HISTÓRIA = diegese, ficção (conteúdo da narrativa)
3. O enredo
• Acções e acontecimentos, intriga
• Movimento, conflito e tensão
• Verosimilhança e causalidade
• Série natural e série dramática
• Estrutura...
O enredo/ argumento/ roteiro é o conjunto das acções e dos acontecimentos numa história, isto é, as acções que as personagens executam e os eventos que lhes acontecem. Na língua portuguesa usamos sempre este vocabulário têxtil, «enredo/ intriga/ trama/ fio», o «desenrolar» dos acontecimentos, «enlace e desenlace», que faz lembrar uma coisa tecida; “enreda-se o fio das histórias”, diz Almeida Garrett (Viagens na minha terra, cap. XXXII).
Seguindo uma classificação muitas vezes encontrada, há acções principais, as de maior importância ou relevo, e acções secundárias, cuja importância se define em relação às principais, das quais dependem (relatam acontecimentos de menor relevância ou menos importantes); a intriga será o conjunto das acções e dos acontecimentos que se sucedem segundo um princípio de causalidade, com vista a um desenlace [poderia ser entendida como o somatório de todas as acções] (Veríssimo et al. 1998, p. 26). Carlos Reis (1978, p. 75) designa por «acção» apenas as acções abertas (sem conclusão clara, com continuidade possível), sendo a «intriga» equivalente a uma acção fechada (onde os acontecimentos se sucedem por causalidade e acabam num acontecimento final sem continuidade possível — o desenlace).
Dito isto, eu observo que a palavra «intriga» se usa muitas vezes como sinónimo de «acção principal» ou mesmo de «enredo», enquanto que o conceito anglo-saxónico de «plot» é tanto traduzido por enredo, como por intriga sensu stricto (acção fechada). Também se encontra (até em especialistas, mesmo depois do Discours du récit de Genette) uma confusão entre o enredo da história e o discurso da narrativa, por exemplo: “O enredo (ou intriga, no sentido dos formalistas russos) não é a fábula [a história], mas a elaboração estética do que diz a fábula [a história]” (Mesquita 1987, p. 22) — ora, a elaboração estética da história é do domínio do discurso como expressão da história, como se viu atrás, e nada tem a ver com o enredo. A linguagem no domínio do enredo é bastante ambígua e, classificações teóricas à parte, eu, aqui neste texto, decidi usar as palavras «enredo, intriga, acções, plot» como sinónimos, significando o conjunto das acções e dos acontecimentos de uma história, como disse no início.
“A intriga [o enredo] repousa sobre a noção fundamental de movimento, de mudança a partir de uma dada situação e sob a influência de certas forças” (Bourneuf & Ouellet 1972, p. 52). Como se viu atrás, uma personagem tem um objectivo, que é qualquer coisa de crucial para si. O enredo será, acima de tudo, o confronto entre personagem e forças opositoras (outras personagens, o ambiente, luta psicológica, etc.), um conflito que dificulte que o objectivo seja atingido, prendendo a atenção das leitoras (que crie a expectativa sobre como é que o conflito será resolvido e o objectivo de personagem atingido). No final, terá de haver uma resolução satisfatória tanto para o universo da história como para as leitoras (Bell 2004, p. 33; Gancho 2006, p. 13; Assis Brasil 2019, p. 178).
São, portanto, factores externos contrários ao objectivo da personagem que potenciam o conflito do enredo (Assis Brasil 2019, p. 188). O conflito deriva da necessidade de uma escolha — mas a personagem tem de ser livre para escolher (Assis Brasil 2019, p. 173); e tem de fazer sentido com a biografia e a personalidade da personagem — “[ela] age de certo maneira em face de determinadas circunstâncias, de acordo com as suas emoções, contradições e perplexidades antes constituídas” (Assis Brasil 2019, p. 108).
O conflito “cresce durante a [história] e se acumula na interioridade [da] personagem — e, enquanto isso, nós, os leitores, por contágio, somos submetidos a uma tensão crescente” (Assis Brasil 2019, p. 180) que nos faz seguir adiante na leitura. “O conflito é da história, mas a tensão é do leitor (Assis Brasil 2019, p. 122)”. “A tensão aumenta se chegar uma personagem nova, se houver um acontecimento carregado de conseqüências, se houver a ameaça de um perigo ou um acto brutal; a tensão distende-se pelo escoar de um lapso de tempo vazio ou pela intervenção de factores que regulem o conflito” (Bourneuf & Ouellet 1972, p. 52).
