Não foi só em Coimbra que apareceram colégios universitários, nem estas instituições começaram apenas no século XVI. Na verdade, após a fundação da Universidade em Lisboa (1290) apareceram nessa cidade estruturas semelhantes a colégios. A primeira, logo em 1291, consistia numa provisão para 6 escolares pobres estipulada por Dom Domingos Anes Jardo (12??-1293), 14.º bispo de Lisboa, a ter lugar no Hospital dos Santos Paulo, Elói e Clemente, em Alfama, que o mesmo bispo fundara. Não era um colégio independente, visto que estava inserido numa estrutura de assistência alargada (um hospital, à época, não servia apenas para tratar doentes, mas também para albergar, alimentar, e oferecer suporte espiritual cristão a quem de tal necessitasse [1]), mas tem as características dos colégios para escolares pobres que se fundaram mais tarde tanto em Lisboa como em Coimbra (por exemplo, o Colégio de São Pedro em Coimbra), isto é, rendimentos próprios deixados por um benemérito, um número definido de escolares e um programa minucioso quanto à rotina e ao que deveriam estudar. Neste caso, a provisão do bispo definia que 4 escolares estudassem as Artes (Gramática, Lógica e Filosofia Natural) e Medicina; e 1 escolar estudasse Teologia e 1 estudasse Direito (ou 2 Teologia). Naturalmente, os escolares eram clérigos ou preparavam-se para o ser. Não se sabe como se processou a assistência aos escolares quando a Universidade esteve em Coimbra entre 1308-1338 e 1354-1377, mas ainda há notícia desta provisão para escolares no dito hospital no ano de 1464.
Lisboa medieval vendo-se a cerca fernandina (1373-1375) [2].
Em data desconhecida mas certamente aquando do retorno da Universidade a Lisboa (1338), Mestre Pedro de Lisboa (1???-13??) estabeleceu uma provisão para escolares pobres em tudo semelhante à de Dom Domingos Anes Jardo. Estava anexa à capelania do altar de Santa Ana na Igreja de São Lourenço em Lisboa, mas creio que não se sabe onde os escolares colegiais tinham alojamento, se num hospital ou casa própria. Ainda há referências a este colégio em 1497, quando a dita capelania pede ao papa dispensa dos seus compromissos para com os escolares, coisa que já o hospital de Santo Elói tinha feito em relação ao seu colégio por várias vezes entre 1440 e 1448. Parece que as obrigações litúrgicas e o desvio de rendimentos para outros bolsos, assim como as frequentes mudanças da Universidade de Lisboa para Coimbra e vice-versa impediram os colégios de se imporem como estruturas universitárias fortes [3].
Em 1383, Dom Afonso Correia (13??-1397), 19.º bispo da Guarda, pediu autorização ao rei para aplicar algumas das rendas do seu bispado na criação de um colégio para 12 escolares pobres, incluindo um orçamento para a compra de livros. O rei Dom Fernando I, que se interessava genuìnamente pelos estudos [4], deu-lha em carta de 28 de Março desse ano, mas morreu em Outubro e, na crise dinástica que se seguiu, Dom Afonso Correia tomou o partido de Dona Beatriz, pelo que haveria de ser deposto do bispado da Guarda em 1384 e, após a batalha de Aljubarrota (14 de Agosto de 1385), de se retirar para Castela, onde foi bispo de Segóvia até à morte [5]. Tudo isto faz supor que Dom Afonso Correia nunca tenha chegado a implementar o seu colégio em Lisboa.
