Ouellet 1978, p. 251). “O raro é o infreqüente; o único é o que não se confunde com ninguém: o ficcionista deverá criar as suas personagens de modo que se exponham as características que as tornam únicas. Como fazer isso? Pela soma e sobreposição de atributos de mais variada natureza, em geral contrastantes, mas só aqueles que interessam à história.” (Assis Brasil 2019, p. 47) Eça caracteriza Maria Eduarda Runa como «uma linda morena, mimosa e um pouco adoentada», dois adjectivos positivos e suaves logo contrastados com uma característica negativa, inesperada — é este choque de realidade que faz existir a personagem (Marco Neves, Gramática). Contradições, sim, mas consistentes com a personagem e as circunstâncias.

As personagens, como se viu, só existem se agirem ou falarem, se interferirem no enredo e, para tal, precisarão de ter uma motivação para agir e um objectivo a atingir. “A consistência [da] personagem implica que [ela] possua uma questão essencial, anterior à própria narrativa e que seguirá com [ela] mesmo depois do ponto-final. Essa questão é que dará sentido e, de certo modo, provocará a história e, assim, o enredo.” (Assis Brasil 2019, p. 173) A questão essencial “é uma componente da personalidade que uma pessoa (e, portanto, [uma] personagem) carrega de modo permanente e, quase sempre, com intenso sofrimento” (Assis Brasil 2019, p. 104); é um problema, um assunto a ser resolvido, são dúvidas, embates internos e buscas que quase nunca resultam em algo de aproveitável — é necessária para deflagrar o conflito de maneira verosímil. A questão essencial é que leva à motivação  para atingir o objectivo, por exemplo: Hamlet é um jovem melancólico (questão essencial) que tem terrível obediência ao pai (motivação), o que o faz vingar o assassínio do pai (objectivo). Tudo o que acontece numa história deverá ter uma explicação de natureza literária, e esta reside na profundidade da personagem; acontecimentos aparentemente gratuitos são necessários tendo em conta a personagem (Assis Brasil 2019, p. 40).

Costuma dizer-se que as personagens mudam ao longo da história consoante o que lhes vai acontecendo: “no decorrer do enredo, a personagem age, envolve-se em complicações, tenta sair delas, (...) e isto tudo faz com que se transforme (resolva a sua questão essencial) ou que altere a sua atitude perante o conflito (perante a sua questão essencial)” (Assis Brasil 2019, p. 129). No fim da história a personagem está diferente (ou ao menos tem uma visão do seu mundo diferente daquela que tinha quando começou a história). A este percurso James Scott Bell chama «the character arc» (2004, pp. 141s), que equivale à estrutura do enredo (v. a postagem HISTÓRIA II), mas o que importa é que cada personagem tem uma hierarquia de valores desde os mais fundamentais até aos mais superficiais: crenças, valores, atitudes e opiniões. Se uma opinião muda, isso não afecta imediatamente as atitudes, mas se mudam várias isso já é capaz de mudar atitudes da personagem, e depois os valores e depois as crenças (as mais difíceis de mudar). Por outro lado, se uma personagem muda de crença, isto é, deixa de acreditar numa coisa e de repente passa a acreditar noutra, isso tem efeitos imediatos nos seus valores, nas suas atitudes e nas suas opiniões.

Bell (2004, pp. 149-150) sugere que um autor construa uma tabela onde possa seguir o percurso da personagem, começando por 1.º descrever a hierarquia de valores no início da história, 2.º descrever a hierarquia de valores no final da história (o que a personagem aprendeu, estando mudada), 3.º descrever como a hierarquia de valores vai mudando do início para o fim, criando episódios para desenvolver essa progressão numa sucessão lógica que leve a personagem ao estado mudado final. Não é o final da história que a leitora quer saber com minúcia — o que se deseja saber é o que acontecerá com as personagens!


2. As circunstâncias

• Espaços (físicos)
• Ambientes, habitat e clima
• Tempo da história (cronológico)
• Época histórica
• «Espaços e tempos psicológicos»

Noto que quase todos os autores que escrevem sobre teoria literária preferem falar em espaço (lugar onde decorre a acção) e em tempo da história (momento em que decorre a acção) separadamente, elementos da narrativa cada um. Mas, a meu ver, as personagens estão inseridas em mais do que o seu tempo e o seu espaço e, portanto, prefiro seguir certos autores anglo-saxónicos que incluem tudo o que circunda as personagens num só elemento: «the setting». Já para não falar de que existem diferentes tipos de tempo, como se viu antes, e de que se teriam de considerar como espaço coisas que de espaço não têm nada, como o clima (o que costumamos chamar de «tempo») ou o «espaço» social, o psicológico, os ambientes, etc...