Não esquecer que as personagens secundárias também têm questões essenciais e conflitos, mas estes não precisam de ser desenvolvidos nem resolvidos no final (Assis Brasil 2019, p. 167). “Quanto maior o número de personagens que tenham sua intimidade revelada, mais fraco se torna o conflito” (Assis Brasil 2019, p. 252).
A verosimilhança é o que torna o enredo convincente, verdadeiro para o leitor; não tem de ser a verdade, mas sim a ilusão da verdade, isto é, coisas que o leitor acredita que poderiam ser verdade (Gancho 2006, p. 12); é a famosa «willing suspension of disbelief» de Samuel Taylor Coleridge (Biographia Literaria, published in 1817, Chapter XIV). Um excelente exemplo de Luiz Antonio de Assis Brasil (2019, p. 185): “Se [a] personagem morre de tuberculose pulmonar no 10.º capítulo, deve ter tossido um pouco no 4.º capítulo, ter baixado no hospital no 7.º, até morrer naturalmente no 10.º. Isso é que convence o leitor.” Bell (2004, pp. 215-216) também diz que, se se vai usar uma arma no 3.º acto, é bom que esteja uma à mão no 1.º (isto é o contrário do velho plot device «Tchekhov’s gun», que diz que se uma arma está presente no 1.º acto, tem absolutamente de ser usada no 3.º).
“Levando às últimas conseqüências essa idéia, se o romancista fantasia uma história transcorrida no século XVIII, estará fugindo à «verdade» da obra se, de repente, a personagem se move de um ponto a outro de automóvel ou de avião. Todavia, se tudo o mais da narrativa seguir na mesma trilha de absurdo ou de inverossimilhança (em relação com o mundo real), a obra será perfeitamente verossímil: verossimilmente inverossímil, dir-se-ia.” (Moisés 1969, Análise, p. 91)
A causalidade é o que torna a organização lógica do enredo credível: cada acontecimento ou acção tem de ter uma causa e tem de desencadear uma conseqüência. Apesar de Rimmon (2002, p. 20) dizer que nem sempre é preciso causalidade para fazer um enredo, na prática qualquer leitor poderá notar que nas boas histórias “não há evento sem motivo que o provoque (causa e efeito)” (Assis Brasil 2019, p. 175). Organização das acções para formar uma história (Reuter 1997, p. 31):
1. A acção A é a causa da acção B [relação lógica];
2. A acção A precede a acção B [relação cronológica];
3. A acção A é mais importante do que a acção B [relação hierárquica].
Na prática, o enredo de uma história envolve dois tipos de acções ou acontecimentos a que Knight (1981, pp. 90-91) chama de série natural e de série dramática. A primeira é composta por coisas como acordar e levantar-se de manhã, tomar o pequeno-almoço («dejuar», como diz Carlos de Oliveira em Casa na Duna), ir trabalhar, conversar com amigos, falar ao telefone, ver o correio, fazer compras, etc., isto é, coisas que expandem, amplificam, mantém ou retardam o enredo.
A segunda é composta apenas e só pelas acções ou acontecimentos que formam uma série conexa e com sentido, isto é, aqueles que avançam o enredo oferecendo uma alternativa (Rimmon 2002, p. 17). Se um telefone toca, uma personagem pode atender ou não: existe uma alternativa! Mas se, entre o telefone tocar e o ela atender (ou a decisão de não atender), a personagem coçar a cabeça, acender um cigarro, disser asneiras, etc., estas acções não oferecem alternativas, são naturais, apenas acompanham o acontecimento dramático dando-lhe suporte, ênfase.
Acções ou acontecimentos naturais são necessários para criar uma ilusão da realidade e para fazer a ponte entre duas acções ou acontecimentos dramáticos. Acções ou acontecimentos dramáticos devem ser plausíveis (verosimilhança); as normais não ― a história pode ser baseada num incidente real e ser implausível mesmo assim. Coincidências fazem parte da série natural, não da série dramática (causalidade).
Os teóricos chamam aos acontecimentos dramáticos «núcleos» (kernels) e aos normais «catalisadores» (Barthes 1966, pp. 9-10; Chatman 1969, pp. 3 e 14-19; Chatman 1978 chama aos segundos «satélites»; in Rimmon 2002, p. 17). Também fàcilmente se vê que as acções naturais são as secundárias e as dramáticas as principais, portanto não sei se estes conceitos teóricos terão muita utilidade prática: uma vez entendida a diferença, qualquer nomenclatura serve.
