Quando que se começar a ler o que vem abaixo, ficar-se-á sem qualquer dúvida: eu segui o ponto de vista de José Hermano Saraiva. Estando longe de ser o definitivamente estabelecido, parece-me que é, ao menos, o mais conservador, o que não multiplica desnecessàriamente as entidades (Ockham's razor). Por exemplo, JHS só vê duas mulheres na poesia de Camões: Violante (= ama, Belisa, Aurora, Circe, Dóris) e Joana (= Aónia, Diana, Ana, Natércia, Nise, Alcida, Dinamene, Tétis). Não vê Caterinas, nem Isabéis, nem infantas Marias, nem Tin-Nam-Menes. Também não se desvia das poucas certezas que se podem ter sobre Camões: foi preso na prisão dos plebeus, o Tronco, logo não era fidalgo; a tença de 15 000 réis por ano em 1572 dava 42 réis por dia, tanto quanto um mendigo poderia esperar ganhar (era uma esmola, portanto), logo não viveu os seus últimos anos confortàvelmente; etc. A partir daqui, é tudo conjectura, mas JHS guia-se pelos costumes e leis do século XVI português, pela ética das grandes famílias nobiliárquicas (Camões está indelèvelmente ligado aos Noronhas) e pelo que o poeta diz de si próprio nos seus textos, mesmo nalguns de atribuição duvidosa ― tudo coisas que JHS conhece bem. E assim comemoro eu, modestamente, o qüinqüicentenário do nascimento do poeta, se aceitarmos a data de 1524 como certa.
1524
Nasce em data incerta neste ano ou no seguinte (ou certamente algures entre os anos de 1517 e 1525). A família é de Vilar de Nantes, concelho de Chaves, onde ele pode ou não ter nascido. Nasce plebeu e nada tem em parentesco com os fidalgos galegos de apelido Camões. Filho de Simão Vaz (que aparece como morador em Lisboa, à Mouraria, em 1550, e como cavaleiro-fidalgo num documento autêntico de 1553) e de Ana de Sá, é possível que tenha apenas usado o nome Luís Vaz e só mais tarde adicionado Camões.
1530
O 1.º conde de Linhares contratou o casamento do seu filho segundo, Dom Francisco de Noronha (c. 1504-1574) com Violante Andrade (c. 1522-c. 1600), filha mais velha de Fernand'Álvares (14??-1552, v. JHS, Vida ignorada, p. 237), tesoureiro-mor do rei. O dote da noiva seria entregue «ao marido logo que o matrimónio se consumasse, o que deveria suceder até ao São João de 1534, que era quando a noiva fazia 12 anos» (JHS, Vida ignorada, pp. 102s).
1534
Foi servir como escudeiro na casa de Francisco e Violante, provàvelmente em São Martinho do Bispo (Coimbra) onde aquele tinha uma comenda da Ordem de Cristo; Fernand'Álvares já chamava genro a Francisco em 1533, e é certo que já estariam casados nos princípios de 1535. Como o próprio poeta diz, foi criado nas margens do Mondego.
1535
Neste ano ou no seguinte, nasce o primeiro filho de Francisco e Violante, António, que morrerá com 17 anos em 1553 e a quem Camões há-de fazer várias poemas que são, na verdade, cartas destinadas a Violante.
1538
Neste ano ou no seguinte, nasce o segundo filho de Francisco e Violante, Fernando (morrerá aos 70 anos em 1609).
1540
Entre 1539 e 1541, nasce Joana, terceira filha de Francisco e Violante, que, segundo JHS, é a Dinamene de Camões, «imagem e semelhança da sua ama» (JHS, Vida ignorada, p. 165), e que morrerá na viagem para a Índia em 1550.
Entretanto, Francisco é nomeado (24 de Novembro de 1540) embaixador junto do rei de França, e no fim do ano parte para Paris. Violante fica em Portugal; é nesta época que nasce o sentimento de Luís Vaz pela ama (a mulher do amo), que seria apenas dois anos mais velha do que ele.
