quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Abranches: «Valor de conhecimento das ciências»

Cassiano Abranches foi um filósofo neo-escolástico, tomista, professor universitário em Braga, que coligiu parte dos seus artigos sobre metafísica num único volume (ver Lúcio Craveiro da Silva, in Calafate, dir., 2000, História do Pensamento Filosófico Português, Vol. V, Tomo 1, p. 333). Nos primeiros dois capítulos desse livro discorre sobre o conhecimento científico, do qual faz uma descrição muito sucinta mas claríssima, para depois ende apontar erros, falhas, problemas, algumas soluções ― um tema de epistemologia que parece longe da metafísica, mas há quem ponha a epistemologia dentro da metafísica, junto com a ontologia (certamente no tempo de Abranches, ver a entrada «metafísica» na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira).

Recentemente, tive razões para digitar/dactilografar o segundo capítulo do livro Metafísica de Cassiano Abranches, e pensei que, «já que tive esse trabalho, se calhar, se o puser no blogue, vai ser útil a mais alguém». Portanto, aqui fica. As anotações (cores, negritos, etc.) são minhas ― achei que valia a pena mantê-las, porque o texto corrido fica um bocado seco. A azul, entre parênteses rectos, vão comentários meus. 

Cassiano dos Santos Abranches, S.J. (1956) Metafísica. Publicações da Faculdade de Filosofia de Braga.


Capítulo II. Valor de conhecimento das ciências

            As Ciências da natureza impuseram-se sempre como conhecimentos exactos donde lhes deriva o nome de ciências exactas.

            Qual é, porém, a exactidão deste conhecimento? Ou melhor, qual é o conhecimento do real que elas nos fornecem? Houve tempo em que se pensou, visto o adianto destas ciências, que elas nos abririam o enigma do real. Hoje, desfez-se essa miragem.

            Investiguemos, portanto, a exactidão do conhecimento científico e o seu progressoAs ciências são o conhecimento racional que interpreta os dados dos sentidos. Ora os últimos elementos dos corpos já não ferem os nossos sentidos e pràticamente são inexistentes para eles. O próprio de cada um destes últimos elementos, a sua individualidade, escapa-nos ainda mais; com efeito, a individualidade, que tomava grande preponderância no homem por causa da sua liberdade, diminui nos animais que guardam ainda uma grande espontaneidade, restringe-se mais nas plantas, desaparece nos minerais onde se torna quase nula, por nos parecerem duma igualdade perfeita podendo substituir-se uns aos outros sem inconveniente, e desaparece completamente para o cientista nos últimos elementos, que os reputa iguais ainda que na realidade difiram e guardem a sua individualidade própria.

            exactidão dos conhecimentos científicos repousa, portanto, sobre os limites da nossa observação e a fraca intensidade individual dos elementos materiais. Daqui resulta que a proclamada exactidão das ciências exactas é em si inexistente.

            Os últimos elementos, sejam eles quais forem, protões ou electrões, guardam a sua individualidade e legalidade individual própria. Sob as mesma causas dois electrões não farão movimentos idênticos, mas a sua diferença é tão mínima que os nossos aparelhos são incapazes de a notar. São tão insignificantes esses desvios que podemos estabelecer leis gerais.

            O progresso nas várias Ciências é devido ao métodod especial aplicado a cada uma delas. As ciências em lugar de progredirem por generalização crescente e em profundidade com sínteses cada vez mais ricas, desenvolvem-se mercê de análises mais exactas, que se aproximam cada vez mais da realidade, ficando, porém, sempre no plano geral. Cada nova análise, cada nova aproximação da realidade invalida as antecedentes no campo da ciência pura [portanto, Abranches conhecia o trabalho de Popper, que ainda não tinha sido decentemente desafiado por Kuhn e Lakatos].

            O método científico utilizado na física é a indução, que vai do caso particular, não sòmente à colecção dos casos observados, mas ao geral.

