Capítulo II. Valor de conhecimento das ciências As Ciências da natureza impuseram-se sempre como conhecimentos exactos donde lhes deriva o nome de ciências exactas.
Qual é, porém, a exactidão deste conhecimento? Ou melhor, qual é o conhecimento do real que elas nos fornecem? Houve tempo em que se pensou, visto o adianto destas ciências, que elas nos abririam o enigma do real. Hoje, desfez-se essa miragem.
Investiguemos, portanto, a exactidão do conhecimento científico e o seu progresso. As ciências são o conhecimento racional que interpreta os dados dos sentidos. Ora os últimos elementos dos corpos já não ferem os nossos sentidos e pràticamente são inexistentes para eles. O próprio de cada um destes últimos elementos, a sua individualidade, escapa-nos ainda mais; com efeito, a individualidade, que tomava grande preponderância no homem por causa da sua liberdade, diminui nos animais que guardam ainda uma grande espontaneidade, restringe-se mais nas plantas, desaparece nos minerais onde se torna quase nula, por nos parecerem duma igualdade perfeita podendo substituir-se uns aos outros sem inconveniente, e desaparece completamente para o cientista nos últimos elementos, que os reputa iguais ainda que na realidade difiram e guardem a sua individualidade própria.
A exactidão dos conhecimentos científicos repousa, portanto, sobre os limites da nossa observação e a fraca intensidade individual dos elementos materiais. Daqui resulta que a proclamada exactidão das ciências exactas é em si inexistente.
Os últimos elementos, sejam eles quais forem, protões ou electrões, guardam a sua individualidade e legalidade individual própria. Sob as mesma causas dois electrões não farão movimentos idênticos, mas a sua diferença é tão mínima que os nossos aparelhos são incapazes de a notar. São tão insignificantes esses desvios que podemos estabelecer leis gerais.
O progresso nas várias Ciências é devido ao métodod especial aplicado a cada uma delas. As ciências em lugar de progredirem por generalização crescente e em profundidade com sínteses cada vez mais ricas, desenvolvem-se mercê de análises mais exactas, que se aproximam cada vez mais da realidade, ficando, porém, sempre no plano geral. Cada nova análise, cada nova aproximação da realidade invalida as antecedentes no campo da ciência pura [portanto, Abranches conhecia o trabalho de Popper, que ainda não tinha sido decentemente desafiado por Kuhn e Lakatos].
O método científico utilizado na física é a indução, que vai do caso particular, não sòmente à colecção dos casos observados, mas ao geral.
Aristóteles conheceu já este processo (An. Pr. II, 23; 68 b. 13 n. 1) que é diferente da indução científica actual.
A indução aristotélica é a indução completa em que se estudam todos os casos possíveis e se conclui, portanto, em geral. Assim posso dizer em virtude desta indução que uma linha baixada dentro do ângulo oposto à base dum triângulo corta sempre esta última. Pois fazendo coincidir a linha com um dos lados e varrendo em seguida com ela toda a área do triângulo até a fazer coincidir com o outro lado fizemos todos os casos possíveis da posição dessa linha e examinámos que em todos os casos corta a base. Esta indução não é desprovida de valor e é de uso corrente em matemática, mas na verdade é de pouca utilidade e não é uma «Indução» no sentido que hoje damos a essa palavra. A indução científica moderna conclui da análise de um ou vários casos, à generalidade.
Em física não podemos nunca perfazer a experiência; embora pudéssemos ter o conhecimento de todos os casos passado e presentes, ficavam sempre os casos futuros por conhecer. Ora são precisamente estes últimos que mais interessam ao homem de ciência. O processo usado será pois uma indução incompleta. Da observação de alguns casos tirar a lei de todos os casos possíveis.
Que vale esta indução?
Kant na Crítica da razão pura procurou justificar este processo e achar uma teoria da realidade em função deste modo de conhecimento. A necessidade e generalidade das leis científicas é devida ao conhecimento humano que aplica as formas ao dado desconhecido em si.
Outros fixando-se na evolução das teorias científicas dizem que são meras definições e convenções úteis na prática.