• Esquema mínimo: exposição, complicação, clímax, desfecho
• Pirâmide de Freytag, arco narrativo, estrutura em três actos
• «Jornada do herói»: distúrbio e pontos de viragem
• Enredos paralelos, subenredos, tipologias
• Episódios, intensidade dramática
• Enredos básicos, expedientes dramáticos
A estrutura do enredo é a organização («the orderly arrangement») das etapas [episódios] da história (Bell 2004, p. 22), a distribuição dos episódios segundo o fio de uma intriga (Bourneuf & Ouellet 1978, p. 99). [Ainda que Timbal-Duclaux (1994, p. 69) diga que a estrutura não é a intriga/enredo, e que é preciso distinguir entre as peripécias e a estrutura subjacente que as sustém, na prática o enredo tem de ter uma estrutura, ponto final.] C. S. Lewis disse: “Whatever in a work of art is not used, is doing harm”; conseqüentemente, “anything that is used, anything that connects two or more parts of a story, strengthens it” (citado por Knight 1981, p. 87). Isto liga-se bem com a verosimilhança que se viu atrás, mas, mais uma vez, lembro que é preciso não confundir o enredo da história com o discurso da narrativa.
Qualquer enredo tem de ter princípio, meio e fim, com um ponto culminante perto do final. Há quem diga que o melhor é esquecer esta tríade; eu, pelo contrário, acho que é uma excelente base para estruturar qualquer coisa, incluindo um enredo. Os momentos de um esquema mínimo para um enredo são, portanto (Gancho 2006, pp. 13-15; Moreira & Pimenta 1999, p. 315):
1. exposição (princípio, situação inicial, apresentação), apresentação da situação inicial, das personagens e suas intenções, do ambiente e obstáculos; situa o leitor perante a história que vai ler; freqüentemente, mas não sempre, aparece no começo da narrativa.
2. complicação (meio, peripécias, desenvolvimento), desenvolvimento do(s) conflito(s) geralmente num crescendo até ao clímax; corresponde ao grosso do enredo, à maior parte da história.
3. clímax (ponto culminante), momento culminante do enredo da história, momento em que o(s) conflito(s) atinge(m) o ponto de maior tensão; as outras partes da estrutura convergem para ou divergem do clímax.
4. desfecho (fim, desenlace, dénouement), resolução do(s) conflito(s), final feliz ou infeliz, esperado ou surpreendente, cómico ou trágico, etc.
Exemplo (conto ‘Um homem de consciência’ de Monteiro Lobato, em Cidades Mortas):
• exposição ― 1.º parágrafo
• desenvolvimento ― do 2.º ao 13.º parágrafos
\ complicação ― 7.º e 8.º parágrafos
\ clímax ― 9.º parágrafo
• desfecho ― 14.º parágrafo
[Nota: os parágrafos 2-6 e 10-13 são passagens.]
O esquema canónico da «narrativa mínima» (v. Reuter 1997, pp. 36-37; também DR p.75 e NDR p. 14) será este: Estado inicial (equilíbrio) > Complicação (força perturbadora) > Encadeamento de acções (desequilíbrio) > Resolução (força equilibradora) > Estado final (reequilíbrio). É Tzvetan Todorov que prefere equilíbrio > desequilíbrio > reequilíbrio. Este esquema também é chamado de pirâmide dramática ou de Freytag e é apenas uma base que será manipulada de muitas maneiras pelo discurso para obter certos efeitos no leitor.
Expandindo o esquema mínimo, chega-se ao arco narrativo (v. João Tordo 2020, pp. 89-99, onde ele parte de Aristóteles e Freytag para o explicar, usando O Homem Duplicado de Saramago e O Velho e o Mar de Hemingway para exemplificar): Exposição (situação inicial) > incidente ou distúrbio > húbris (audácia, atrevimento) do protagonista > sucessivas complicações e pontos de viragem > peripécia (revés da fortuna do protagonista) > o enredo suscita no leitor piedade (pela situação difícil do protagonista) e medo (de que o protagonista não consiga aquilo que quer) > empatia (o leitor alinha-se com o protagonista) > clímax > catarse (purga do medo e da piedade) > desfecho («novo normal»).