Eu prefiro, portanto, chamar-lhes circunstâncias, no sentido dado ao termo por José Ortega y Gasset («Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo», nas Meditaciones del Quijote, 1914) porque é uma designação muito mais abrangente. 

Assim, as circunstâncias são o ambiente/ meio/ universo/ cenário/ setting/ envolvente/ atmosfera/ situação/ contexto/ espaço-tempo/ cronótopo das personagens e dos acontecimentos, das acções e dos conflitos. São circunstâncias psicológicas, morais, ideológicas, temporais, espaciais, etc. Fornecem indícios para o andamento do enredo.

“O efeito real é mais tributário da apresentação textual do que da realidade dos lugares e dos tempos” (Reuter 1997, p. 54). Tanto as indicações de espaço como as de tempo podem assumir funções de descrição das personagens (quem vive numa mansão não é, em princípio, um pobretanas) ou de facilitar ou dificultar a acção (a menos que estejamos no mundo da fantasia ou da ficção científica, ou que haja um plot device, não se demora 5 segundos a atravessar o oceano) (Reuter 1997, pp. 55 e 58).

“Espaços descritos com intencionalidade conduzem o leitor a perceber por si mesmo o estado emocional [das] personagens. (...) Flaubert e Eça: utilizando o espaço com intenções descritivas de estados emocionais ou morais, eles cooptam o leitor sem que seja preciso explicar as intenções de Rodolphe ou o sentimento de desonra experimentado por Luísa.” (Assis Brasil 2019, pp. 298-299)

Os espaços físicos ou geografia onde se passa a história, os lugares físicos exactos, os cenários, ex. rural ou urbano, aberto ou fechado, interior ou exterior, público ou privado; influenciam e são influenciados pelas acções das personagens ao longo do enredo. “Dois tipos de espaço: o que aprisiona as pessoas, e o que as lança na aventura. O 1.º é aprofundar a vida interior (é opressivo, um labirinto); o 2.º implica deslocações, mudanças de lugar (tornam sensível o escoar do tempo, ritmando-o, p. 139, ou trazem rupturas que fazem progredir a história; levam à felicidade)” (Bourneuf & Ouellet pp. 166-167).

Os ambientes sociais, familiares, demográficos são os aspectos ou condições sócio-económicas, morais e psicológicas, grupo social e condições de vida, meio cultural, meio civilizacional, etc. O habitat das personagens, “panoramas, luz, sombra, formas, planos, sentidos, distância em relação ao objecto, mudanças” (Bourneuf & Ouellet p. 157, «campos semânticos»). O clima (o que em português se chama «tempo»): sol ou chuva não significam o mesmo na história.

O tempo da história é o tempo cronológico, o tempo em que as acções acontecem, o tempo real que transcorre na ordem natural dos acontecimentos, do começo até ao fim da história; é mensurável em horas, dias, semanas, meses, anos, séculos, etc. Ainda se pode concretizar a época histórica ou «tempo histórico» (não confundir com tempo da história) na qual a história está inserida, ex. actualidade ou Idade Média.

“Personagens diferentes têm percepções diferentes do mesmo espaço e do mesmo tempo, porque o homem vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal, na atualidade, na eternidade do instante” (Assis Brasil 2019, pp. 287 e 320-321, citando Borges), e são estas percepções subjetivas, diferentes consoante a personagem e em consonância com o seu estado de espírito, que se chamam de «espaços e tempos psicológicos».

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.

sábado, 12 de março de 2022

A Narrativa de Ficção ― HISTÓRIA (II)

HISTÓRIA = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)

3. O enredo

• Acções e acontecimentos, intriga
• Movimento, conflito e tensão
• Verosimilhança e causalidade
• Série natural e série dramática
• Estrutura...

O enredo/ argumento/ roteiro é o conjunto das acções e dos acontecimentos numa história, isto é, as acções que as personagens executam e os eventos que lhes acontecem. Na língua portuguesa usamos sempre este vocabulário têxtil, «enredo/ intriga/ trama/ fio», o «desenrolar» dos acontecimentos, «enlace e desenlace», que faz lembrar uma coisa tecida; “enreda-se o fio das histórias”, diz Almeida Garrett (Viagens na minha terra, cap. XXXII).