Outros ainda apelam para a uniformidade da natureza afirmada dogmàticamente.
Estas explicações não são aceitáveis, e ainda que dêem alguma explicação da indução incompleta não nos fornecem as suas verdadeiras bases filosóficas.
São demasiado conhecidas as leis da indução estabelecidas por J. Stuart Mill e que nos mostram como o método científico de indução se funda não só na experiência mas na experimentação. Chamo experimentação ao poder de repetir o caso observado, repetição que todos podem provocar se dispuserem dos instrumentos requeridos para a fazerem.
(p. 54) Cada experiência, ainda que procuremos que se repita em circunstâncias semelhantes à primeira, guarda a sua individualidade, visto que o concreto nunca se repete [será? Isto sim é uma afirmação metafísica].
As várias experiências não serão por isso completamente idênticas, absolutamente iguais sob todos os pontos de vista. Além disso a experimentação estuda não só os casos repetidos em circunstâncias o mais possível iguais, mas em circunstâncias variadas e isso com o fim de eliminar tudo o que não pertença com segurança ao caso a estudar.
O cientista retém simplesmente o que há de comum e de geral em todos os casos, deixando cair o que há de individual e próprio em cada um. Não admira pois, que este método nos forneça regras gerais e leis da natureza. Mercê da análise feita, graças à experimentação, o cientista dividiu e decompôs as várias causas que influíam no efeito e isolou-as quanto possível, para ver o que cada uma delas operava regular, constante e necessàriamente.
Retendo, portanto, o geral, o cientista formulou as leis. Ora o próprio nome de lei nos está a indicar que o estudo da natureza foi feito por uma analogia com as leis humanas [sim, em tempos romanos, com Séneca e Plínio, por analogia com a lex romana codificada; mas em tempos modernos provàvelmente antes com as leis divinas, que era suposto existirem na natureza, já que foi Descartes ― o teólogo Descartes ― e depois Newton ― o místico Newton ― que foram buscar a palavra lei para designar as regularidades naturais, https://en.wikipedia.org/wiki/Scientific_law]. Estas são antecedentes à ordem a introduzir, à regularidade de comportamento a exigir dos súbditos da lei. A lei [humana, o direito] explica os factos.
As leis da natureza, ao contrário, são posteriores à ordem e à regularidade notadas, não passam de fórmulas breves em que se exprime a regularidade dos factos. Os corpos não chocam porque há uma lei de choque, mas há esta lei porque os corpos chocam.
Por meio da experimentação e usando as leis da indução conhecemos as relações regulares e constantes entre certos elementos ou grupos de elementos, de tal modo que a presença de um condiciona a presença de outro. Ora isto torna-nos aptos a prever os factos que se vão seguir, a prever o futuro.
Em que se funda a regularidade e necessidade dessas relações pelas quais podemos assim esperar o facto futuro?
O método científico isolou primeiro uma série de erro que eram as apreciações subjectivas de cada cientista. Nas apreciações dos dados positivos da ciência desapareceu toda a emotividade, toda a relação ao sentimento, para se atender sòmente ao significado lógico e formal do facto. O facto real, concreto empobreceu-se de tudo o que o constituía como único na primeira experiência. Entrou em jogo a abstracção desde o primeiro momento, pela qual se prescindiu do que era individual para guardar simplesmente o que era comum e geral, e isso com tanto maior facilidade quanto a individualidade era menos acentuada. Ora a individualidade dos seres enfraquece e é mínima, como vimos, nos inorgânicos.
A indução científica repousa, portanto, na diminuição progressiva da individualidade dos vários graus de ser. Onde a individualidade é forte e domina, como no homem, a indução tem pouco préstimo, por ela se obtêm apenas algumas leis gerais, chamadas sociológicas, que não têm valor nos casos individuais. Nos animais já a indução tem maior aplicação; maior ainda nas plantas; máxima no reino mineral, na matéria.
O método indutivo aplica-se sòmente com proveito à parte da realidade de um ser que é o que nele há de comum com outros seres, omitindo o lado individual. Por isso, quanto mais este elemento for negligenciável melhor se aplicará o método.