Organizando as partes do arco, temos a estrutura em três actos, com origem no teatro e muito usada no cinema (Bell 2004, p. 32), que apresento aqui segundo o esquema já clássico da «jornada do herói» (The Hero’s Journey, do livro The Hero with a Thousand Faces de Joseph Campbell, 1949, onde este académico disserta sobre o arquétipo do herói, que ele encontrou aquando dos seus trabalhos de mitologia comparada nos mitos de diversas sociedades):
(Bell 2004, pp. 23 e 26)
Acto I. A personagem-heroína é confrontada com um problema, ao qual reage.
[ 1 ] A personagem-heroína e o seu mundo são apresentados aos leitores [exposição].
[ 2 ] Um distúrbio interrompe o mundo da personagem-heroína.
[ 3 ] A personagem-heroína é livre para escolher e pode ignorar esse distúrbio.
[ 4 ] A personagem-heroína não ignora o distúrbio e «atravessa o limiar» (1.º ponto de viragem) para um mundo desconhecido.
Act II. A personagem-heroína passa a maior parte do tempo em busca de uma solução para o problema e a tentar resolvê-lo.
[ 5 ] Um mentor/orientador pode aparecer para ensinar a personagem-heroína.
[ 6 ] Ocorrem vários encontros com forças adversas [complicações].
[ 7 ] A personagem-heroína tem um momento de negação e problemas de consciência que deve ultrapassar.
[ 8 ] É encontrado um talismã que vai ajudar na solução do problema (2.º ponto de viragem).
Acto III. A personagem-heroína consegue, finalmente, resolver o problema.
[ 9 ] A última batalha [clímax].
[10] A personagem-heroína regressa ao seu mundo [desenlace].
O distúrbio ou incidente faz o leitor ficar interessado porque é uma promessa implícita de que a história vai ser interessante. Não é ainda a intriga principal porque não há conflito. Exemplos de distúrbios:
• Um telefonema a meio da noite;
• Uma carta com notícias inesperadas;
• A chefe chama a personagem ao seu gabinete;
• Uma criança é levada para o hospital;
• Um carro avaria no meio duma cidade estranha;
• A personagem-heroína ganha a lotaria;
• Uma personagem testemunha um acidente ou um crime;
• Uma nota da mulher da personagem-heroína...
Os pontos de viragem (ou de virada/ de inflexão/ de transição) são as transições entre os actos, os acontecimentos que forçam a personagem-heroína a agir de maneira diferente. “Somos criaturas de hábitos; procuramos segurança. (...) A não ser que haja alguma coisa que empurre a personagem-heroína para o acto II, ela vai ficar alegremente no acto I! Ela deseja permanecer no seu mundo normal.” (Bell 2004, p. 28) O 1.º ponto de viragem é a transição entre o Acto I e o Acto II; tem de haver um momento em que personagem-heroína seja empurrada para o conflito sem escapatória possível; não poderá haver retorno ao normal, ao que era antes deste momento ― se ainda for possível regressar, não é o ponto de viragem. O 2.º ponto de viragem é a transição entre o Acto II e o Acto III; algo tem de acontecer para desencadear o confronto final — uma pista ou uma descoberta. A diferença entre um distúrbio e um ponto de viragem é que um distúrbio não leva necessàriamente a um confronto, enquanto que um ponto de viragem leva ao conflito e a personagem-heroína não pode voltar atrás.
Acto I. O mundo normal da personagem-heroína, um lugar seguro e sossegado. Pode ter problemas, mas não dos que trazem grandes mudanças. A personagem está ali bem. Alguma coisa tem de acontecer para a empurrar para o conflito.
> 1.º ponto de viragem
Acto II. O mundo exterior, o desconhecido, um lugar onde a personagem-heroína vai ter de buscar coragem, de aprender coisas novas, de fazer aliados, etc. A personagem-heroína defronta-se com obstáculos e adversidades. O acto II pode continuar indefinidamente a não ser que algo aconteça para abrir a porta para o clímax.
> 2.º ponto de viragem
Acto III. Deste lado, a personagem-heroína tem de juntar as suas forças para a «batalha final» ou «escolha final» que vai resolver o problema para a história acabar.
(Bell 2004, pp. 29 e 31)
Fàcilmente se vê que o esquema mínimo, a pirâmide de Freytag, o arco narrativo, a estrutura em três actos, etc., são tudo a mesma coisa, expansões ou variações da simples estrutura em princípio, meio e fim, com ênfase nos pontos de transição entre eles e no ponto culminante. “Mastering structure and transitions will make your novels more accessible even if you choose to deviate from a linear unfolding” (Bell 2004, p. 33).
