De vez em quando gosto de escrever. Escrever um texto, um conto, escrever apenas. Deixo agora aqui um desses meus pequenos textos, um "sem título", que é o título que a maior parte deles tem.
sem título
A luz do candeeiro estava demasiado forte. As canetas dançavam no tampo da mesa. Eu disse-lhes para pararem, mas elas fingiam que não me ouviam. E o candeeiro recusava-se a ser desligado. Como é que eu podia escrever no meio daquela algazarra toda? Ainda pedi à velha borracha azul para tentar acalmar as canetas, mas esqueci-me que nos dias de hoje as canetas já só têm respeito pelos correctores…
“PAREM!”, gritei eu, apenas num gesto de frustração, sabendo perfeitamente que não serviria de nada. E levantei-me e fui para a cozinha. Lá também não se podia estar: as panelas e as loiças coscuvilhavam, os talheres faziam amor dentro da gaveta, os armários e o frigorífico queixavam-se uns aos outros do peso das peças que tinham de aguentar, e mal eu entrei começaram a queixar-se a mim! Mas o mais sonoro de todos os objectos era, sem dúvida, a televisão.
“Acalmem-se, eu vou resolver isso… e tu não te podias calar um bocadinho?”, falei, tentando acalmar os queixumes dos armários e os ruídos da televisão. Precisava acalmar-me. Interrompi a conversa de um copo (que barafustou e eu pedi desculpa) para beber um pouco de água, mas, para variar, o lava-loiças era o único utensílio que já estava a dormir: nem uma gota de água saiu da torneira… Devolvi às suas conversas o copo, zangadíssimo por ter sido interrompido para nada (como eu o percebia!) e saí.
Fui para o quarto e deitei-me. Mas a cama atirou-me borda fora, que ainda não eram horas de dormir e ela queria aproveitar todos os momentos sem quilos a mais! Fiquei com a sensação que na manhã seguinte ia dormir uns quartos de hora a menos… Era uma cama muito temperamental. Os livros saltavam na estante, como acontecia sempre que eu passava. “Lê-me! Lê-me!”, “Não! A mim! A mim!”, “Agora eu! Agora eu!” Livros, sempre bajuladores…
Não sei o que estava a dar aos objectos, naquela noite, mas se o estúdio, a cozinha e o quarto estavam assim, melhor era nem tentar a casa de banho! Decidi enfrentar outra vez as canetas. Ainda dançavam. Desta vez experimentei a diplomacia. “Ouçam, se vocês pararem de dançar por hoje, eu prometo que só as uso para assinar documentos importantes.” Eu achava que era uma boa proposta: as canetas pelam-se por burocracia! “Isso inclui as esferográficas?”, perguntou ainda uma. “Sim, e os marcadores fluorescentes prometo que já só os uso para marcar livros técnicos!” (Os marcadores detestam que os usem senão para marcar calhamaços. Uma vez usei um para marcar poesia e nunca mais consegui marcar mais nada com ele. São instrumentos muito técnicos.) Um lápis novo, afiado, ainda tentou levar dali qualquer coisa, mas com ele não me preocupei: os outros lápis são todos velhos pequeninos que querem é sossego e desenho à vista. Consegui! Aceitaram recolher-se e o sossego voltou. O candeeiro até baixou a intensidade luminosa de sua livre vontade.
Disse “então, vamos trabalhar?” ao meu laptop, que me olhou ensonado, mas eu sabia que ele só precisava iniciar para ficar com a genica toda. Abri o processador de texto e quis começar a escrever. Oh diabo, depois de tanta coisa não me vinham ideias nenhumas! Ainda fiz um esforço pensativo. Nada. Então desisti e escrevi: A luz do candeeiro estava demasiado forte. As canetas dançavam no tampo da mesa…
Escrito em Coimbra, a 13 de Agosto de MMVII
Há 22 horas
1 comentário:
Devo dizer que este conto me fez recordar parte da minha infância!Está excelente,parabéns!
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