terça-feira, 25 de agosto de 2020

Cinco antigos momentos de ficção

1.
        O ventrículo esquerdo recusava-se a funcionar. Mas ela agarrava-se à vida sem saber bem porquê. Já tinha passado tanto tempo desde que tinha saído da barriga da mãe... Ela nem se lembrava de quanto tempo tinha passado! E o ventrículo esquerdo mantinha-se inconstante. Deixou de sentir as pernas. Também para quê agarrar-se à vida? Ela nem tinha gostado muito dela. Crescera, namorara, casara, tivera filhos e netos... e depois? O marido tinha sido um pândego, um imbecil cobarde que lhe fazia coisas quando chegava a casa bêbado, coisas em que ela não queria pensar... Já não sentia nada da barriga para baixo, as mãos estavam dormentes. Os filhos tinham sido trabalhos e preocupações, e no fim — porque houve um fim, muito antes deste que agora aí vem — no fim, os filhos abandonaram-na, foram viver longe, tornaram-se inalcançáveis por vontade própria... 
        O ventrículo ficou imóvel. O coração parou. Ouviu o aparelhómetro ali do hospital a dar um sinal e viu as enfermeiras a correr para ela, nem percebeu muito bem porquê. Os netos, ela nem os conhecia bem... Vinham visitá-la nas férias, alguns fins-de-semana por ano, mas depressa se aborreciam e escondiam-se por detrás dos jogos de vídeo e computadores e parafrenálias afins, para não ter de estar com ela nem sequer aqueles poucos dias. Deixou de sentir os braços, o pescoço. As enfermeiras mexiam nela, chamavam o nome dela; um médico apontava-lhe uma luz aos olhos. Os netos não estavam ali, ela sabia que não estavam. Nem os filhos. Deixou de sentir a nuca, depois os lábios, as pálpebras, a testa. Deixou de sentir-se. O esmorecido ventrículo levou a melhor. (A última coisa que ouviu foi um telemóvel.) 

        Lisboa, 14 de Julho de 2008 


2.
        Já era o segundo bolo que a Teolinda fazia naquela tarde. O primeiro saiu muito, muito mal (pelo menos é o que ela diz). Eu tinha chegado a casa com os pés encharcados da enxurrada que passava na estrada. Não que chovesse, não: era um cano roto que explodiu pela terceira vez esta semana. Fora isso, estava um calor insuportável na rua e eu cheguei corado, a transpirar, cansado.
— Deixa lá isso, para que é outro bolo? — disse eu. — Esse forno só está a deixar a cozinha mais quente do que já está!
A Teolinda sussurrou-me "é uma surpresa", mas não explicou mais nada e eu não perguntei mais nada — assumi que não era para mim e desinteressei-me da questão.
Bebi um meio copo de água e despejei o resto no vaso com uma dicotiledónea que estava sobre o peitoral da janela. Estava tão seca que parecia que alguém a tinha andado a regar com ácido... 
        Ali de cima via os paralelepípedos desarrumados do chão da praça e as pessoas tristes que passavam. Uma discussão entre marido e mulher, alheios a tudo, sozinhos no mundo deles, que devia estar cheio de arame farpado. O calceteiro fazia ronha, fumando encostado a um prédio decadente, quiçá a impedir que caísse... Mais ao longe, a ribeira do cano roto. Dei à planta mais um copo de água. E tudo isto via eu da janela, enquanto ouvia o ruído incessante do aparelho de ar condicionado mesmo por baixo dela. 
        — Já está — disse a Teolinda.
         O bolo? Que rápido.

        Lisboa, 14 de Julho de 2008


3.
        Está em frente ao roupeiro, olhando para a amálgama que lá está. Ele nunca percebeu nada daquilo de roupa, ela é que tratava disso. Só que ela já tinha saído... Ele tirou umas calças que supôs não seriam dela, uma camisa que ele desejava que não fosse dela (os botões são à esquerda ou à direita?) e uma camisola de malha que ele tinha a certeza que não era dela porque ela não usava camisolas de malha. Vestiu-se e olhou para um espelho da porta. Não viu nada de errado — nunca via, apesar de ela criticar tudo! Tirou da gaveta do fundo o Patek Philippe — esforçada prenda do pai que estava ao lado do velhinho Casio que foi o seu primeiro relógio, e uma nota de 10 euros do maço de reserva. Estava a chover e ele pensou que era boa ideia usar o guarda-chuva novo que a tia Eduarda lhe tinha dado no Natal, mas não valia a pena, o seu velho e torto guarda-chuva ainda havia de durar muito, não valia a pena estar a estragar outro.
Fechou as portas do roupeiro e ao fechar a última viu uma nesga do cofre antigo que ele nunca tinha conseguido abrir — e aquilo sempre o intrigou. O que estaria lá dentro? Mas fechou a porta totalmente e suspirou: já estava atrasado para o trabalho...