A partir daqui, pode-se aumentar a complexidade da história adicionando enredos paralelos (duas ou mais personagens principais), subenredos (vários conflitos), símbolos e motivos (ligados ao tema, como se viu atrás), ou jogando com tipologias reconhecíveis (histórias de aventura, amor, vingança, demanda, perseguição, poder, alegoria, um-contra-todos, policial, thriller, ficção científica e fantasia, etc.) com estruturas que se podem «roubar» das grandes obras da literatura universal (Bell 2004, pp. 130s e 180s): ir buscar ao mitos greco-romanos e à Bíblia, reescrever a mesma história mas com um ponto de arranque diferente, ou uma circunstância diferente (Carvalho, p. 107).
“Eis um esquema narrativo muito banal, que, consoante a colocação do «acento», pode dar um a) enigma policial, b) um folhetim sentimental, c) uns sonhos para os nostálgicos do exotismo, d) uma meditação sobre a morte e o destino, e) uma reconstituição histórica, ou f) um retracto da sociedade: 1) um marinheiro, 2) a mulher que ele ama, 3) rivais. São, no fundo, os elementos da Odisseia, que se prestam a inúmeras variações.” (Bourneuf & Ouellet 1978, p. 36)
Podem chamar-se episódios às etapas ou partes do enredo (James Scott Bell 2004, pp. 113s, chama-lhes «scenes», mas aqui eu vou reservar a palavra «cena» para uma figura do discurso, como se verá na postagem DISCURSO I). Os episódios ilustram e dramatizam os conflitos interiores e/ou exteriores das personagens, que um bom enredo explorará. Bell (2004, pp. 115-119) considera que cada episódio se desenvolve pelo contraste acção/reacção: uma personagem age para tentar atingir o seu objectivo, mas é frustrada pelo conflito e reage a este desenvolvimento (toma outra decisão, age de outra maneira, etc.). A acção da personagem é comummente ilustrada por cenas dialogadas, enquanto a sua reacção pode conter pausas descritivas ou reflexivas; a leitora deve ficar presa no início do episódio, ir sentindo a tensão crescente e, no fim do episódio, querer continuar a ler o que se segue. Tudo isto tem de ser suportado por um bom enquadramento nas circunstâncias.
Pode-se visualizar a tensão criada na leitora usando um gráfico do agravamento do conflito ou da intensidade dramática (medida qualitativamente) ao longo do tempo da história (Knight 1981, pp. 87-90; esquemas adaptados de Timbal-Duclaux 1994, p. 71). Uma boa estrutura (esquema 1) é a que mantém a leitora atenta até ao fim, num crescendo de tensão, o que se consegue com episódios sucessivos de crescente intensidade dramática até ao clímax.
Esquema 1. Boa estrutura do enredo.
Uma má estrutura (esquema 2) é aquela que cai num «buraco» de intensidade dramática «abaixo de zero» (ponto B). A autora não terá interesse em seguir o tempo da história (v. postagem DISCURSO I), mas em começar o discurso da narrativa no ponto C e só depois evocar o ponto A em analepse (e apenas se for estritamente necessário para se compreender a história), na ordem C>A>D ou C>D>A. O episódio B, sem interesse dramático, será mencionado nalgumas rápidas linhas de resumo ou suprimido de todo.
Esquema 2. Má estrutura do enredo.
Vários teóricos se debruçaram sobre se existem enredos básicos, isto é, se se consegue categorizar todos os enredos jamais concebidos literàriamente em estruturas reconhecíveis. Para além da «jornada do herói», e com critérios nem sempre muito claros, eis os resultados:
• os três padrões básicos de William Foster-Harris (enredo cómico [happy ending], enredo trágico [unhappy ending] e enredo complexo [literary plot, isto é, todos os outros...]; em The Basic Patterns of Plot, 1959);
• os sete (na verdade nove) enredos básicos de Christopher Booker (The Seven Basic Plots, 2004);
• os vinte enredos básicos de Ronald B. Tobias (20 Master Plots, 1993);
• as trinta e seis situações dramáticas de Georges Polti (Les 36 situations dramatiques, 1895), que disse que fôra influenciado por Carlo Gozzi e Johann Wolfgang von Goethe.