Gozando a matéria de débil individualidade, fàcilmente podemos substituir um corpo por outro, pois o erro que provém da individualidade é ainda menor do que o que resulta da observação.
Podemos perguntar-nos: agindo deste modo não estaremos a supor dogmàticamente que as naturezas das coisas, as suas essências são imutáveis?
Não. Não supomos nada. Os resultados obtidos pela indução não supõem, mas antes implicam que o efeito produzido em cada caso tem a sua razão suficiente, que será dada pelas causas externas e pela natureza do ser que muda. Pertence à indução investigar qual o valor que se deve atribuir a cada uma das causas, mas em todos os casos haverá sempre alguma coisa de privativo e único, alguma coisa de individual, não atribuível às causas externas, dentro de certos limites determinados pela espécie, pelo grau de ser que pertence à natureza do objecto.
O homem goza de liberdade [um padre católico segue Agostinho, naturalmente: «Deus deu ao homem o livre-arbítrio»] e pode escolher de certo modo as suas mudanças; o animal goza de espontaneidade, vê diminuída a sua possibilidade de escolher; a planta vê o seu poder selectivo e espontâneo reduzido ao mínimo, ao passo que a matéria perde toda a espontaneidade, o ritmo das suas mudanças é fixo pela natureza do átomo, o que nso permite encontrar a lei desse ritmo. As leis gerais serão para a matéria quase exactas, visto as diferenças individuais nos ficarem desconhecidas; será menos exacta para as plantas; para os animais só nos dará uma média mais ou menos provável, para o que é especìficamente humano é mínimo o resultado. As leis físicas são, pelo que deixámos dito, gerais e aproximativas.
Em todo o conhecimento humano há sempre alguma coisa de objectivo, que provém do objecto, e alguma coisa de subjectivo que se origina no sujeito. Para obter a objectividade do nosso conhecimento é necessário eliminar quanto possível o elemento subjectivo. Isto obtém-se mercê da convergência de vários conhecimentos independentes pelo método da indução, como insinuamos atrás.
No conhecimento da matéria, isto é, dos inorgânicos dar-se-á em cada observação individual este factor subjectivo. Dois observadores apreciarão o peso de um corpo diferentemente, a temperatura ou a cor de um objecto será também apreciada diversamente. Sendo o objecto o mesmo, a diferença é devida ao factor subjectivo que se introduziu no conhecimento.
Como eliminar este elemento subjectivo? O caso da sensação oferece uma dificuldade especial, pois não podemos comunicar aos outros a nossa sensação como tal. Nunca poderemos comparar o calor, a cor, o peso sentido por nós com as sensações dos outros. Ficamos encerrados dentro do psíquico, o que nos impossibilita de realizar a convergência para eliminar o que houver de diverso nas sensações de muitos observadores.
Poderemos estar certos, quando dissermos que tal objecto é verde, que designamos a mesma sensação de cor que outro que afirma do mesmo modo que esse objecto é verde? Nunca o poderemos saber com certeza, pois nunca poderemos determinar com exactidão o que há de subjectivo e o que há de objectivo nesse conhecimento. O método da convergência torna-se nestes casos impossível, inaplicável. As sensações como tais são incomunicáveis. Se as qualidades secundárias da matéria: cor, som, gosto, cheiro, etc., são objectivas, nunca as poderemos certamente conhecer na sua pura objectividade. Não serão as qualidades objectivas da matéria operadas pelos nossos esquemas e organização biológica?
Todos sabem que os esquemas têm grande influência no nosso conhecimento. Exemplifiquemos com o esquema da oposição dos contrários, para cairmos na conta da sua grande influência no nosso modo de conhecer.
Essa oposição de contrários só se dá no campo do sensível. Sendo o biológico uma vida ligada a uma matéria, só tem condições de existência entre um mínimo e um máximo. O frio mata o organismo, mas o calor não lhe é menos nocivo. Um som muito baixo é imperceptível, mas um som demasiado agudo não o é menos. Demasiado alimento é nocivo, como o é também o demasiado pouco. Tanto a pouca luz como a demasiada luz tornam a visão impossível. Em todo o biológico organizado há um máximo e um mínimo que não podem ser ultrapassados e as condições da vida devem ser buscadas no meio termo que evite os extremos.