Aristóteles conheceu já este processo (An. Pr. II, 23; 68 b. 13 n. 1) que é diferente da indução científica actual.

indução aristotélica é a indução completa em que se estudam todos os casos possíveis e se conclui, portanto, em geral. Assim posso dizer em virtude desta indução que uma linha baixada dentro do ângulo oposto à base dum triângulo corta sempre esta última. Pois fazendo coincidir a linha com um dos lados e varrendo em seguida com ela toda a área do triângulo até a fazer coincidir com o outro lado fizemos todos os casos possíveis da posição dessa linha e examinámos que em todos os casos corta a base. Esta indução não é desprovida de valor e é de uso corrente em matemática, mas na verdade é de pouca utilidade e não é uma «Indução» no sentido que hoje damos a essa palavra. A indução científica moderna conclui da análise de um ou vários casos, à generalidade.

Em física não podemos nunca perfazer a experiência; embora pudéssemos ter o conhecimento de todos os casos passado e presentes, ficavam sempre os casos futuros por conhecer. Ora são precisamente estes últimos que mais interessam ao homem de ciência. O processo usado será pois uma indução incompleta. Da observação de alguns casos tirar a lei de todos os casos possíveis.

Que vale esta indução?

Kant na Crítica da razão pura procurou justificar este processo e achar uma teoria da realidade em função deste modo de conhecimento. A necessidade e generalidade das leis científicas é devida ao conhecimento humano que aplica as formas ao dado desconhecido em si.

Outros fixando-se na evolução das teorias científicas dizem que são meras definições e convenções úteis na prática.

Outros ainda apelam para a uniformidade da natureza afirmada dogmàticamente.

Estas explicações não são aceitáveis, e ainda que dêem alguma explicação da indução incompleta não nos fornecem as suas verdadeiras bases filosóficas.

São demasiado conhecidas as leis da indução estabelecidas por J. Stuart Mill e que nos mostram como o método científico de indução se funda não só na experiência mas na experimentação. Chamo experimentação ao poder de repetir o caso observado, repetição que todos podem provocar se dispuserem dos instrumentos requeridos para a fazerem.

(p. 54) Cada experiência, ainda que procuremos que se repita em circunstâncias semelhantes à primeira, guarda a sua individualidade, visto que o concreto nunca se repete [será? Isto sim é uma afirmação metafísica].

As várias experiências não serão por isso completamente idênticas, absolutamente iguais sob todos os pontos de vista. Além disso a experimentação estuda não só os casos repetidos em circunstâncias o mais possível iguais, mas em circunstâncias variadas e isso com o fim de eliminar tudo o que não pertença com segurança ao caso a estudar.

O cientista retém simplesmente o que há de comum e de geral em todos os casos, deixando cair o que há de individual e próprio em cada umNão admira pois, que este método nos forneça regras gerais e leis da natureza. Mercê da análise feita, graças à experimentação, o cientista dividiu e decompôs as várias causas que influíam no efeito e isolou-as quanto possível, para ver o que cada uma delas operava regular, constante e necessàriamente.

Retendo, portanto, o geral, o cientista formulou as leis. Ora o próprio nome de lei nos está a indicar que o estudo da natureza foi feito por uma analogia com as leis humanas [sim, em tempos romanos, com Séneca e Plínio, por analogia com a lex romana codificada; mas em tempos modernos provàvelmente antes com as leis divinas, que era suposto existirem na natureza, já que foi Descartes  o teólogo Descartes  e depois Newton  o místico Newton  que foram buscar a palavra lei para designar as regularidades naturais, https://en.wikipedia.org/wiki/Scientific_law]. Estas são antecedentes à ordem a introduzir, à regularidade de comportamento a exigir dos súbditos da lei. A lei [humana, o direito] explica os factos.

As leis da natureza, ao contrário, são posteriores à ordem e à regularidade notadas, não passam de fórmulas breves em que se exprime a regularidade dos factos. Os corpos não chocam porque há uma lei de choque, mas há esta lei porque os corpos chocam.

            Por meio da experimentação e usando as leis da indução conhecemos as relações regulares e constantes entre certos elementos ou grupos de elementos, de tal modo que a presença de um condiciona a presença de outro. Ora isto torna-nos aptos a prever os factos que se vão seguir, a prever o futuro.

            Em que se funda a regularidade e necessidade dessas relações pelas quais podemos assim esperar o facto futuro?

             O método científico isolou primeiro uma série de erro que eram as apreciações subjectivas de cada cientista. Nas apreciações dos dados positivos da ciência desapareceu toda a emotividade, toda a relação ao sentimento, para se atender sòmente ao significado lógico e formal do facto. O facto real, concreto empobreceu-se de tudo o que o constituía como único na primeira experiência. Entrou em jogo a abstracção desde o primeiro momento, pela qual se prescindiu do que era individual para guardar simplesmente o que era comum e geral, e isso com tanto maior facilidade quanto a individualidade era menos acentuada. Ora a individualidade dos seres enfraquece e é mínima, como vimos, nos inorgânicos.