Início dos períodos criativos de Camões; primeiros textos conhecidos do poeta.
1541
Neste ano ou no seguinte começam os amores de Camões com Violante (JHS, Vida ignorada, p. 176); ele teria uns 16 ou 17 anos, e ela 18 ou 19 (mas já era mãe de três crianças).
1544
Francisco regressa de França e instala-se com a família (incluindo o escudeiro Camões) em Lisboa. Para o poeta, esta terra era triste sítio, entre gente estranha ― isto parece indicar que ele nunca lá teria estado.
É improvável que Camões, enquanto viveu perto de Coimbra, tenha estudado quer na universidade, quer no mosteiro de Santa Cruz. Não se encontra o seu nome nas listas de matriculados e Dom Bento de Camões, que «[o]s biógrafos clássicos (...) julgaram, sem razão, ter sido seu tio e protector» (MLS, Sonetos, p. 253) e que era à época prior de Santa Cruz e cancelário da universidade, nada deve ter tido a ver com Luís Vaz. Os livros que o poeta terá lido em jovem (Petrarca, Garcilaso) deveriam pertencer à biblioteca da casa de Francisco e Violante; Camões só terá sido instruído informalmente e/ou autodidàcticamente, como JHS constantemente lembra e ele próprio o diz n'Os Lusíadas (canto X, estrofe 154): nem me falta na vida honesto estudo, /com longa experiência misturado, /nem engenho (...) ― estudou na vida, com experiência e engenho.
1547
No período 1544-1547, em Lisboa, é possível que os amores entre Violante e Camões tenham sido descobertos na côrte e causado o desterro do poeta em Ceuta (JHS, Vida ignorada, p. 214). Parte para Ceuta, onde está 2 anos. O capitão-geral de Ceuta é Dom Afonso de Noronha (de 1540 a 1549), primo co-irmão de Dom Francisco de Noronha, e que havia de ser vice-rei da Índia.
Nos meados do ano, Francisco faz a sua segunda viagem a França (em 3 de Novembro de 1547 está em Melun), de onde regressa antes do Verão de 1548 (o rei dá-lhe licença para regressar em 13 de Março; em 2 de Julho já estava em Lisboa); é possível que ele tenha achado mais prudente fazer-se acompanhar da mulher («a adúltera senhora», v. JHS, Vida ignorada, p. 166).
Fim do primeiro período criativo de Camões, o «ciclo idílico» (1540-1547), segundo a periodização de JHS. «As imitações de Petrarca marcam a primeira fase poética de Camões; é provável que tenha feito a sua aprendizagem dos poetas mais em voga no seu tempo» (MLS, Sonetos, p. 51). «(...) ciclo da descoberta do amor» (MLS, Sonetos, p. 53). «A ingenuidade temática e a simplicidade da construção são muito características da fase juvenil» (MLS, Sonetos, p. 54). Serão deste período
as éclogas:
• Cantando por um vale docemente (écloga IV)
as elegias:
• Correntes águas frias do Mondego (datável de 1544)
as odes:
• Pode um desejo imenso (ode VI)
os sonetos:
• Amor é fogo que arde sem se ver
• Criou a Natureza damas belas
• Eu cantarei de amor tão docemente
• Onde mereci eu tal pensamento
• Quando da bela vista e doce riso
• Quem diz que Amor é falso ou enganosos
• Quem quiser ver d'Amor uma excelência
• Se em mim, ó Alma, vive mais lembrança
• Tanto de meu estado me acho incerto
• Um mover de olhos, brando e piedosos
1548
Regressa de Ceuta. Foi depois do serviço em Ceuta que descobriu a «beleza da pálida violeta que amanhecia (...) É pois entre 1547 e 1550 que a vida de Camões é dominada pelos amores daquela em quem via a imagem e semelhança da sua ama» (JHS, Vida ignorada, p. 167), ainda que o casamento com a filha não devesse interferir no sentimento que o poeta tinha para com a mãe.