Estes extremos constituem deste modo verdadeiros contrários. Assim: frio-quente, leve-pesado, pequeno-grande, branco-negro, grave-agudo, baixo-alto, direito-esquerdo, adiante-atrás. Mais ainda, conhecemos como contrárias as mesmas privações, cegueira-vista, doença-saúde, etc. Ora este último caso mostra-nos à evidência como nos é natural esta extrapolação do esquema da contrariedade. Aplicamos este esquema às coisas onde não responde a uma verdadeira oposição contrária real, mas a uma projecção do nosso modo de pensar. A oposição contrária dá-se entre dois positivos em que um não tem nada do outro. No conhecimento da matéria e em matemática a oposição contrária é uma extrapolação devida à influência da sensibilidade no espírito. Aí reina a oposição de alteridade que é regida pelo princípio de não-contradição.
Sentimos uma tendência para compreender os seres materiais por oposição contrária, e já sabemos onde se radica esta tendência. Ao aplicar às coisas essas oposições contrárias próprias da sensação, aplicamos-lhes os nossos esquemas biológicos.
O desenvolvimento da física moderna fez-nos cair na conta da diferença existente entre os esquemas e a matéria em si.
(p. 60) A física moderna suprimiu um dos termos da oposição e pelo facto mesmo alterou o conceito do outro termo. Para o físico não há frio, nem leve, nem lento, nem pequeno, bem como não há direita, nem esquerda, alto ou baixo, diante ou detrás. Mas não conhecendo a matéria senão através da nossa estrutura não podemos prescindir destes termos, contudo devemos aperceber-nos dos verdadeiros contrários e das suas extrapoladas injustificadas.
Por exemplo concebemos a matéria pela oposição entre energia e massa; os físicos mostraram que esta oposição é suspeita, provaram até que era inexistente; em física a massa transforma-se em energia e a energia em massa. O único que podemos afirmar é que não há energia sem massa nem massa sem energia; mas por não podermos saber nem suprimir o que há de subjectivo no nosso conhecimento das qualidades secundárias, não podemos concluir que as qualidades secundárias são apenas subjectivas, meras transposições totais da quantidade. Esta conclusão é ilegítima. Só podemos afirmar que não podemos conhecer o que há de verdadeiramente objectivo nessas qualidades.
Conhecemos, porém, melhor e atingimos maior objectividade no conhecimento da quantidade.
O nosso espírito não tem domínio directo pelas suas próprias forças no mundo corporal senão através do próprio corpo. Não somos um espírito que habita um corpo, mas somos uma unidade substancial, uma única pessoa.
Ora o nosso corpo na sua actividade sobre os outros corpos só pode realizar movimentos. Podemos levar um corpo daqui para ali, deslocá-lo mudando assim o lugar relativamente a outros seres materiais. Pintar, por exemplo, é distribuir as cores em certa ordem e medida. Graças ao deslocamento que pudemos operar, podemos sobrepor a superfície de um corpo com a superfície de outro e assim suprimimos toda a diferença que provinha da nossa maneira de ver as coisas devida à perspectiva.
As superfícies de dois corpos distantes vistas de um ponto parecem ser iguais e vistas de qualquer outro ponto parecem desiguais. Se reduzirmos a distância a zero até à sobreposição então se as virmos coincidir em algum ponto vê-las-emos sempre coincidir seja de que ponto for que as olhemos. Como se vê todo o efeito da perspectiva foi eliminado. Mas a operação de aplicar um corpo a outro é medi-lo e medindo-o, tomando um deles para unidade, podemos exprimir em números o seu comprimento objectivo independentemente da subjectividade de cada operador.
