Este post vem no seguimento de outros sobre colégios neste mesmo blog: Colégios Universitários em Coimbra (tradução inglesa em The Lost Colleges of the University of Coimbra); Lista Anacrónica de Colégios Universitários em Portugal (Coimbra e Évora); Colégios Universitários em Coimbra (mais uma actualização...); Colégios Universitários em Lisboa e Universidades em Portugal, entre outros. Vale também a pena consultar o post A Alta de Coimbra Reconstituída.
Para minha surpresa, descobri recentemente que a antiga Universidade de Évora (1559-1759) não era uni-colegial... Como se sabe, durante duzentos anos certos, Coimbra não foi a única universidade a funcionar Portugal: em 1558, o Cardeal Infante Dom Henrique (mais tarde Cardeal Rei, nesse ano era 1.º arcebispo de Évora) achou por bem criar uma universidade para complementar a de Coimbra, ideia que já teria existido na mente do Infante Dom Pedro, 1.º duque de Coimbra, no século XV (de facto parece que chegou mesmo a criar uma segunda universidade em Coimbra quando a primeira estava em Lisboa [1]). O Cardeal Infante pediu então autorização ao Papa Paulo IV e estabeleceu uma universidade no Colégio do Espírito Santo em Évora.
Iluminura da cidade de Évora atribuída a Duarte d'Armas. Foral manuelino de Évora, 1501, Arquivo Municipal de Évora. Imagem tirada daqui.
Estava eu, portanto, convencido que a Universidade do Espírito Santo se tinha sucedido jurìdicamente ao Colégio do Espírito Santo, ipso facto, ou que, quando muito, o colégio único tinha existido dentro da universidade da mesma maneira que o Trinitiy College Dublin é o único colégio constituinte da University of Dublin. Porém, ao ler o excelente trabalho de Teresa Rosa [2] descobri que o Colégio do Espírito Santo não só não foi ele próprio transformado em Universidade, como ainda foram criados outros colégios de suporte à dita Universidade. Portanto, não aconteceu um upgrade de colégio para universidade, mas sim uma adição: o Colégio do Espírito Santo continuou a existir dentro da Universidade juntamente com outros colégios. No entanto, poder-se-ia dizer que era a universidade que pertencia ao colégio jesuíta, e não o contrário, já que muitos dos cargos e estruturas eram comuns a ambos e tiveram origem nos do colégio (por exemplo, o Reitor da Universidade era sempre o Superior do Colégio).
Ora, o Colégio do Espírito Santo, como se sabe, foi fundado em 1551 com padres jesuítas do Colégio de Jesus em Coimbra e do de Santo Antão em Lisboa. Foi dotado de rendimentos pelo Cardeal Infante Dom Henrique e começou a escola pública em 1553, sempre com professores jesuítas, e, por isso mesmo, continuou a existir até 1759, ano da expulsão dos Jesuítas do Império Português. Com a criação da universidade logo em 1559, as aulas passaram a não ser apenas preparatórias (ver último parágrafo deste post). Diz Teresa Rosa que "os Jesuítas, estudando em conjunto com estudantes de outras famílias religiosas e leigos, na Universidade, voltavam no fim das aulas a recolher-se no respectivo Colégio (parte destinada aos membros da Companhia)" [p. 51]; presumìvelmente o Colégio do Espírito Santo seria só para jesuítas enquanto os outros acomodariam os escolares das outras ordens religiosas e os leigos. [3]
Um segundo colégio foi o Colégio de São Manços, também chamado "dos Porcionistas", que nunca teve edifício próprio. Instaurado em 1563, ficou a pertencer à universidade (não sei se desde o início), mas desfez-se em 1580 com a morte do Cardeal Rei Dom Henrique, por falta de fundos e de interesse dos Jesuítas em conservá-lo. Destinava-se a recolher quinze estudantes, de entre os quais os filhos dos criados do Cardeal Infante/Rei, os que terminavam as funções de meninos do coro da Sé e, num número indeterminado, os filhos de nobres que pagariam uma “porção”, cuja quantia oscilava entre treze e quinze mil réis anuais. Não confundir com o Colégio de São Manços das Donzelas, que existiu em Évora de 1592 a 1836 [4] e cuja história eu não conheço.
Assinatura do Cardeal Infante Dom Henrique: "Iffs dõ amriq̄". Entre 1539-1557 (talvez antes de 1546, data em que se tornou cardeal, visto que assina apenas infante, mas isto é pura especulação minha). Arquivo Nacional Torre do Tombo, imagem tirada daqui.