1550
Sofre uma perseguição judiciária. As razões são desconhecidas, mas é possível que estejam relacionadas com Joana, que Violante lhe teria prometido em casamento, o que seria socialmente (e judicialmente) impossível. Joana foi despachada para a Índia na armada que partiu em Abril (sob o comando do novo vice-rei, Dom Afonso de Noronha) e Camões foi preso (ainda pretendeu embarcar também para a Índia, mas foi impedido: teve de apresentar fiador porque já estava condenado, e foi o seu pai, Simão Vaz, que foi o fiador; JHS, Vida ignorada, p. 197, p. 264); como escudeiro de um comendador da Ordem de Cristo, o cárcere seria um dos da Ordem (e à beira-Tejo, a uma areia de rochas coroada, por exemplo, Almourol), e não um dos do rei; a tradição situa-o em Punhete (hoje Constância) e JHS diz que só pode ter sido nos calabouços do velho castelo (em prisões baixas fui um tempo atado; v. MLS, Sonetos, pp. 203-204).
1551
Foi libertado da prisão depois do Verão, talvez no fim do ano. A notícia da morte de Joana teria chegado com a volta da armada da Índia, entre Julho e Setembro; com a morte da «vítima», a sentença judicial perdeu efeito.
1552
Um documento prova que, no dia 16 de Junho (dia do Corpo de Deus), em Lisboa, Camões dá uma cutilada num criado do paço e é preso na cadeia do Tronco de Lisboa (a prisão dos plebeus; se fosse fidalgo teria ido para o Limoeiro); isto também indica que teria deixado de servir o comendador da Ordem de Cristo, já que foi preso numa prisão real. De acordo com as Ordenações, todos os acusados eram submetidos à tortura; é improvável que Camões tenha sido isentado. «A tortura normalmente usada na instrução judiciária era o trato da polé. O preso era estendido numa tábua e amarrado a cordas que eram esticadas por uma polé (...) Em geral, a polé não matava, sobretudo se o preso era jovem. Mas deixava vestígios para a vida inteira. Os ossos desengonçavam-se, os ligamentos musculares rompiam-se e, com os anos, surgiam artroses, deformidades ósseas, insensibilidade de tecidos. (...) A marcha tornava-se penosa e, com a meia-idade, podia ter de ser auxiliada com muletas.» (JHS, Vida ignorada, p. 249).
1553
Apresenta ao rei uma petição de perdão (23 de Fevereiro) e é libertado em troca do pagamento de 4000 réis, de fiador (Belchior Barreto, um financeiro; o pai, Simão Vaz, ou já tinha morrido ou se tinha incompatibilizado com o filho pelas prisões) e de serviço na Índia (três anos, mínimo), para onde parte na armada que saiu em 24 de Março; chega a Cochim em Setembro. O vice-rei em Goa (de 1550 a 1554) é Dom Afonso de Noronha, primo co-irmão de Dom Francisco de Noronha, que tinha sido capitão-geral de Ceuta.
Já na Índia, no fim do ano, o poeta escreve a elegia O poeta Simónides a António, filho de Francisco e Violante, poema que é na verdade uma carta para Violante, e que enviou na armada que saiu de Goa em Janeiro de 1554; mas António tinha morrido no dia 18 de Abril de 1553, em Ceuta (para onde tinha sido mandado para que «não casasse com uma dama a que era afeiçoado»; JHS, Vida ignorada, p. 199) e Camões só pode ter recebido a notícia com a chegada a Goa (Março de 1554) da armada que tinha saído de Lisboa em 3 de Outubro de 1553 (JHS, Vida ignorada, p. 268).
Retrato de Camões feito em Goa por autor desconhecido em 1556, presume-se que tirado do natural. Pergaminho medindo 217 × 145 mm, pela técnica da iluminura e cartografia do séc. XVI. «O chamado retrato de Camões na prisão foi revelado por Maria Antonieta Soares de Azevedo em 1972 e parece anterior ao de Fernão Gomes e ao da casa Rio Maior.» ― Vasco Graça Moura, Diário de Notícias de 09 Outubro 2013.