Seguindo uma classificação muitas vezes encontrada, há acções principais, as de maior importância ou relevo, e acções secundárias, cuja importância se define em relação às principais, das quais dependem (relatam acontecimentos de menor relevância ou menos importantes); a intriga será o conjunto das acções e dos acontecimentos que se sucedem segundo um princípio de causalidade, com vista a um desenlace [poderia ser entendida como o somatório de todas as acções] (Veríssimo et al. 1998, p. 26). Carlos Reis (1978, p. 75) designa por «acção» apenas as acções abertas (sem conclusão clara, com continuidade possível), sendo a «intriga» equivalente a uma acção fechada (onde os acontecimentos se sucedem por causalidade e acabam num acontecimento final sem continuidade possível — o desenlace).

Dito isto, eu observo que a palavra «intriga» se usa muitas vezes como sinónimo de «acção principal» ou mesmo de «enredo», enquanto que o conceito anglo-saxónico de «plot» é tanto traduzido por enredo, como por intriga sensu stricto (acção fechada). Também se encontra (até em especialistas, mesmo depois do Discours du récit de Genette) uma confusão entre o enredo da história e o discurso da narrativa, por exemplo: “O enredo (ou intriga, no sentido dos formalistas russos) não é a fábula [a história], mas a elaboração estética do que diz a fábula [a história]” (Mesquita 1987, p. 22) — ora, a elaboração estética da história é do domínio do discurso como expressão da história, como se viu atrás, e nada tem a ver com o enredo. A linguagem no domínio do enredo é bastante ambígua e, classificações teóricas à parte, eu, aqui neste texto, decidi usar as palavras «enredo, intriga, acções, plot» como sinónimos, significando o conjunto das acções e dos acontecimentos de uma história, como disse no início.

“A intriga [o enredo] repousa sobre a noção fundamental de movimento, de mudança a partir de uma dada situação e sob a influência de certas forças” (Bourneuf & Ouellet 1972, p. 52). Como se viu atrás, uma personagem tem um objectivo, que é qualquer coisa de crucial para si. O enredo será, acima de tudo, o confronto entre personagem e forças opositoras (outras personagens, o ambiente, luta psicológica, etc.), um conflito que dificulte que o objectivo seja atingido, prendendo a atenção das leitoras (que crie a expectativa sobre como é que o conflito será resolvido e o objectivo de personagem atingido). No final, terá de haver uma resolução satisfatória tanto para o universo da história como para as leitoras (Bell 2004, p. 33; Gancho 2006, p. 13; Assis Brasil 2019, p. 178).

São, portanto, factores externos contrários ao objectivo da personagem que potenciam o conflito do enredo (Assis Brasil 2019, p. 188). O conflito deriva da necessidade de uma escolha — mas a personagem tem de ser livre para escolher (Assis Brasil 2019, p. 173); e tem de fazer sentido com a biografia e a personalidade da personagem — “[ela] age de certo maneira em face de determinadas circunstâncias, de acordo com as suas emoções, contradições e perplexidades antes constituídas” (Assis Brasil 2019, p. 108).  

O conflito “cresce durante a [história] e se acumula na interioridade [da] personagem — e, enquanto isso, nós, os leitores, por contágio, somos submetidos a uma tensão crescente” (Assis Brasil 2019, p. 180) que nos faz seguir adiante na leitura. “O conflito é da história, mas a tensão é do leitor (Assis Brasil 2019, p. 122)”. “A tensão aumenta se chegar uma personagem nova, se houver um acontecimento carregado de conseqüências, se houver a ameaça de um perigo ou um acto brutal; a tensão distende-se pelo escoar de um lapso de tempo vazio ou pela intervenção de factores que regulem o conflito” (Bourneuf & Ouellet 1972, p. 52).

Não esquecer que as personagens secundárias também têm questões essenciais e conflitos, mas estes não precisam de ser desenvolvidos nem resolvidos no final (Assis Brasil 2019, p. 167). “Quanto maior o número de personagens que tenham sua intimidade revelada, mais fraco se torna o conflito” (Assis Brasil 2019, p. 252).