            A indução científica repousa, portanto, na diminuição progressiva da individualidade dos vários graus de ser. Onde a individualidade é forte e domina, como no homem, a indução tem pouco préstimo, por ela se obtêm apenas algumas leis gerais, chamadas sociológicasque não têm valor nos casos individuais. Nos animais já a indução tem maior aplicação; maior ainda nas plantas; máxima no reino mineral, na matéria.

            O método indutivo aplica-se sòmente com proveito à parte da realidade de um ser que é o que nele há de comum com outros seres, omitindo o lado individual. Por isso, quanto mais este elemento for negligenciável melhor se aplicará o método.

            Gozando a matéria de débil individualidade, fàcilmente podemos substituir um corpo por outro, pois o erro que provém da individualidade é ainda menor do que o que resulta da observação.

            Podemos perguntar-nos: agindo deste modo não estaremos a supor dogmàticamente que as naturezas das coisas, as suas essências são imutáveis?

            Não. Não supomos nada. Os resultados obtidos pela indução não supõem, mas antes implicam que o efeito produzido em cada caso tem a sua razão suficiente, que será dada pelas causas externas e pela natureza do ser que muda. Pertence à indução investigar qual o valor que se deve atribuir a cada uma das causas, mas em todos os casos haverá sempre alguma coisa de privativo e único, alguma coisa de individual, não atribuível às causas externas, dentro de certos limites determinados pela espécie, pelo grau de ser que pertence à natureza do objecto.

            O homem goza de liberdade [um padre católico segue Agostinho, naturalmente: «Deus deu ao homem o livre-arbítrio»] e pode escolher de certo modo as suas mudanças; o animal goza de espontaneidade, vê diminuída a sua possibilidade de escolher; a planta vê o seu poder selectivo e espontâneo reduzido ao mínimo, ao passo que a matéria perde toda a espontaneidade, o ritmo das suas mudanças é fixo pela natureza do átomo, o que nso permite encontrar a lei desse ritmo. As leis gerais serão para a matéria quase exactas, visto as diferenças individuais nos ficarem desconhecidas; será menos exacta para as plantas; para os animais só nos dará uma média mais ou menos provável, para o que é especìficamente humano é mínimo o resultado. As leis físicas são, pelo que deixámos dito, gerais e aproximativas.

            Em todo o conhecimento humano há sempre alguma coisa de objectivo, que provém do objecto, e alguma coisa de subjectivo que se origina no sujeito. Para obter a objectividade do nosso conhecimento é necessário eliminar quanto possível o elemento subjectivo. Isto obtém-se mercê da convergência de vários conhecimentos independentes pelo método da indução, como insinuamos atrás.

            No conhecimento da matéria, isto é, dos inorgânicos dar-se-á em cada observação individual este factor subjectivo. Dois observadores apreciarão o peso de um corpo diferentemente, a temperatura ou a cor de um objecto será também apreciada diversamente. Sendo o objecto o mesmo, a diferença é devida ao factor subjectivo que se introduziu no conhecimento.

            Como eliminar este elemento subjectivo? O caso da sensação oferece uma dificuldade especial, pois não podemos comunicar aos outros a nossa sensação como tal. Nunca poderemos comparar o calor, a cor, o peso sentido por nós com as sensações dos outros. Ficamos encerrados dentro do psíquico, o que nos impossibilita de realizar a convergência para eliminar o que houver de diverso nas sensações de muitos observadores.

            Poderemos estar certos, quando dissermos que tal objecto é verde, que designamos a mesma sensação de cor que outro que afirma do mesmo modo que esse objecto é verde? Nunca o poderemos saber com certeza, pois nunca poderemos determinar com exactidão o que há de subjectivo e o que há de objectivo nesse conhecimento. O método da convergência torna-se nestes casos impossível, inaplicável. As sensações como tais são incomunicáveis. Se as qualidades secundárias da matéria: cor, som, gosto, cheiro, etc., são objectivas, nunca as poderemos certamente conhecer na sua pura objectividade. Não serão as qualidades objectivas da matéria operadas pelos nossos esquemas e organização biológica?