1554
Fim do segundo período criativo de Camões, o «ciclo dramático» (1547-1554), «uma fase diferente na lírica, mais dramática, com uma estrutura filosófica concentrada e uma atitude fundamentalmente pessimista» (MLS, Sonetos, p. 113). «O ciclo da crise sentimental, que antecede a fase intelectualizada da poesia do exílio (...), é o de maior altura lírica e mais comunicativa beleza verbal» (MLS, Sonetos, p. 115). Serão deste período
as canções:
• Junto de um seco, fero e estéril monte (datável de 1554 ou 1555).
as éclogas:
• De quanto alento e gosto me causava (datável de 1552).
• Nas ribeiras do Tejo, a uma areia.
as elegias:
• O poeta Simónides (datável de 1554);
os sonetos:
• Ah! minha Dinamene, assim deixaste
• Alma minha gentil, que te partiste
• Aquela triste e leda madrugada
• Cara minha inimiga, em cuja mão
• Em prisões baixas fui um tempo atado
• O cisne, quando sente ser chegada
• Outro Sol, outra Aurora, outro Oriente (datável de 1550-1551)
• Presença bela, angélica figura
• Suspiros inflamados, que cantais
1567
Regressa de Macau para Goa, na qual viagem acontece o naufrágio na foz do rio Mècongue.
Retrato de Camões (fac-símile) feito em Lisboa pelo pintor Fernão Gomes (1548–1612), presume-se que tirado do natural em 1570, isto é, pouco depois da sua chegada da Índia. Cópia de Luis José Pereira de Resende (1760–1847), feita em 1830/40. Desenho aguarelado sobre papel, 460 × 310 mm. Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, Inv.nº: C.F. 200 / 3347. Imagem compulsada daqui.
1569
Regressa a Lisboa, «capitulado», com culpas estabelecidas. Tem de passar tempo na ilha de Moçambique. Na mesma viagem de regresso vem o cronista Diogo do Couto, amigo de Camões e que nos dá a notícia de Moçambique (JHS, Vida ignorada, p. 181).
1571
Diogo do Couto deixou Camões em Lisboa. «Os Lusíadas mereceram aprovação do Santo Ofício e aparece um mecenas que financia a custosa edição» (JHS, Vida ignorada, p. 184).
1572
Saem dos prelos as duas primeiras edições d'Os Lusíadas.
Fim do terceiro período criativo de Camões, o «ciclo elegíaco» (1555-1572). Serão deste período o épico Os Lusíadas, e
as odes:
• Aquele único exemplo (datável de 1563)
os sonetos:
• Busque amor novas artes, novo engenho
• Em prisões baixas fui um tempo atado,
• Erros meus, má fortuna, amor ardente
• Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
• No mundo, poucos anos e cansados (datável de 1554 ou 1555)
• Sete anos de pastor Jacob servia.
1578
Dom Martinho de Castelo Branco, filho do conde de Vila Nova de Portimão, morreu na batalha de Alcácer Quibir; no inventário dos seus bens aparecem «hum lliuro que se chama do Camoins» e «outro liurinho», e noutra lista do espólio «hum liuro de Luis de Camoes; outro liuro piqueno dorlando em Italiano», sendo esta último o Orlando Furioso de Ariosto, que se sabe ter sido uma das fontes d'Os Lusíadas. O «livro que se chama do Camões» seriam, verosìmilmente, Os Lusíadas, e a forma como se designava o poeta mostra que o nome de Camões era conhecido; por ele se identificava a obra (JHS, Vida ignorada, pp. 80-81).
Uma anedota sobre Camões encontrada nos Ditos Portugueses «constitui talvez a mais antiga referência a'Os Lusíadas que até nós chegou» (JHS, Vida ignorada, p. 252). Como os Ditos Portugueses nunca referem a batalha de Alcácer Quibir, esta notícia será posterior a 1572, mas anterior a 1578.