Mas nova dificuldade se levanta! Segundo os dados da física sabemos que dois corpos nunca se tocam na realidade. Dois átomos ficam sempre a distâncias que superam as próprias dimensões. Duas superfícies nunca se tocam perfeitamente. Tocar é um conceito proveniente da sensação e, portanto, pertencente ao domínio biológico. Significa, pois, uma aproximação da superfície do nosso corpo vivo a outra superfície, de modo a produzir-se a sensação de tacto. A coincidência perfeita é sòmente aparente e quando aplicamos o conceito de contacto aos corpos, se queremos significar que coincidem perfeitamente, pràticamente uma extrapolação, pois sòmente significa uma aproximação.
A coincidência é simplesmente aparente. Portanto a coincidência necessária para obter medidas objectivas é um ideal irrealizável. Podemos pràticamente diminuir a distância quanto quisermos, abaixo de todo o limite observável, mas a coincidência nunca será perfeitamente exacta.
Eis a razão do carácter aproximativo das medidas em física. O grau de aproximação não depende de um observador, de um indivíduo em particular, mas do adianto da ciência.
Para estabelecer a unidade de medida temos que buscar um movimento uniforme. O movimento espontâneo e orgânico não serve, pois não tem esta qualidade. Os corpos inorgânicos em movimento, deixados a si mesmos, não têm razão de mudar, se forem subtraídos às influências externas. Julgar que eles se modificam no movimento por uma espécie de fadiga é dar-lhes espontaneidade de que eles não gozam. Pràticamente usou-se o movimento aparente do Sol, mas notou-se que ele tinha pequenas irregularidades. Substituiu-se pelo movimento do pêndulo. Neste movimento, porém, também não podemos realizar as condições requeridas, isto é, suprir todas as influências externas, e só as podemos realizar aproximadamente e aproximar-nos mais e mais das condições ideais. Estas medidas só serão absolutamente exactas na ciência que supõe as condições realizadas, mas que por isso mesmo é uma ciência do abstracto, a Matemática.
Foi alcançada uma medida independente das impressões subjectivas, uma medida objectiva, mas, como vimos, meramente aproximativa, e isto sòmente para a quantidade.
Para as qualidades não temos medida nenhuma directa. Notou-se, porém, que certas variações de quantidade implicam mudanças de qualidades. Analisou-se cada qualidade de per si e o resultado foi maravilhoso. Uma variação determinada na quantidade porvoca uma variação determinada na qualidade, o que permitiu medir as qualidades ainda que indirectamente. O calor e a pressão medem-se pelo comprimento da coluna de mercúrio, o som pela vibração do ar, a luz e as cores pelo movimento ondulatório. Reduziram-se deste modo as qualidades à quantidade.
Podia agora estudar-se física por uma nova ciência, a ciência da quantidade ou a matemática. Eis-nos perante a física-matemática.
(p. 64) Num trabalho intenso de objectivação chegámos a um aspecto do real, o real quantificado, susceptível de se deixar manejar pela ciência da quantidade, do contínuo, da extensão e duração ou do espaço-tempo, a Matemática.
O contínuo é na matemática o elemento empírico onde se elaborou uma primera alteração supondo-o completamente homogéneo, simples, sem estruturas essenciais. Podemos, portanto, tomar o que chamamos corpos, sobrepô-los para os medir, deslocá-los para os ajuntar, separá-los para os dividir. Temos as operações fundamentais às quais se reduzem todas as operações da matemática, se exceptuarmos a teoria dos grupos.
Vimos como em física nos tínhamos aproximado das dimensões exactas por uma série indefinida de investigações finitas, que têm por limite a dimensão finita exacta. O correspondente matemático deste modo de proceder é o cálculo integral e diferencial. A aplicação do cálculo infinitesimal à física, se devem os seus adiantos surpreendentes.
A geometria supõe as medidas exactas, a aproximação acabada. Dá o salto do ideal ao existencial e as suas linhas, planos e pontos não têm espessura. Os planos só têm largura e comprimento, a linha só comprimento e o ponto não tem dimensão nenhuma. As suas medidas têm uma exactidão perfeita. Perfeição devida ao empobrecimento do seu conteúdo real e à fuga das condições da existência real.