        Lisboa, 29 de Julho de 2008


4.
        Andy McTheach fazia-se passar por um turista como outro qualquer. Obrigava-se todos os dias a cumprimentar com a sua melhor Received Pronunciation, como um antigo locutor da BBC, o casal de australianos que estava hospedado naquele hotel. E como reparou que a maior parte dos turistas carregavam pequenos romances de bolso, deslocou-se à banca, retirou um livro ao calhas, olhou o preço sem piscar e depois de pagar foi sentar-se no lobby à espera do seu contacto português.
Folheou o livro. Não gostava nada de ler. Tinha-o feito para contentar a 1.ª mulher, Hannah, mas depois do divórcio depressa se deixou disso. A 2.ª mulher, Carlotta, também não gostara de ler, o que tinha sido um alívio. Ele só esperava que a sua noiva de agora também não gostasse. 
Mas fez um esforço, tinha de manter as aparências. Cruzou as pernas, acomodou-se no cadeirão de verga, tirou o chapéu Homburg e abriu o livro ao calhas. Leu o seguinte:
Chegou-se a ela, um centímetro de cada vez. Falava, mas não dizia nada. Ela estava calada, à espera. Quando as pontas dos narizes se tocaram ele parou de falar, chegou-se mais a ela e os lábios tocaram-se. Devagar, sentiu os lábios dela e deixou que ela sentisse os seus. O que aconteceu a seguir foi pura música.
Que ridículo! Estava ele a ler aquilo! Franziu os lábios com desdém. Apeteceu-lhe atirar o livro para longe. Os beijos não eram assim, ele nunca tinha demorado tanto tempo a beijar uma mulher. "Chegou-se a ela centímetro a centímetro". Pfui! Ele, Andrew Cuthbert McTheach, nunca esperava para sentir os lábios de uma  mulher, partia logo para a língua, abocanhava e chupava... Era assim que se beijava. "E o que aconteceu a seguir foi pura música". Ele nunca se preocupava com a música, quer estivesse a tocar ou não; eram só as carnes, o roçar, o esfregar, o apalpar, sexo duro e mais nada, não havia cá sentimentalismos! Ele, às suas companheiras (e eram muitas, mesmo depois de casado), nunca fizera nada mais do que sexo. Não se lembra de ter tocado ou beijado Hannah. Não se lembrava nem da textura da pele dela porque nunca esperou para a sentir...
Ouviu passos. Dirigiam-se para ele. O seu instinto pô-lo alerta. Era o seu contacto português, que lhe disse baixo:
— Do we have a deal?

        Lisboa, 31 de Julho de 2008


5.
        Josefina Ana, mulher dos seus sessenta e muitos, mal tratada pela vida mas desenvolta, tropeçou numa trouxa de roupa que trazia para lavar e foi de rebolão pelos degraus das Escadinhas de São Bernardo. Resultado: um ílio lascado, uma ulna partida, uma rótula deslocada e enésimos hematomas. Mas Josefina Ana não se apercebeu dos traumatismos. Não tinha vida para traumatismos. Levantou-se sem gemer, recolheu a roupa na trouxa, foi até aos tanques públicos e, apesar da anca inchada, do braço partido e da perna torta, lavou a roupa toda.
Na volta para casa, com as dores, desmaiou. A roupa lavada, que trazia à cabeça, espalhou-se pelo passeio sujo. Uns transeuntes ligaram para o 112 e lá foi Josefina Ana para o São José, onde o Doutor Miranda, grande clínico e muito perspicaz, fez o diagnóstico: um ílio lascado, uma ulna partida, uma rótula deslocada e enésimos hematomas. Mas Josefina Ana não compreendia: “Mas, ó Senhor Doutor... eu só caí das escadas!”

        Lisboa, 30 de Junho de 2009

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