Todos sabem que os esquemas têm grande influência no nosso conhecimento. Exemplifiquemos com o esquema da oposição dos contrários, para cairmos na conta da sua grande influência no nosso modo de conhecer.

Essa oposição de contrários só se dá no campo do sensível. Sendo o biológico uma vida ligada a uma matéria, só tem condições de existência entre um mínimo e um máximo. O frio mata o organismo, mas o calor não lhe é menos nocivo. Um som muito baixo é imperceptível, mas um som demasiado agudo não o é menos. Demasiado alimento é nocivo, como o é também o demasiado pouco. Tanto a pouca luz como a demasiada luz tornam a visão impossível. Em todo o biológico organizado há um máximo e um mínimo que não podem ser ultrapassados e as condições da vida devem ser buscadas no meio termo que evite os extremos.

Estes extremos constituem deste modo verdadeiros contrários. Assim: frio-quente, leve-pesado, pequeno-grande, branco-negro, grave-agudo, baixo-alto, direito-esquerdo, adiante-atrás. Mais ainda, conhecemos como contrárias as mesmas privações, cegueira-vista, doença-saúde, etc. Ora este último caso mostra-nos à evidência como nos é natural esta extrapolação do esquema da contrariedade. Aplicamos este esquema às coisas onde não responde a uma verdadeira oposição contrária real, mas a uma projecção do nosso modo de pensar. A oposição contrária dá-se entre dois positivos em que um não tem nada do outro. No conhecimento da matéria e em matemática a oposição contrária é uma extrapolação devida à influência da sensibilidade no espírito. Aí reina a oposição de alteridade que é regida pelo princípio de não-contradição.

Sentimos uma tendência para compreender os seres materiais por oposição contrária, e já sabemos onde se radica esta tendência. Ao aplicar às coisas essas oposições contrárias próprias da sensação, aplicamos-lhes os nossos esquemas biológicos.

O desenvolvimento da física moderna fez-nos cair na conta da diferença existente entre os esquemas e a matéria em si.

(p. 60) A física moderna suprimiu um dos termos da oposição e pelo facto mesmo alterou o conceito do outro termo. Para o físico não há frio, nem leve, nem lento, nem pequeno, bem como não há direita, nem esquerda, alto ou baixo, diante ou detrás. Mas não conhecendo a matéria senão através da nossa estrutura não podemos prescindir destes termos, contudo devemos aperceber-nos dos verdadeiros contrários e das suas extrapoladas injustificadas.

Por exemplo concebemos a matéria pela oposição entre energia e massa; os físicos mostraram que esta oposição é suspeita, provaram até que era inexistente; em física a massa transforma-se em energia e a energia em massa. O único que podemos afirmar é que não há energia sem massa nem massa sem energia; mas por não podermos saber nem suprimir o que há de subjectivo no nosso conhecimento das qualidades secundárias, não podemos concluir que as qualidades secundárias são apenas subjectivas, meras transposições totais da quantidade. Esta conclusão é ilegítima. Só podemos afirmar que não podemos conhecer o que há de verdadeiramente objectivo nessas qualidades.

Conhecemos, porém, melhor e atingimos maior objectividade no conhecimento da quantidade.

O nosso espírito não tem domínio directo pelas suas próprias forças no mundo corporal senão através do próprio corpo. Não somos um espírito que habita um corpo, mas somos uma unidade substancial, uma única pessoa.

Ora o nosso corpo na sua actividade sobre os outros corpos só pode realizar movimentos. Podemos levar um corpo daqui para ali, deslocá-lo mudando assim o lugar relativamente a outros seres materiais. Pintar, por exemplo, é distribuir as cores em certa ordem e medida. Graças ao deslocamento que pudemos operar, podemos sobrepor a superfície de um corpo com a superfície de outro e assim suprimimos toda a diferença que provinha da nossa maneira de ver as coisas devida à perspectiva.

As superfícies de dois corpos distantes vistas de um ponto parecem ser iguais e vistas de qualquer outro ponto parecem desiguais. Se reduzirmos a distância a zero até à sobreposição então se as virmos coincidir em algum ponto vê-las-emos sempre coincidir seja de que ponto for que as olhemos. Como se vê todo o efeito da perspectiva foi eliminado. Mas a operação de aplicar um corpo a outro é medi-lo e medindo-o, tomando um deles para unidade, podemos exprimir em números o seu comprimento objectivo independentemente da subjectividade de cada operador.