A matemática trabalha com conceitos unívocos perfeitamente idênticos. As figuras geométricas para o geómetra e os números para o matemático dizem para todos o mesmo. Mas dois seres existentes, individuais, nunca serão idênticos. Em matemática como em física só graças à abstracção do que é individual, à sua omissão é que se podem realizar as operações.
A clareza da matemática provém-lhe desta univocidade de conceitos usada nas suas operações.
O sinal = (igual) que une os dois membros nas equações não significa identidade mas sim equivalência. 6 = 6 não é uma verdade, é mera tautologia. 30 × 3 = 90 é uma equivalência que nos mostra dois modos de chegar a um mesmo resultado.
Se não posso obter o resultado 90 directa e imediatamente, posso obtê-lo doutro modo. Quero por exemplo transportar 90 quilos daqui para outro sítio e as minhas forças não são suficientes para transportá-los todos duma vez, o resultado será o mesmo se se tomarem 30 quilos e se repetir essa acção três vezes. A acumulação dos resultados expressa-se pela equivalência 30 × 3 = 90 que nos dá a identidade dum mesmo resultado quantitativo e, portanto, só tem aplicação no domínio da quantidade e não na qualidade. Dois, três, vinte medíocres nunca farão um génio.
A redução da física a movimento e relações funcionais, introduziu, como vimos, a matemática na física, e nela achou uma linguagem e um modo de expressão adequado dos factos e suas relações. O que nos era dado na apreensão sensível, as qualidades sensíveis, foram desvitalizadas e tornaram-se símbolos, e por uma analogia com as experiências sensíveis, eles designam alguma coisa de real, de objectivos, mas desconhecidos na sua realidade em si.
Os nossos sentidos não são capazes de captar toda a actividade do ser material, como os raios infravermelhos, os raios ultravioletas, os raios X e, o que é notável, é que para entrarmos nessas zonas desconhecidas foi preciso transformar, por meio de intrumentos, essa actividade, de modo a produzir uma qualidade sensível, capaz de a fazermos chegar a algum dos cinco ou mais transformadores que são os nossos sentidos, para a podermos transformar em sensação e conhecimento. O conhecimento do ser material pelas ciências exactas é, pois, na sua parte positiva, muitíssimo reduzido e insuficiente para podermos fazer a ontologia do ser material.
O conhecimento científico dá-nos uma pequeníssima parte do conhecimento da experiência humana.
Além da experimentação científico, temos a experiência comum cuja realidade e objectividade não é menos certa do que a experiência científica, e até a própria experiência científica seria impossível sem a experiência comum. Além disso a experiência humana estende-se muito para além dos factos científicos, bastando para isso considerar os objectos de que nos servimos com o seu valor de uso; os factos humanos como a saúde, a doença, a vida, e a morte; as guerras, as revoluções, as transformações sociais; tudo isto são experiências reais que podemos conhecer objectivamente. Contudo não podemos descrever estas realidades em fórmulas matemáticas nem exprimi-las em termos de electrões ou átomos.
Toda esta experiência desaparecera para o cientista que se enclausurou e limitou num único modo de conhecimento, o da experimentação científica. O Cientismo moderno exagera as suas pretensões ao afirmar que sòmente o conhecimento científico é objectivo e real. Os dados que a intuição sensível nos mostra, e que são o ponto de partida da experimentação física, vão-nos dando grupos inferiores, que escapam à nossa intuição sensível. Para os conhecermos, temos que os tornar sensíveis, indirectamente, por meio de instrumentos; fica, porém, sempre alguma coisa de subjectivo da parte do observador, pelo menos a leitura de uma escala em que se aprecia o movimento.
Se se negar realidade e verdade à sensação e os dados por ela apreendidos forem considerados sòmente com subjectivos; que direito tem o Cientismo, se quiser ser coerente, em admitir a realidade e verdade do seu objecto? O ideal do Cientismo é reduzir quanto possível a acção do observador e separar o objectivo do subjectivo a tal ponto que se se realizasse o seu desideratum já não havia lugar para o pensamento e para a vida.