Em 1426, o infante Dom Pedro, 1.º duque de Coimbra, escreveu, de Bruges, uma carta ao seu irmão, o infante herdeiro Dom Duarte, na qual o aconselhava a criar um conjunto de colégios orbitando a Universidade, à semelhança do que acontecia em Paris e em Oxford (e também em Cambridge, Toulouse, Bologna, e Montpellier [6]). Esses colégios deveriam ser criados pela Universidade (nas 5 ou 6 igrejas que já lhe pertenciam), pelos bispos (para escolares das suas dioceses) e pelas ordens religiosas (menciona em particular os dominicanos, os agostinhos e os cistercienses). Ao todo queria Dom Pedro 10 ou mais colégios universitários, tanto para ricos como para pobres (mas os ricos pagariam a sua estadia do próprio bolso). Os escolares colegiais deveriam dormir cada um em sua cela, tomar as refeições todos juntos e respeitar uma clausura (isto é, que cumprissem horários rígidos, incluindo a proibição de sair à noite), tudo como se fazia nos mosteiros; deveriam ser regidos por um mestre e ter um capelão que lhes desse os sacramentos. Tudo isto teria o objectivo de produzir bons eclesiásticos "e asy creçerião os leterados e as sçiençias" [7]. Na prática, nem o rei Dom Duarte I (rei 1433-1438), nem o próprio Dom Pedro quando foi regente do reino (regente
de facto 1439-1448) implementaram quaisquer colégios universitários. Apesar disso, é interessante notar que Dom Pedro se interessou mesmo pelos estudos em Portugal, de tal maneira que fundou uma segunda Universidade em Coimbra em 1443, doando-lhe bens e rendimentos, mas esta não sobreviveu à morte do seu patrono em 1449 [8].
Infante Dom Pedro, 1.º duque de Coimbra, segundo uma interpretação possível dos painéis de Nuno Gonçalves (Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa).
Entretanto, em 1447 morreu o Doutor Diogo Afonso Mangancha, lente de Leis na Universidade, e no seu testamento de 9 de Dezembro encontraram-se instruções para a fundação de um colégio que albergasse 10 escolares pobres e 4 servidores, e cujo reitor deveria ficar sob a autoridade do reitor da Universidade. O reitor, tal como o escrivão, seria eleito entre os escolares. Mangancha deixava ao colégio casas da sua propriedade no centro de Lisboa, os seus próprios livros, rendimentos regulares, enfim, todos os seus bens e os da sua primeira mulher, Branca Anes. Os colegiais (com mais de 16 anos e já bacharéis em Artes ou já sacerdotes) seriam eleitos pela Universidade e pela viúva (Maria Dias, segunda mulher de Mangancha), sem interferência do rei [9]. As prerrogativas e a rotina dos colegiais estava também organizadas no testamento (que serviu de estatutos ao novo colégio): cada um tinha direito a duas refeições diárias, quarto individual ("câmara") apenas com uma cama e uma mesa, e deveriam celebrar missa em conjunto nos dias em que não houvesse aulas (em capela própria ou na igreja paroquial de São Jorge). As casas do colégio, para além dos dez quartos, deveriam ter uma sala-refeitório, cozinha, despensa, adega, celeiro e alojamento para os servidores (mordomo, comprador, cozinheiro e lavador); não teriam estrebaria: se necessidade houvesse, teriam de alugar uma estrebaria para pôr as montadas. É possível especular que os anteriormente mencionados colégios disporiam de uma logística muito semelhante a esta. O colégio do Doutor Mangancha funcionou entre Janeiro de 1448 e Julho de 1459, quando a Universidade anexou as casas por inactividade do colégio.
Finalmente, em 1517, o rei Dom Manuel I fundou um colégio no Convento de São Domingos, ao Rossio, para 14 frades dominicanos e 6 monges jerónimos que deveriam estudar as Artes e Teologia. Às suas custas, o rei mandou construir novas dependência no convento para o colégio e ainda lhe instituiu um subsídio anual de 130 mil reais, 20 moios de trigo e 20 pipas de vinho. Com a transferência da Universidade para Coimbra em 1537, o Colégio de São Tomás (ou Tomé, forma arcaica do nome; por estar próximo dos dominicanos, refere-se provàvelmente a São Tomás de Aquino, doutor da igreja, e não a São Tomé Dídimo, apóstolo) saiu de Lisboa e, após uma breve estada no Mosteiro de Santa Maria da Vitória da Batalha (de frades dominicanos) entre 1538 e os finais de 1539, estabeleceu-se também em Coimbra, só sendo extinto em 1834 aquando da supressão das ordens religiosas [10].