A verosimilhança é o que torna o enredo convincente, verdadeiro para o leitor; não tem de ser a verdade, mas sim a ilusão da verdade, isto é, coisas que o leitor acredita que poderiam ser verdade (Gancho 2006, p. 12); é a famosa «willing suspension of disbelief» de Samuel Taylor Coleridge (Biographia Literaria, published in 1817, Chapter XIV). Um excelente exemplo de Luiz Antonio de Assis Brasil (2019, p. 185): “Se [a] personagem morre de tuberculose pulmonar no 10.º capítulo, deve ter tossido um pouco no 4.º capítulo, ter baixado no hospital no 7.º, até morrer naturalmente no 10.º. Isso é que convence o leitor.” Bell (2004, pp. 215-216) também diz que, se se vai usar uma arma no 3.º acto, é bom que esteja uma à mão no 1.º (isto é o contrário do velho plot device «Tchekhov’s gun», que diz que se uma arma está presente no 1.º acto, tem absolutamente de ser usada no 3.º).

“Levando às últimas conseqüências essa idéia, se o romancista fantasia uma história transcorrida no século XVIII, estará fugindo à «verdade» da obra se, de repente, a personagem se move de um ponto a outro de automóvel ou de avião. Todavia, se tudo o mais da narrativa seguir na mesma trilha de absurdo ou de inverossimilhança (em relação com o mundo real), a obra será perfeitamente verossímil: verossimilmente inverossímil, dir-se-ia.” (Moisés 1969, Análise, p. 91)

A causalidade é o que torna a organização lógica do enredo credível: cada acontecimento ou acção tem de ter uma causa e tem de desencadear uma conseqüência. Apesar de Rimmon (2002, p. 20) dizer que nem sempre é preciso causalidade para fazer um enredo, na prática qualquer leitor poderá notar que nas boas histórias “não há evento sem motivo que o provoque (causa e efeito)” (Assis Brasil 2019, p. 175). Organização das acções para formar uma história (Reuter 1997, p. 31):
1. A acção A é a causa da acção B [relação lógica]; 
2. A acção A precede a acção B [relação cronológica];
3. A acção A é mais importante do que a acção B [relação hierárquica].

Na prática, o enredo de uma história envolve dois tipos de acções ou acontecimentos a que Knight (1981, pp. 90-91) chama de série natural e de série dramática. A primeira é composta por coisas como acordar e levantar-se de manhã, tomar o pequeno-almoço («dejuar», como diz Carlos de Oliveira em Casa na Duna), ir trabalhar, conversar com amigos, falar ao telefone, ver o correio, fazer compras, etc., isto é, coisas que expandem, amplificam, mantém ou retardam o enredo. 

A segunda é composta apenas e só pelas acções ou acontecimentos que formam uma série conexa e com sentido, isto é, aqueles que avançam o enredo oferecendo uma alternativa (Rimmon 2002, p. 17). Se um telefone toca, uma personagem pode atender ou não: existe uma alternativa! Mas se, entre o telefone tocar e o ela atender (ou a decisão de não atender), a personagem coçar a cabeça, acender um cigarro, disser asneiras, etc., estas acções não oferecem alternativas, são naturais, apenas acompanham o acontecimento dramático dando-lhe suporte, ênfase.

Acções ou acontecimentos naturais são necessários para criar uma ilusão da realidade e para fazer a ponte entre duas acções ou acontecimentos dramáticos. Acções ou acontecimentos dramáticos devem ser plausíveis (verosimilhança); as normais não ― a história pode ser baseada num incidente real e ser implausível mesmo assim. Coincidências fazem parte da série natural, não da série dramática (causalidade).

Os teóricos chamam aos acontecimentos dramáticos «núcleos» (kernels) e aos normais «catalisadores» (Barthes 1966, pp. 9-10; Chatman 1969, pp. 3 e 14-19; Chatman 1978 chama aos segundos «satélites»; in Rimmon 2002, p. 17). Também fàcilmente se vê que as acções naturais são as secundárias e as dramáticas as principais, portanto não sei se estes conceitos teóricos terão muita utilidade prática: uma vez entendida a diferença, qualquer nomenclatura serve.