Acontece que, para garantir alunos à Universidade de Évora, o Cardeal Infante quis ainda fundar quatro outros colégios, mas ficando todos sob o controlo jesuíta. Para tal, em 1572 pede ao Papa Gregório XIII a concessão de rendas eclesiásticas suficientes para erigir e sustentar os colégios seguintes:
- Colégio de Nossa Senhora da Purificação, para teólogos “passantes”, que seriam doze, já bacharéis em teologia, com vinte mil réis de renda, destinado à obtenção dos restantes graus académicos;
- Colégio de São Gregório, para quarenta teólogos “cursantes”, ou simples alunos de teologia, já mestres em artes, com dezasseis mil réis de renda;
- Colégio de Santo Agostinho, para sessenta alunos de artes, com quinze mil réis de renda;
- Colégio de São Jerónimo, para cinquenta alunos de humanidades, latim e grego, com renda de doze mil réis.
Acabou por ter dinheiro para criar e dotar apenas dois, o da Purificação e o de São Gregório, em 1579. Nesse ano dotou a Universidade também de um hospital. O Colégio da Purificação, era dirigido por um Vice-Reitor, assistido por outros padres da Companhia, conselheiros sob a imediata e directa sujeição ao Reitor, de quem dependia a sua escolha. Era também ao Reitor que competia prover as 25 bolsas (com o tempo, as bolsas passaram de 50 para 25), escolhendo entre os opositores aprovados, aqueles que considerasse mais adequados. As obras do edifício do Colégio da Purificação só se concluíram em 1605, mas o colégio recebeu os primeiros escolares em 1593; o edifício pertence hoje ao Seminário Maior de Évora [5].
Houve ainda o Colégio da Madre de Deus, que se destinava a treze ou mais colegiais pobres. Autorizada a fundação, por bula do Papa Clemente VIII, em 1595, iniciou-se a construção do edifício de imediato e começou a ser habitado em 1608. Com estatutos inspirados nos do Colégio da Purificação, deveria depender do arcebispado de Évora, embora sob a direcção da Universidade. Tal não foi aceite pelos Jesuítas e os estatutos foram modificados mais tarde. Destinava-se a treze ou mais colegiais pobres que estudassem latim, artes e teologia, e que seriam mantidos com os bens oferecidos (em testamento?) pelo Doutor Heitor de Pina Olival, desembargador e cavaleiro de Cristo, e por sua esposa, Dona Francisca de Brito. O Colégio da Madre de Deus era governado por um clérigo secular, mas cuja escolha incumbia ao Reitor da Universidade. O Reitor tinha igualmente que prover os estudantes porcionistas. [6] Luís António Verney foi aluno deste colégio [7].
Luís António Verney (1713-1792) e o frontispício do tomo primeiro da primeira edição do seu "Verdadeiro Metodo de Estudar" (Valensa, 1746 [topónimo fictício, na realidade foram impressas duas edições em Nápoles e, em 1751, uma terceira em Lisboa]). Imagens tiradas daqui; a versão digital da obra está disponível na Biblioteca Nacional de Portugal.
Para além dos colégios acima citados, havia ainda o noviciado (estudos para se ser sacerdote) anexo ao (ou integrado no) Colégio do Espírito Santo; não se entende bem no texto de Teresa Rosa se era parte desse colégio, se era um colégio à parte (o mesmo que o Colégio dos Moços do Coro?). Vulgarmente conhecido pelo nome de "Conventinho", os edifícios do noviciado foram começados a construir em 1564 e habitados em Julho de 1567.
1551-1759 Colégio do Espírito Santo
1563-1580 Colégio de São Manços (ou dos Porcionistas)
1564-1759 Colégio dos Moços do Coro (noviciado?)
1576-1759 Colégio de Nossa Senhora da Purificação
1576-1759 Colégio de São Gregório
1595-1759 Colégio da Madre de Deus
planeado: Colégio de São Jerónimo
planeado: Colégio de Santo Agostinho
Deixo uma nota às capelanias de Vera Cruz e de São João [8]. Ora, para além das preocupações com a subsistência material dos estudantes dos colégios, o Cardeal Infante Dom Henrique tinha preocupações também com a sua subsistência espiritual. Claro que todos ou quase todos os estudantes dos colégios haveriam de ser sacerdotes, mas enquanto não o eram precisavam de ter quem lhes celebrasse missa e lhes desse os sacramentos. Para tanto o Cardeal Infante instituiu duas capelanias, isto é, bolsas para que sacerdotes já formados quisessem complementar os seus estudos e assim também poderiam dar missa etc. Por vezes também confundidos com colégios, as capelanias eram apenas fundos que eram supridos pelas esmolas que os fiéis deitavam aos santos nas respectivas capelas (a de Vera Cruz e a de São João, ambas na Sé de Évora), e eram geridos pelos próprios bolseiros. Em Coimbra havia também capelanias, mas de capelanias hei de falar especìficamente num outro post.
