domingo, 14 de setembro de 2014

Infusões Simples 2

As primeiras Infusões Simples podem ser lidas aqui.


1
Nem queria acreditar no que se passava no bar! A gente tem uma percepção muito diferente das coisas quando está no quarto de trás. Os gritos que se ouviam, meu Deus! O cliente não ajudava nada e ainda era preciso trabalhar um bocado. Quando finalmente saí para o bar e vi os tremoços no chão é que percebi o que se passava: era o futebol. Tinha-me esquecido...

2
Em trinta e quatro horas, Ludovico Bórgia de Lençóis tinha conseguido chatear toda a gente num raio de 3 metros à sua volta. Como é que ele o conseguiu? Muito fácil: bastou-lhe demorar esse tempo todo a falecer.

3
Não era nada daquilo, mas ela teimava que era. Acabou por conseguir, mas não era nada daquilo. Quando se começa a fazer uma coisa, dizia ela, há que acabá-la, mesmo que não se acabe o que se começou. Ela lá saberia...

4
Era uma vez um gato maltês que falava piano e tocava francês. Mas o francês não gostava muito que lhe tocassem e zangava-se. O gato maltês teve de deixar de lhe tocar. Acabou por se mudar para Toulon, já que na Valetta não havia outros franceses que ele pudesse tocar.

5
Afastado do seu posto por razões técnicas, Patrício Vaz Hotte começou finalmente a trabalhar. O que ele fazia no posto era o que estava no contrato de trabalho; o que ele fez depois disso foi tudo o resto. 

6
Carlota da Maia não tinha nada a ver com a famosa família queiroziana. Porém, dizia a toda a gente que sim. As pessoas, então, esqueciam-se de que a tal família era ficcional e ofereciam-lhe as condolências. Ela aceitava e chamava-lhes estúpidos a meia voz. Este era o seu desporto favorito!

7
Jonas Sempiterno e Bonifácio Bonnemine, inseparáveis companheiros de cavalgada, encontravam-se raramente, nunca mais de duas vezes por ano, em média, e sempre por acaso. Na verdade, nem se conheciam. Porém, nós, que somos o narrador omnisciente, sabemos que todos os dias, nos últimos 20 anos, tomavam o mesmo metro para o trabalho. Nunca falharam, mesmo em carruagens separadas, era sempre a mesma composição, à mesma hora. Sempre a mesma cavalgada, sempre companheiros inseparáveis.

8
Era uma vez um QTL. Não era um QTL qualquer, pois designava uma base genética mendeliana. Então ninguém queria saber dele e preferia fazer cruzamentos para obter dados. Certo dia, o QTL fartou-se e fez as malas. Ficou em seu lugar uma mutação, um SNP, que alterou completamente o jogo. Passou-se a jogar xadrez em vez de damas.

9
Ricardo della Genga não fazia senão chorar. Todos os choros que ele chorava tinham uma origem ridícula e uma consequência previsível: chorava quando via o chão e depois alagava tudo para não ver o chão. O choro de della Genga era, no fundo, um mecanismo.

10
Todos os dias Claudiana e Sampaio iam às compras às 8h. Nunca compravam nada, evidentemente, mas sabia-lhes bem aquela vida de desconsumistas. Já os comerciantes os conheciam e perguntavam "Então não querem descomprar nada?", ao que eles respondiam "Queremos pois! O que é que tem hoje para desvender?" E voltavam todos os dias para casa descarregados de coisas que tinham descomprado. Eram indesfelizes assim.

11
Quatro mossas tinha o carro do Pascoal Tromet. O objectivo dele era chegar às doze, mas a mulher, uma robusta e headstrong Mrs Tromet, insistia para que ele levasse o carro ao bate-chapas. Ele bem tentava esconder as mossas, ou fazê-las onde não se vissem bem, mas ela acabava sempre por dar com elas. O máximo a que ele chegou foi sete mossas. Esperemos que algum dia ele consiga o seu objectivo.

12
Tito Teodoro Tremendo Taveira Truz foi reconhecido como o maior cavaleiro sem cavalo da história de Alcambra de Cima. A junta de Alcambra de Baixo tinha-lhe recusado o mesmo título porque Tito Teodoro Tremendo Taveira Truz era casado com uma senhora do Porto e o presidente da junta era benfiquista.