• Esquema mínimo: exposição, complicação, clímax, desfecho
• Pirâmide de Freytag, arco narrativo, estrutura em três actos
• «Jornada do herói»: distúrbio e pontos de viragem
• Enredos paralelos, subenredos, tipologias
• Episódios, intensidade dramática
• Enredos básicos, expedientes dramáticos

A estrutura do enredo é a organização («the orderly arrangement») das etapas [episódios] da história (Bell 2004, p. 22), a distribuição dos episódios segundo o fio de uma intriga (Bourneuf & Ouellet 1978, p. 99). [Ainda que Timbal-Duclaux (1994, p. 69) diga que a estrutura não é a intriga/enredo, e que é preciso distinguir entre as peripécias e a estrutura subjacente que as sustém, na prática o enredo tem de ter uma estrutura, ponto final.] C. S. Lewis disse: “Whatever in a work of art is not used, is doing harm”; conseqüentemente, “anything that is used, anything that connects two or more parts of a story, strengthens it” (citado por Knight 1981, p. 87). Isto liga-se bem com a verosimilhança que se viu atrás, mas, mais uma vez, lembro que é preciso não confundir o enredo da história com o discurso da narrativa.

Qualquer enredo tem de ter princípio, meio e fim, com um ponto culminante perto do final. Há quem diga que o melhor é esquecer esta tríade; eu, pelo contrário, acho que é uma excelente base para estruturar qualquer coisa, incluindo um enredo. Os momentos de um esquema mínimo para um enredo são, portanto (Gancho 2006, pp. 13-15; Moreira & Pimenta 1999, p. 315):

1. exposição (princípio, situação inicial, apresentação), apresentação da situação inicial, das personagens e suas intenções, do ambiente e obstáculos; situa o leitor perante a história que vai ler; freqüentemente, mas não sempre, aparece no começo da narrativa.
2. complicação (meio, peripécias, desenvolvimento), desenvolvimento do(s) conflito(s) geralmente num crescendo até ao clímax; corresponde ao grosso do enredo, à maior parte da história.
3. clímax (ponto culminante), momento culminante do enredo da história, momento em que o(s) conflito(s) atinge(m) o ponto de maior tensão; as outras partes da estrutura convergem para ou divergem do clímax.
4. desfecho (fim, desenlace, dénouement), resolução do(s) conflito(s), final feliz ou infeliz, esperado ou surpreendente, cómico ou trágico, etc.

Exemplo (conto ‘Um homem de consciência’ de Monteiro Lobato, em Cidades Mortas):
• exposição ― 1.º parágrafo
• desenvolvimento ― do 2.º ao 13.º parágrafos
\ complicação ― 7.º e 8.º parágrafos
\ clímax ― 9.º parágrafo
• desfecho ― 14.º parágrafo
[Nota: os parágrafos 2-6 e 10-13 são passagens.]

O esquema canónico da «narrativa mínima» (v. Reuter 1997, pp. 36-37; também DR p.75 e NDR p. 14) será este: Estado inicial (equilíbrio) > Complicação (força perturbadora) > Encadeamento de acções (desequilíbrio) > Resolução (força equilibradora) > Estado final (reequilíbrio). É Tzvetan Todorov que prefere equilíbrio > desequilíbrio > reequilíbrio. Este esquema também é chamado de pirâmide dramática ou de Freytag e é apenas uma base que será manipulada de muitas maneiras pelo discurso para obter certos efeitos no leitor.

Expandindo o esquema mínimo, chega-se ao arco narrativo (v. João Tordo 2020, pp. 89-99, onde ele parte de Aristóteles e Freytag para o explicar, usando O Homem Duplicado de Saramago e O Velho e o Mar de Hemingway para exemplificar): Exposição (situação inicial) > incidente ou distúrbio > húbris (audácia, atrevimento) do protagonista > sucessivas complicações e pontos de viragem > peripécia (revés da fortuna do protagonista) > o enredo suscita no leitor piedade (pela situação difícil do protagonista) e medo (de que o protagonista não consiga aquilo que quer) > empatia (o leitor alinha-se com o protagonista) > clímax > catarse (purga do medo e da piedade) > desfecho («novo normal»).