Mas nova dificuldade se levanta! Segundo os dados da física sabemos que dois corpos nunca se tocam na realidade. Dois átomos ficam sempre a distâncias que superam as próprias dimensões. Duas superfícies nunca se tocam perfeitamente. Tocar é um conceito proveniente da sensação e, portanto, pertencente ao domínio biológico. Significa, pois, uma aproximação da superfície do nosso corpo vivo a outra superfície, de modo a produzir-se a sensação de tacto. A coincidência perfeita é sòmente aparente e quando aplicamos o conceito de contacto aos corpos, se queremos significar que coincidem perfeitamente, pràticamente uma extrapolação, pois sòmente significa uma aproximação.

A coincidência é simplesmente aparente. Portanto a coincidência necessária para obter medidas objectivas é um ideal irrealizável. Podemos pràticamente diminuir a distância quanto quisermos, abaixo de todo o limite observável, mas a coincidência nunca será perfeitamente exacta.

Eis a razão do carácter aproximativo das medidas em física. O grau de aproximação não depende de um observador, de um indivíduo em particular, mas do adianto da ciência.

Para estabelecer a unidade de medida temos que buscar um movimento uniforme. O movimento espontâneo e orgânico não serve, pois não tem esta qualidade. Os corpos inorgânicos em movimento, deixados a si mesmos, não têm razão de mudar, se forem subtraídos às influências externas. Julgar que eles se modificam no movimento por uma espécie de fadiga é dar-lhes espontaneidade de que eles não gozam. Pràticamente usou-se o movimento aparente do Sol, mas notou-se que ele tinha pequenas irregularidades. Substituiu-se pelo movimento do pêndulo. Neste movimento, porém, também não podemos realizar as condições requeridas, isto é, suprir todas as influências externas, e só as podemos realizar aproximadamente e aproximar-nos mais e mais das condições ideais. Estas medidas só serão absolutamente exactas na ciência que supõe as condições realizadas, mas que por isso mesmo é uma ciência do abstracto, a Matemática.

Foi alcançada uma medida independente das impressões subjectivas, uma medida objectiva, mas, como vimos, meramente aproximativa, e isto sòmente para a quantidade.

Para as qualidades não temos medida nenhuma directa. Notou-se, porém, que certas variações de quantidade implicam mudanças de qualidades. Analisou-se cada qualidade de per si e o resultado foi maravilhoso. Uma variação determinada na quantidade porvoca uma variação determinada na qualidade, o que permitiu medir as qualidades ainda que indirectamente. O calor e a pressão medem-se pelo comprimento da coluna de mercúrio, o som pela vibração do ar, a luz e as cores pelo movimento ondulatório. Reduziram-se deste modo as qualidades à quantidade.

Podia agora estudar-se física por uma nova ciência, a ciência da quantidade ou a matemática. Eis-nos perante a física-matemática.

(p. 64) Num trabalho intenso de objectivação chegámos a um aspecto do real, o real quantificado, susceptível de se deixar manejar pela ciência da quantidade, do contínuo, da extensão e duração ou do espaço-tempo, a Matemática.

contínuo é na matemática o elemento empírico onde se elaborou uma primera alteração supondo-o completamente homogéneo, simples, sem estruturas essenciais. Podemos, portanto, tomar o que chamamos corpos, sobrepô-los para os medir, deslocá-los para os ajuntar, separá-los para os dividir. Temos as operações fundamentais às quais se reduzem todas as operações da matemática, se exceptuarmos a teoria dos grupos.

Vimos como em física nos tínhamos aproximado das dimensões exactas por uma série indefinida de investigações finitas, que têm por limite a dimensão finita exacta. O correspondente matemático deste modo de proceder é o cálculo integral e diferencial. A aplicação do cálculo infinitesimal à física, se devem os seus adiantos surpreendentes.

geometria supõe as medidas exactas, a aproximação acabada. Dá o salto do ideal ao existencial e as suas linhas, planos e pontos não têm espessura. Os planos só têm largura e comprimento, a linha só comprimento e o ponto não tem dimensão nenhuma. As suas medidas têm uma exactidão perfeita. Perfeição devida ao empobrecimento do seu conteúdo real e à fuga das condições da existência real.