E como nota final sou levado a explicar que a Universidade de Évora, à semelhança de outras pela Europa (nomeadamente no mundo germânico [9]) que estavam sob controlo jesuíta, oferecia cursos apenas no que numa universidade medieval se chamariam a Faculdade de Artes e a Faculdade de Teologia. Se tradicionalmente uma universidade completa tinha 4 faculdades (Artes, Direito, Medicina e Teologia; em Coimbra a de Direito estava dividida em duas: Leis e Cânones) [10], na de Évora não se ensinava nem Direito nem Medicina [11]. Na verdade, Évora estava também organizada em 4 faculdades (Latinidades ou Humanidades; Artes; Teologia Moral ou Casos de Consciência; e Teologia Especulativa ou Sagrada Escritura), mas o que se ensinava na totalidade não fugia ao âmbito tradicional daquelas duas [12]. As Humanidades e as Artes seriam sensivelmente o que hoje se chamaria o ensino médio ou básico/secundário, ou preparatório (preparação para a inscrição nas faculdades maiores), e os estudantes que concluíssem o curso de Artes em Évora poderiam inscrever-se directamente nas faculdades maiores não só de Évora, mas também de Coimbra. No reinado de Dom Pedro II modernizou-se o ensino das Matemáticas, nelas se incluindo a Geografia, a Física e a Arquitectura [13]. A história dos estudos em Artes tanto em Coimbra como em Évora (que tanto me interessa!) ficará também para outro post.
Representação da experiência dos hemisférios de Magdeburgo, de Otto von Guernicke (1602-1686), em azulejos da Aula de Física da antiga Universidade de Évora (hoje sala 120 da moderna universidade), 1744-1749. No azulejo vêem-se as palavras em latim "Vacuo resistit" ("o vácuo resiste"). Imagem tirada daqui. [14]
Referências
[ ] Onde não haja indicação da referência, as informações foram tiradas do texto de Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa, História da Universidade Teológica de Évora (Séculos XVI a XVIII), Lisboa: Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, 2013, ISBN 978-989-98314-0-7.
[1] José Mattoso, O suporte social da universidade de Lisboa-Coimbra (1290-1537), pp. 390, in José Mattoso, Naquele Tempo - Ensaios de História Medieval, Lisboa: Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2009, pp. 383-407. Este ensaio foi anteriormente publicado em História da Universidade em Portugal, vol. I, tomo I, Coimbra: Universidade de Coimbra e Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 305-335; e parcialmente em Penélope. Fazer e desfazer a História, 13 (1994) pp. 23-35.
[2] Teresa Rosa, História da Universidade Teológica..., op. cit.
[3] Muito da história da Universidade de Évora se poderá consultar no fundo documental existente actualmente na Universidade de Coimbra, e também no seguinte blog. V. também Teresa Rosa, História da Universidade Teológica..., op. cit.
[4] Ligação para digitarq.
[5] Ligação para o website do Seminário Maior de Évora; ligação para FUNDIS; as andanças do edifício dos Colégios e da antiga Universidade de Évora podem ser seguidas no website Monumentos. V. também Fernando Taveira da Fonseca, A universidade de Évora (1559-1759): história e historiografía. In Salamanca e su Universidad en el Primer Renacimiento: Siglo XV, Miscelánea Alfonso IX, 2010, ligação.
[6] Ligação para FUNDIS.
[7] Ligação para Infopédia.
[8] Teresa Rosa, História da Universidade Teológica..., pp. 93-94.
[9] Steve Naragon, List: 18th Century German Universities, North Manchester, Indiana: Manchester University, 2014. Ligação (acedida Dezembro 2014).
[10] A History of the University in Europe, Vol. II.
[11] A ausência da Medicina, das Leis e dos Cânones (na verdade, apenas da sua parte contenciosa), parece dever-se a um desejo expresso de manter o monopólio lectivo destas matérias na Universidade de Coimbra, desejo contemplado na Bula da fundação da Universidade Eborense. V. nota 59 in Teresa Rosa, História da Universidade Teológica..., p. 33.
[12] Ligação para a página da universidade actual; Teresa Rosa, História da Universidade Teológica..., op. cit.
[13] Ligação para a página da universidade actual.
[14] A recente tomada de consciência da importância e da excelência dos azulejos setecentistas como material didáctico, mormente em Coimbra, pode ser seguida no blogue De Rerum Natura e na Scientific American.
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