Organizando as partes do arco, temos a estrutura em três actos, com origem no teatro e muito usada no cinema (Bell 2004, p. 32), que apresento aqui segundo o esquema já clássico da «jornada do herói» (The Hero’s Journey, do livro The Hero with a Thousand Faces de Joseph Campbell, 1949, onde este académico disserta sobre o arquétipo do herói, que ele encontrou aquando dos seus trabalhos de mitologia comparada nos mitos de diversas sociedades):

(Bell 2004, pp. 23 e 26)
Acto I. A personagem-heroína é confrontada com um problema, ao qual reage.
[ 1 ] A personagem-heroína e o seu mundo são apresentados aos leitores [exposição].
[ 2 ] Um distúrbio interrompe o mundo da personagem-heroína.
[ 3 ] A personagem-heroína é livre para escolher e pode ignorar esse distúrbio.
[ 4 ] A personagem-heroína não ignora o distúrbio e «atravessa o limiar» (1.º ponto de viragem) para um mundo desconhecido.
Act II. A personagem-heroína passa a maior parte do tempo em busca de uma solução para o problema e a tentar resolvê-lo.
[ 5 ] Um mentor/orientador pode aparecer para ensinar a personagem-heroína.
[ 6 ] Ocorrem vários encontros com forças adversas [complicações].
[ 7 ] A personagem-heroína tem um momento de negação e problemas de consciência que deve ultrapassar.
[ 8 ] É encontrado um talismã que vai ajudar na solução do problema (2.º ponto de viragem).
Acto III. A personagem-heroína consegue, finalmente, resolver o problema.
[ 9 ] A última batalha [clímax].
[10] A personagem-heroína regressa ao seu mundo [desenlace].

O distúrbio ou incidente faz o leitor ficar interessado porque é uma promessa implícita de que a história vai ser interessante. Não é ainda a intriga principal porque não há conflito. Exemplos de distúrbios:
• Um telefonema a meio da noite;
• Uma carta com notícias inesperadas;
• A chefe chama a personagem ao seu gabinete;
• Uma criança é levada para o hospital;
• Um carro avaria no meio duma cidade estranha;
• A personagem-heroína ganha a lotaria;
• Uma personagem testemunha um acidente ou um crime;
• Uma nota da mulher da personagem-heroína...

Os pontos de viragem (ou de virada/ de inflexão/ de transição) são as transições entre os actos, os acontecimentos que forçam a personagem-heroína a agir de maneira diferente. “Somos criaturas de hábitos; procuramos segurança. (...) A não ser que haja alguma coisa que empurre a personagem-heroína para o acto II, ela vai ficar alegremente no acto I! Ela deseja permanecer no seu mundo normal.” (Bell 2004, p. 28) O 1.º ponto de viragem é a transição entre o Acto I e o Acto II; tem de haver um momento em que personagem-heroína seja empurrada para o conflito sem escapatória possível; não poderá haver retorno ao normal, ao que era antes deste momento ― se ainda for possível regressar, não é o ponto de viragem. O 2.º ponto de viragem é a transição entre o Acto II e o Acto III; algo tem de acontecer para desencadear o confronto final — uma pista ou uma descoberta. A diferença entre um distúrbio e um ponto de viragem é que um distúrbio não leva necessàriamente a um confronto, enquanto que um ponto de viragem leva ao conflito e a personagem-heroína não pode voltar atrás.

Acto I. O mundo normal da personagem-heroína, um lugar seguro e sossegado. Pode ter problemas, mas não dos que trazem grandes mudanças. A personagem está ali bem. Alguma coisa tem de acontecer para a empurrar para o conflito
> 1.º ponto de viragem 
Acto II. O mundo exterior, o desconhecido, um lugar onde a personagem-heroína vai ter de buscar coragem, de aprender coisas novas, de fazer aliados, etc. A personagem-heroína defronta-se com obstáculos e adversidades. O acto II pode continuar indefinidamente a não ser que algo aconteça para abrir a porta para o clímax
> 2.º ponto de viragem
Acto III. Deste lado, a personagem-heroína tem de juntar as suas forças para a «batalha final» ou «escolha final» que vai resolver o problema para a história acabar.
(Bell 2004, pp. 29 e 31)

Fàcilmente se vê que o esquema mínimo, a pirâmide de Freytag, o arco narrativo, a estrutura em três actos, etc., são tudo a mesma coisa, expansões ou variações da simples estrutura em princípio, meio e fim, com ênfase nos pontos de transição entre eles e no ponto culminante. “Mastering structure and transitions will make your novels more accessible even if you choose to deviate from a linear unfolding” (Bell 2004, p. 33).