13
Cinco e meia da tarde e nem se ouvia fazer ruído. Podia-se pensar que era natural, mas não: era contestatário. Daí que toda a gente se tivésse posto a gritar em silêncio. Os protestos inaudíveis continuaram sem ser ouvidos pelo patronato, portanto tanto fazia gritar com som ou sem ele.

14
Paio d'Almendra comia paio de Almendra todos os dias ao jantar. Era para fazer publicidade a si próprio. Era pena que a audiência, o público alvo, fosse só ele próprio.

15
"Traste disfuncional" era o subtítulo de uma obra de Rui Pacheco Rui Paz, o conhecido artista plástico. Consistia numa velha chaleira de metal com um smartphone lá dentro (que não se via, então ninguém sabia que lá estava). Foi arrematada por meio milhão de libras na Christie's. O comprador, porém, acusou Rui Pacheco Rui Paz de fraude: o smartphone ainda funcionava (e, bem vistas as coisas, a chaleira também).

16
Henriquette du Belay-Farcie criava gatos. E vendia recheio para fora.

17
Agathe, Bernarda, Bernadette e Maria Carla eram as auto-proclamadas ABBA. OK, não era para ser a Maria Carla, mas a Ambrósia achou melhor ser comida de deuses olímpicos em vez de se prestar a chachadas.

18 Cinqüenta e duas vezes gritou "Ah e tal" e nada, ninguém o ouviu. No metro em hora de ponta as pessoas são realmente antissociais...

Tisanas Hatherlyanas 2

As primeiras Tisanas Hatherlyanas podem ser lidas aqui.


1
Olha ali! Não sabes para onde olhar, não é? Mas olha na mesma, que algo hás de ver que seja meritório de um "olha ali!" Nem tudo o que merece ser visto tem a boa sorte de ter quem diga "olha ali!" Nem estes "olha ali!" implicam que se olhe puramente com o olhar: o ouvido, o cheiro, o tocar também podem estar dentro de um "olha ali!" É preciso não simplificar. Olha ali agora! Mas olha ali!!!

2
Toque-toque-toque, lá ia ela. Tico-tico-tico, vinha de volta. Era um vai-e-vem de onomatopeias, aquela miúda!

3
Os famosos famélicos azafamados açambarcaram as açafatas com acessos de assédio sadio: sandes e açouguices sem sensaborias, se fazem favor! Azafamaram-se as açafatas assando salsichas e chouriços (num fogareiro churrasqueiro chamuscado de fuligem fulva) e ensanduichavam sandes com quantas carnes cabiam nas carcaças de côdea crespa que seguiriam sempre sucintas das açafatas açambarcadas para os já familiares famosos famélicos azafamados.

4
Quomodo vales? Pergunta fortemente romana, mas que de pouco serve hoje em dia porque pouca gente fala romano, quero dizer, latim.

5
Era uma vez um senhor de nome Barnabé Bastos do Bom Sucesso. Nada mais a dizer, esse senhor foi uma vez e pronto.

6
Listagem de coisas: uma torre de Londres em miniatura; um carro telecomandado velho e sem pilhas; um teclado cinzento dos anos 90; quatro pares de meias pretas; duas canecas partidas; uma cadeira e um banco; e o proverbial elefante do Mário-Henrique.

7
Três personagens inócuos:
Um. Waldeck Paulo-Pais dormia a sono solto quando acordou. Òbviamente: não podia estar a fazer outra coisa antes de acordar.
Dois. Godofredo Pasmo descascava cebolas como se disso dependesse a sua próxima refeição. E dependia mesmo...
Três. Almeida Simplesmente era um sujeito pacato. Porém, quando lhe subia a mostarda ao nariz ficava pior que uma noz moscada.

8
Copos de vidro serviam para estilhaçar, mas os de plástico para amachucar. Nem que se quisesse, nunca ninguém conseguiu estilhaçar um copo de plástico, nem amachucar um copo de vidro.

9
Não havia quem dissesse que ela não era uma senhora de bem. Não, não havia. O que havia era quem dissesse que ela era uma senhora de bem, ponto. A grande chatice é que ela era uma pessoa insuportável e ninguém parecia notar!

10
Nem João Tão sabia o que havia naquele livro, nem Carlota Tanta lhe podia desvendar que naquele livro não havia nada.