Objectivo e subjectivo são duas noções correlativas que não têm significação senão uma pela outra. Sem uma teoria do conhecimento não se pode dar um passo. Ora a física moderna não encontra lugar par ela, visto que se constitui como ciência, como conhecimento objectivo da natureza, na medida em que chega a eliminá-la.
Mas então, cabe perguntar: qual o objectivo dessa ciência? À reflexão sobre o conhecimento substituiram a pura análise dos enunciados científicos, refugiando-se assim num matematismo ou logicismo formal, que despreza o conhecimento enquanto actividade interna do sujeito, para só estudar a linguagem em que se expressa.
(p. 69) O Cientismo reduziu a filosofia à lógica, e esta transformou-se numa ciência exacta, na medida em que se limita a considerar sòmente fórmulas verbais ou algorítmicas. Quem se resignar a ficar no puro plano lógico, não ultrapassa as fórmulas e não precisa de lhes buscar um sentido: relaciona uma fórmula com outra, procurando simplesmente a sua coerência formal. Uma vez reduzida a filosofia à lógica, buscar a conciliação entre a ciência empírica e a lógica nominalista, entre os factos e so seus enunciados, o real e a linguagem, são problemas que não têm sentido.
Devemos, porém, notar que uma lógica ou matemática como ciência puramente formal é devida a uma abstracção pela qual se desprezou a significação dum sistema de símbolos e estes se tratam como números. Obtêm-se assim esquemas vazios, desnudados de sentido, sistemas meramente formais. Mas nenhum Cientista se resigna a ver nas teorias físicas sòmente fórmulas vazias. Às fórmulas vazias lógico-matemáticas é insuflado um conteúdo físico [isto é, os físicos têm a mania de ver as suas fórmulas teóricas como se fossem a realidade em si, e não modelos, aproximações], o que se opera pelos fundamentos da teoria. Estabelece-se dogmàticamente uma axiomática [sistema de valores, ou de juízos de valor] donde os primeiros símbolos tiram uma significação, e se depois de várias transformações, as novas fórmulas puderem ser postas em correspondência com proposições empíricas, a teoria lógico-matemática [abstracta] transforma-se em teoria física [material], verdadeira ou falsa segundo a axiomática fundamental for verdadeira ou falsa.
O logicismo matemático quando pretende apresentar-se como uma filosofia tem o defeito de desprezar uma parte importante e fundamental dos nossos conhecimentos, como os factos e os juízos imediatos, particulares ou gerais que eles nos impõem. O seu domínio é o aspecto geral e abstracto dos seres. Para um facto ser verdadeiro não basta que não contenha nenhuma contradição lógica. Isto é condição da sua possibilidade, mas condição parcial e insuficiente para a sua realidade. O Cientismo, tomando só em conta a matemática e as ciências físicas, deixa uma parte importante da ciência: a história e a moral. Todo o conhecimento atinge o ser com alguma determinação que pode ser sensível [apreendível com os sentidos] ou inteligível [apenas raciocinada com a mente].
A Física e a Matemática têm por objecto o ser determinado pelas faculdades sensitivas; o elemento sensível faz parte do conceito científico (físico e matemático), é, porém, extrínseco à noção de ser que depende ùnicamente da inteligência.
(p. 70) O saber humano alcança-se de três modos: conhecimento físico, matemático e metafísico [isto é Aristóteles ― Cassiano Abranches é um neo-escolástico da «Escola de Braga», v. HistPensFilPort Vol. V, Tomo 1.º ― só que Aristóteles dizia teológico em vez de metafísico]. Este conhecimento diferencia-se não pela diversidade do objecto mas pela diversidade no atingir o mesmo objecto. Compostos como somos de matéria e espírito [de certeza?!] somos capazes de um conhecimento sensitivo-racional. Pelo espírito atingimos imperfeitamente, mas realmente, o ser íntimo das coisas. Como composto uno temos um conhecimento sensitivo-racional, que participará da perfeição do conhecimento espiritual ou metafísico e da imperfeição do conhecimento sensível.