A partir daqui, pode-se aumentar a complexidade da história adicionando enredos paralelos (duas ou mais personagens principais), subenredos (vários conflitos), símbolos e motivos (ligados ao tema, como se viu atrás), ou jogando com tipologias reconhecíveis (histórias de aventura, amor, vingança, demanda, perseguição, poder, alegoria, um-contra-todos, policial, thriller, ficção científica e fantasia, etc.) com estruturas que se podem «roubar» das grandes obras da literatura universal (Bell 2004, pp. 130s e 180s): ir buscar ao mitos greco-romanos e à Bíblia, reescrever a mesma história mas com um ponto de arranque diferente, ou uma circunstância diferente (Carvalho, p. 107). 

“Eis um esquema narrativo muito banal, que, consoante a colocação do «acento», pode dar um a) enigma policial, b) um folhetim sentimental, c) uns sonhos para os nostálgicos do exotismo, d) uma meditação sobre a morte e o destino, e) uma reconstituição histórica, ou f) um retracto da sociedade: 1) um marinheiro, 2) a mulher que ele ama, 3) rivais. São, no fundo, os elementos da Odisseia, que se prestam a inúmeras variações.” (Bourneuf & Ouellet 1978, p. 36)

Podem chamar-se episódios às etapas ou partes do enredo (James Scott Bell 2004, pp. 113s, chama-lhes «scenes», mas aqui eu vou reservar a palavra «cena» para uma figura do discurso, como se verá na postagem DISCURSO I). Os episódios ilustram e dramatizam os conflitos interiores e/ou exteriores das personagens, que um bom enredo explorará. Bell (2004, pp. 115-119) considera que cada episódio se desenvolve pelo contraste acção/reacção: uma personagem age para tentar atingir o seu objectivo, mas é frustrada pelo conflito e reage a este desenvolvimento (toma outra decisão, age de outra maneira, etc.). A acção da personagem é comummente ilustrada por cenas dialogadas, enquanto a sua reacção pode conter pausas descritivas ou reflexivas; a leitora deve ficar presa no início do episódio, ir sentindo a tensão crescente e, no fim do episódio, querer continuar a ler o que se segue. Tudo isto tem de ser suportado por um bom enquadramento nas circunstâncias. 

Pode-se visualizar a tensão criada na leitora usando um gráfico do agravamento do conflito ou da intensidade dramática (medida qualitativamente) ao longo do tempo da história (Knight 1981, pp. 87-90; esquemas adaptados de Timbal-Duclaux 1994, p. 71). Uma boa estrutura (esquema 1) é a que mantém a leitora atenta até ao fim, num crescendo de tensão, o que se consegue com episódios sucessivos de crescente intensidade dramática até ao clímax.

Esquema 1. Boa estrutura do enredo.

Uma má estrutura (esquema 2) é aquela que cai num «buraco» de intensidade dramática «abaixo de zero» (ponto B). A autora não terá interesse em seguir o tempo da história (v. postagem DISCURSO I), mas em começar o discurso da narrativa no ponto C e só depois evocar o ponto A em analepse (e apenas se for estritamente necessário para se compreender a história), na ordem C>A>D ou C>D>A. O episódio B, sem interesse dramático, será mencionado nalgumas rápidas linhas de resumo ou suprimido de todo.

Esquema 2. Má estrutura do enredo.

Vários teóricos se debruçaram sobre se existem enredos básicos, isto é, se se consegue categorizar todos os enredos jamais concebidos literàriamente em estruturas reconhecíveis. Para além da «jornada do herói», e com critérios nem sempre muito claros, eis os resultados
 • os três padrões básicos de William Foster-Harris (enredo cómico [happy ending], enredo trágico [unhappy ending] e enredo complexo [literary plot, isto é, todos os outros...]; em The Basic Patterns of Plot, 1959); 
 • os sete (na verdade nove) enredos básicos de Christopher Booker (The Seven Basic Plots, 2004); 
• os vinte enredos básicos de Ronald B. Tobias (20 Master Plots, 1993); 
• as trinta e seis situações dramáticas de Georges Polti (Les 36 situations dramatiques, 1895), que disse que fôra influenciado por Carlo Gozzi e Johann Wolfgang von Goethe. 

Estruturas mais — ou mesmo muito mais — complexas existem, como, por exemplo, a formalização do enredo dos contos de fadas por Propp, em 31 funções (!) difíceis de aplicar a outras narrativas para além das que ele estudou; ou as teorias de Hamon, Greimas ou van Dijk (v. Reis & Lopes 1987).