Reconstituição virtual 3D do Convento de São Domingos (à esquerda) e do Hospital Real de Todos-os-Santos (à direita), ao Rossio, como seriam entre o ano de 1504 e o grande incêndio de 1750 [11] (Museu da Cidade, Lisboa).
Lista conjectural de Colégios Universitários em Lisboa:
1291-1464 Colégio de Santo Elói (do bispo Jardo)
1338-1497 Colégio de Santa Ana (de Mestre Pedro)
1383-1384 Colégio planeado pelo bispo da Guarda
1426-1449 Colégios planeados pelo infante Dom Pedro
1448-1459 Colégio de São Jorge (do Doutor Mangancha)
1517-1538 Colégio de São Tomé (do rei Dom Manuel I)
Ao que se pode apurar por uma breve pesquisa na Internet, os colégios universitário em Lisboa não são coisa do passado. Hoje, para alojamento, alimentação e assistência a estudantes universitários (não estou aqui a falar de colégios no sentido usual de escola privada pré-universitária), existem o Colégio Universitário Pio XII, o Colégio Universitário Montes Claros, ambos ligados à Igreja Católica, e o Colégio Universitário da Cooperação, destinado a estudantes oriundos dos países africanos de língua oficial portuguesa, assim como várias residências universitárias.
Referências
[ ] Onde não haja indicação da referência, as informações foram tiradas do texto de Rui Lobo, As quatro sedes do estudo Geral de Lisboa (1290-1537), in António Nóvoa (dir.) e Hermenegildo Fernandes (coord.), A Universidade Medieval em Lisboa Séculos XIII-XVI, Lisboa: Universidade de Lisboa e Edições Tinta-da-china, 2013, pp. 267-304 (principalmente da secção "Os colégios", pp. 298-304).
[1] Nuno Moniz Pereira, A Assistência em Portugal na Idade Média, Lisboa: CTT Correios de Portugal, 2005, pp. 111 e ss.
[2] Imagem retirada de A. H. de Oliveira Marques, Iria Gonçalves e Amélia Aguiar Andrade, Atlas de Cidades Medievais Portuguesas, Lisboa: INIC, 1990, pp. 58-59. Disponível em RevelarLx.
[3] José Mattoso, A Universidade Portuguesa e as Universidades Europeias, p. 211, in José Mattoso, Naquele Tempo - Ensaios de História Medieval, Lisboa: Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2009, pp.193-212. Este ensaio foi anteriormente publicado em História da Universidade em Portugal, vol. I, tomo I, Coimbra: Universidade de Coimbra e Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 5-29.
[4] José Mattoso, O suporte social da universidade de Lisboa-Coimbra (1290-1537), pp. 386 e 395, in José Mattoso, Naquele Tempo - Ensaios de História Medieval, Lisboa: Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2009, pp. 383-407. Este ensaio foi anteriormente publicado em História da Universidade em Portugal, vol. I, tomo I, Coimbra: Universidade de Coimbra e Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 305-335; e parcialmente em Penélope. Fazer e desfazer a História, 13 (1994) pp. 23-35.
[5] Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 7, s/d, p. 744.
[6] José Mattoso, A Universidade Portuguesa..., p. 211.
[7] Citação de uma cópia da carta de Bruges; v. citação completa em Rui Lobo, As quatro sedes..., pp. 298-299.
[8] José Mattoso, O suporte social..., p. 390.
[9] Joaquim de Carvalho, Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI), Projecto joaquimdecarvalho.org vida e obra, p. 3.
[10] V. Colégios Universitários em Coimbra, neste mesmo blog.
[11] Mário Carmona, O Hospital Real de Todos os Santos da Cidade de Lisboa, Porto: Imprensa Portuguesa, 1956, pp. 250-255.