Estruturas mais — ou mesmo muito mais — complexas existem, como, por exemplo, a formalização do enredo dos contos de fadas por Propp, em 31 funções (!) difíceis de aplicar a outras narrativas para além das que ele estudou; ou as teorias de Hamon, Greimas ou van Dijk (v. Reis & Lopes 1987).
Para construir o enredo, fazer bem as transições e criar tensão, existem expedientes dramáticos que eu aqui classifico empìricamente em dois tipos, um helénico, outro anglo-saxónico: topoi e plot devices. Um topos (do grego antigo τόπος κοινός, tópos koinós, «lugar comum»; ou em latim locus communis) é um tema recorrente, uma fórmula literária usada já desde o teatro antigo e a retórica clássica (originalmente um argumento retórico), e fàcilmente reconhecível para ajudar o enredo. Eis alguns dos topoi literários mais conhecidos e mais encontrados em diferentes épocas, culturas e literaturas:
1. A profecia e a profecia autocumprida.
2. A descida aos infernos ou catábase.
3. O dilúvio (desde a epopeia de Gilgamesh).
4. O elixir da eterna juventude.
5. O idílio.
6. O impulso da morte, o amor como morte (Eros e Tanatos).
7. O jardim fechado (hortus conclusus) ou aberto.
8. O locus amœnus (o mundo imaginário da Arcádia).
9. O locus horridus (o inferno de Dante).
10. O manuscrito encontrado (Il nome della rosa).
11. O mundo ao contrário.
12. A viagem de retorno à pátria (Odisseia).
13. A anagnórise: revelação final do parentesco entre personagens (Œdipus Rex, ou Darth Vader e Luke Skywalker).
14. A fórmula de modéstia (captatio benevolentiæ).
15. A idade de ouro.
16. A invocação dos deuses ou das musas.
17. A ilha (como espaço representativo do paraíso terrestre).
18. A noite perigosa.
19. O filho pródigo
20. Os mitos da criação.
21. O destino inexorável.
22. A cena do primeiro encontro amoroso.
23. A declaração de amor (num conto).
24. A narrativa do nascimento (numa autobiografia).
25. O triângulo amoroso.
26. A demanda (the quest).
27. O disfarce, a falsa morte, o falso fim.
Com os grandes romancistas do século XIX e, penso eu, com o aparecimento do cinema, novos topoi foram surgindo para suprir às novas necessidades dramáticas. São mais conhecidos pela expressão inglesa plot devices (ou plot twists), de difícil tradução. “A plot device is a storytelling tool or technique that is used to propel a narrative, used to move the plot forward. A well-written plot device can be deeply satisfying to a reader or audience member. Keep in mind that a plot device does not need to be complicated. A skilled novelist or screenwriter does not select a plot device based on its complexity; they select it based on its storytelling potential.”
Eis alguns dos plot devices mais usados, principalmente nos enredos de acção (thrillers); mantenho quase todas as designações originais em grego, latim ou inglês, quer por não encontrar tradução satisfatória para umas, quer por encontrar outras usadas sempre nessas línguas; os grupos são quási-aleatórios, mas o primeiro grupo leva os mais curiosos ou sui generis:
• Cliffhanger; Death trap; Deus ex machina; Doppelganger, or twin; MacGuffin; Plot voucher; Quibble; Red herring; Tchekhov’s gun;
• Antropomorfismo; Contraponto dramático; Falácia patética; Hamartia, ou falha trágica; Realismo mágico; Pastiche; Personagem morre no início; Projecção psicológica;
• Audience surrogate; Author surrogate; Breaking the fourth wall (caso particular de metalepse); Defamiliarization; Distancing effect; Dramatic visualization; Eucatastrophe; Foreshadowing; Framing device; Multiperspectivity;
• Bathos; Narrative hook; Non sequitur; Pathos; Plot twist; Thematic patterning; Poetic justice; Predestination paradox; Ticking time bomb, or race against time; Unreliable narrator.
Há ainda certas técnicas que são freqüentemente usadas, por exemplo, a das telenovelas (história infinita, parece que nunca acaba porque há sempre lugar para novos episódios) ou o chamado «começar no 2.º capítulo» (porque o 1.º costuma ser cheio de descrição e a acção só começa realmente no 2.º). Como regra técnica, é sempre bom antecipar o que lògicamente uma personagem poderá fazer a seguir, e pô-la a fazer o contrário — o inesperado!
2 comentários:
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