Para construir o enredo, fazer bem as transições e criar tensão, existem expedientes dramáticos que eu aqui classifico empìricamente em dois tipos, um helénico, outro anglo-saxónico: topoi e plot devices. Um topos (do grego antigo τόπος κοινός, tópos koinós, «lugar comum»; ou em latim locus communis) é um tema recorrente, uma fórmula literária usada já desde o teatro antigo e a retórica clássica (originalmente um argumento retórico), e fàcilmente reconhecível para ajudar o enredo. Eis alguns dos topoi literários mais conhecidos e mais encontrados em diferentes épocas, culturas e literaturas:

1. A profecia e a profecia autocumprida.
2. A descida aos infernos ou catábase.
3. O dilúvio (desde a epopeia de Gilgamesh).
4. O elixir da eterna juventude.
5. O idílio.
6. O impulso da morte, o amor como morte (Eros e Tanatos).
7. O jardim fechado (hortus conclusus) ou aberto.
8. O locus amœnus (o mundo imaginário da Arcádia).
9. O locus horridus (o inferno de Dante).
10. O manuscrito encontrado (Il nome della rosa).
11. O mundo ao contrário.
12. A viagem de retorno à pátria (Odisseia).
13. A anagnórise: revelação final do parentesco entre personagens (Œdipus Rex, ou Darth Vader e Luke Skywalker).
14. A fórmula de modéstia (captatio benevolentiæ).
15. A idade de ouro.
16. A invocação dos deuses ou das musas.
17. A ilha (como espaço representativo do paraíso terrestre).
18. A noite perigosa.
19. O filho pródigo
20. Os mitos da criação.
21. O destino inexorável.
22. A cena do primeiro encontro amoroso.
23. A declaração de amor (num conto).
24. A narrativa do nascimento (numa autobiografia).
25. O triângulo amoroso.
26. A demanda (the quest).
27. O disfarce, a falsa morte, o falso fim.

Com os grandes romancistas do século XIX e, penso eu, com o aparecimento do cinema, novos topoi foram surgindo para suprir às novas necessidades dramáticas. São mais conhecidos pela expressão inglesa plot devices (ou plot twists), de difícil tradução. “A plot device is a storytelling tool or technique that is used to propel a narrative, used to move the plot forward. A well-written plot device can be deeply satisfying to a reader or audience member. Keep in mind that a plot device does not need to be complicated. A skilled novelist or screenwriter does not select a plot device based on its complexity; they select it based on its storytelling potential.

Eis alguns dos plot devices mais usados, principalmente nos enredos de acção (thrillers); mantenho quase todas as designações originais em grego, latim ou inglês, quer por não encontrar tradução satisfatória para umas, quer por encontrar outras usadas sempre nessas línguas; os grupos são quási-aleatórios, mas o primeiro grupo leva os mais curiosos ou sui generis:

Cliffhanger; Death trap; Deus ex machina; Doppelganger, or twin; MacGuffin; Plot voucher; Quibble; Red herring; Tchekhov’s gun;

• Antropomorfismo; Contraponto dramático; Falácia patética; Hamartia, ou falha trágica; Realismo mágico; Pastiche; Personagem morre no início; Projecção psicológica;

Audience surrogate; Author surrogate; Breaking the fourth wall (caso particular de metalepse); Defamiliarization; Distancing effect; Dramatic visualization; Eucatastrophe; Foreshadowing;  Framing device; Multiperspectivity;  

Bathos; Narrative hook; Non sequitur; Pathos; Plot twist; Thematic patterning; Poetic justice; Predestination paradox; Ticking time bomb, or race against time; Unreliable narrator.

Há ainda certas técnicas que são freqüentemente usadas, por exemplo, a das telenovelas (história infinita, parece que nunca acaba porque há sempre lugar para novos episódios) ou o chamado «começar no 2.º capítulo» (porque o 1.º costuma ser cheio de descrição e a acção só começa realmente no 2.º). Como regra técnica, é sempre bom antecipar o que lògicamente uma personagem poderá fazer a seguir, e pô-la a fazer o contrário — o inesperado!

Este texto pertence a uma série de 10 postagens sobre a narrativa de ficção que inclui Sumário, Introdução, História I, História II, Discurso I, Discurso II, NarraçãoComposição I, Composição IIBibliografia.