A matemática trabalha com conceitos unívocos perfeitamente idênticos. As figuras geométricas para o geómetra e os números para o matemático dizem para todos o mesmo. Mas dois seres existentes, individuais, nunca serão idênticos. Em matemática como em física só graças à abstracção do que é individual, à sua omissão é que se podem realizar as operações.

A clareza da matemática provém-lhe desta univocidade de conceitos usada nas suas operações.

O sinal = (igual) que une os dois membros nas equações não significa identidade mas sim equivalência. 6 = 6 não é uma verdade, é mera tautologia. 30 × 3 = 90 é uma equivalência que nos mostra dois modos de chegar a um mesmo resultado.

Se não posso obter o resultado 90 directa e imediatamente, posso obtê-lo doutro modo. Quero por exemplo transportar 90 quilos daqui para outro sítio e as minhas forças não são suficientes para transportá-los todos duma vez, o resultado será o mesmo se se tomarem 30 quilos e se repetir essa acção três vezes. A acumulação dos resultados expressa-se pela equivalência 30 × 3 = 90 que nos dá a identidade dum mesmo resultado quantitativo e, portanto, só tem aplicação no domínio da quantidade e não na qualidade. Dois, três, vinte medíocres nunca farão um génio.

A redução da física a movimento e relações funcionais, introduziu, como vimos, a matemática na física, e nela achou uma linguagem e um modo de expressão adequado dos factos e suas relações. O que nos era dado na apreensão sensível, as qualidades sensíveis, foram desvitalizadas e tornaram-se símbolos, e por uma analogia com as experiências sensíveis, eles designam alguma coisa de real, de objectivos, mas desconhecidos na sua realidade em si.

Os nossos sentidos não são capazes de captar toda a actividade do ser material, como os raios infravermelhos, os raios ultravioletas, os raios X e, o que é notável, é que para entrarmos nessas zonas desconhecidas foi preciso transformar, por meio de intrumentos, essa actividade, de modo a produzir uma qualidade sensível, capaz de a fazermos chegar a algum dos cinco ou mais transformadores que são os nossos sentidos, para a podermos transformar em sensação e conhecimento. O conhecimento do ser material pelas ciências exactas é, pois, na sua parte positiva, muitíssimo reduzido e insuficiente para podermos fazer a ontologia do ser material.

O conhecimento científico dá-nos uma pequeníssima parte do conhecimento da experiência humana.

Além da experimentação científico, temos a experiência comum cuja realidade e objectividade não é menos certa do que a experiência científica, e até a própria experiência científica seria impossível sem a experiência comum. Além disso a experiência humana estende-se muito para além dos factos científicos, bastando para isso considerar os objectos de que nos servimos com o seu valor de uso; os factos humanos como a saúde, a doença, a vida, e a morte; as guerras, as revoluções, as transformações sociais; tudo isto são experiências reais que podemos conhecer objectivamente. Contudo não podemos descrever estas realidades em fórmulas matemáticas nem exprimi-las em termos de electrões ou átomos.

Toda esta experiência desaparecera para o cientista que se enclausurou e limitou num único modo de conhecimento, o da experimentação científica. O Cientismo moderno exagera as suas pretensões ao afirmar que sòmente o conhecimento científico é objectivo e real. Os dados que a intuição sensível nos mostra, e que são o ponto de partida da experimentação física, vão-nos dando grupos inferiores, que escapam à nossa intuição sensível. Para os conhecermos, temos que os tornar sensíveis, indirectamente, por meio de instrumentos; fica, porém, sempre alguma coisa de subjectivo da parte do observador, pelo menos a leitura de uma escala em que se aprecia o movimento.

Se se negar realidade e verdade à sensação e os dados por ela apreendidos forem considerados sòmente com subjectivos; que direito tem o Cientismo, se quiser ser coerente, em admitir a realidade e verdade do seu objecto? O ideal do Cientismo é reduzir quanto possível a acção do observador e separar o objectivo do subjectivo a tal ponto que se se realizasse o seu desideratum já não havia lugar para o pensamento e para a vida.

Objectivo e subjectivo são duas noções correlativas que não têm significação senão uma pela outra. Sem uma teoria do conhecimento não se pode dar um passo. Ora a física moderna não encontra lugar par ela, visto que se constitui como ciência, como conhecimento objectivo da natureza, na medida em que chega a eliminá-la.