O conhecimento sensitivo-racional deixa em suspenso o sabermos se o objecto desse conhecimento é real e dele dá-nos sòmente um aspecto parcial. Não pertence ou seu domínio manifestar-se sobre a natureza da sucessão regular dos fenómenos. Sugier diz ao princípio do seu livro (pág. 13) Mécanisme et conscience: «O físico e o astrónomo não cuidam da realidade dos objectos que estudam. Podem alguns, ao serem interrogados, ter expendido a sua opinião sobre isso; mas essa opinião nunca interveio nas suas pesquisas meramente científicas e um físico monista utilizará sem hesitar as descobertas físicas feitas por um colega dualista».
Vimos como no conhecimento científico o sábio se esforçou na obtenção dum conhecimento o mais objectivo possível, como tentou desfazer-se da subjectividade sem o poder conseguir completamente. A ciência é um contínuo aprofundar de análises e reconstruir de sínteses cada vez mais perfeitas, que nos propõe problemas que a ciência por si só é incapaz de resolver.
Pede, portanto, um complemento de conhecimento que englobe e unifique tudo o que o saber humano tem conseguido. Só a metafísica, atingindo não o ser determinado sensìvelmente, mas o ser como ser em cuja ideia transcendental se vêm inscrever todos os conhecimentos sem a ultrapassar, é capaz de nos dar esse conhecimento. Todos so objectos possíveis são implícita e analògicamente conhecidos nesta ideia transcendental que faz a ligação entre o conhecido e o desconhecido e nos faz ultrapassar o conhecimento científico.
O conhecimento metafísico é, portanto, um conhecimento que progride passando de acto imperfeito a acto perfeito e não de potência a acto como o conhecimento científico, visto que a ideia de ser contém tudo implìcitamente. O conhecimento metafísico, contra o qual se insurgiu o positivismo científico [Comte, mas também os neopositivistas do círculo de Viena], que só queria admitir o seu modo de conhecer, viu erguer no seu próprio campo o obstáculo ao conhecimento objectivo, como já insinuámos atrás, isto é, a impossibilidade de eliminar no conhecimento toda a traça de subjectividade. A atomicidade da acção, o efeito Compton, as relações de indeterminação, elevaram a impossibilidade à honra de lei física, o que pôs os próprios cientistas na obrigação de imporem limites ao seu conhecimento.
Além dos limites impostos ao conhecimento científico, que estudámos atrás, há outra pergunta a que as ciências não dão solução. A ciência investiga porque é que este facto é, e é tal. Responde, porém, por outro facto cuja existência supõe. Mas o que seja a «existência», a ciência não o conhece nem pode conhecer. Dizer que esta pergunta não tem sentido, não é resposta e pelo menos deveria mostrar-se porque é que não tem sentido, sem fundar a resposta na afirmação dogmática e crìticamente insustentável, de que só o conhecimento científico é objectivo e verdadeiro.
Para saber o que é a existência, porque existem coisas em vez de não existir nada, e se a existência do que conhecemos tem a razão de ser em si ou noutro, é necessária outra ciência e outro método além das Ciências e dos seus métodos. Essa ciência, já o mostrámos, é a Filosofia ou Metafísica, que não deixa nada fora do seu âmbito, podendo assim fornecer às ciências os seus princípios e dar-lhes o valor ontológico que elas, por si só, nunca poderão obter; ainda que não dará às Ciências nenhum facto, nenhuma lei, nenhum resultado científico. As Ciências guardam a sua plena autonomia de métodos e procedimento. A Metafísica respeita todos os seus resultados, não renunciando, porém, a julgar a totalidade das Ciências quanto ao seu valor de realidade em si. Por outro lado as Ciências dão os factos à Filosofia, factos que ela não pode rejeitar porque enquadram no seu sistema, visto que a Filosofia ou Metafísica ser o conhecimento do real tal qual é em si, sem eliminar ou desprezar nana do que é real, aceitando tanto o aspecto individual, subjectivo e espiritual, de que as Ciências abstraem, como o geral, o objectivo e o material que as Ciências parcialmente guardam como objecto do seu estudo.