Mas então, cabe perguntar: qual o objectivo dessa ciência? À reflexão sobre o conhecimento substituiram a pura análise dos enunciados científicos, refugiando-se assim num matematismo ou logicismo formal, que despreza o conhecimento enquanto actividade interna do sujeito, para só estudar a linguagem em que se expressa.

(p. 69) O Cientismo reduziu a filosofia à lógica, e esta transformou-se numa ciência exacta, na medida em que se limita a considerar sòmente fórmulas verbais ou algorítmicas. Quem se resignar a ficar no puro plano lógico, não ultrapassa as fórmulas e não precisa de lhes buscar um sentido: relaciona uma fórmula com outra, procurando simplesmente a sua coerência formal. Uma vez reduzida a filosofia à lógica, buscar a conciliação entre a ciência empírica e a lógica nominalista, entre os factos e so seus enunciados, o real e a linguagem, são problemas que não têm sentido.

Devemos, porém, notar que uma lógica ou matemática como ciência puramente formal é devida a uma abstracção pela qual se desprezou a significação dum sistema de símbolos e estes se tratam como números. Obtêm-se assim esquemas vazios, desnudados de sentido, sistemas meramente formais. Mas nenhum Cientista se resigna a ver nas teorias físicas sòmente fórmulas vazias. Às fórmulas vazias lógico-matemáticas é insuflado um conteúdo físico [isto é, os físicos têm a mania de ver as suas fórmulas teóricas como se fossem a realidade em si, e não modelos, aproximações], o que se opera pelos fundamentos da teoria. Estabelece-se dogmàticamente uma axiomática [sistema de valores, ou de juízos de valor] donde os primeiros símbolos tiram uma significação, e se depois de várias transformações, as novas fórmulas puderem ser postas em correspondência com proposições empíricas, a teoria lógico-matemática [abstracta] transforma-se em teoria física [material], verdadeira ou falsa segundo a axiomática fundamental for verdadeira ou falsa.

O logicismo matemático quando pretende apresentar-se como uma filosofia tem o defeito de desprezar uma parte importante e fundamental dos nossos conhecimentos, como os factos e os juízos imediatos, particulares ou gerais que eles nos impõem. O seu domínio é o aspecto geral e abstracto dos seres. Para um facto ser verdadeiro não basta que não contenha nenhuma contradição lógica. Isto é condição da sua possibilidade, mas condição parcial e insuficiente para a sua realidade. O Cientismo, tomando só em conta a matemática e as ciências físicas, deixa uma parte importante da ciência: a história e a moral. Todo o conhecimento atinge o ser com alguma determinação que pode ser sensível [apreendível com os sentidos] ou inteligível [apenas raciocinada com a mente].

A Física e a Matemática têm por objecto o ser determinado pelas faculdades sensitivas; o elemento sensível faz parte do conceito científico (físico e matemático), é, porém, extrínseco à noção de ser que depende ùnicamente da inteligência.

(p. 70) O saber humano alcança-se de três modos: conhecimento físico, matemático e metafísico [isto é Aristóteles  Cassiano Abranches é um neo-escolástico da «Escola de Braga», v. HistPensFilPort Vol. V, Tomo 1.º  só que Aristóteles dizia teológico em vez de metafísico]. Este conhecimento diferencia-se não pela diversidade do objecto mas pela diversidade no atingir o mesmo objecto. Compostos como somos de matéria e espírito [de certeza?!] somos capazes de um conhecimento sensitivo-racional. Pelo espírito atingimos imperfeitamente, mas realmente, o ser íntimo das coisas. Como composto uno temos um conhecimento sensitivo-racional, que participará da perfeição do conhecimento espiritual ou metafísico e da imperfeição do conhecimento sensível.

O conhecimento sensitivo-racional deixa em suspenso o sabermos se o objecto desse conhecimento é real e dele dá-nos sòmente um aspecto parcial. Não pertence ou seu domínio manifestar-se sobre a natureza da sucessão regular dos fenómenos. Sugier diz ao princípio do seu livro (pág. 13) Mécanisme et conscience: «O físico e o astrónomo não cuidam da realidade dos objectos que estudam. Podem alguns, ao serem interrogados, ter expendido a sua opinião sobre isso; mas essa opinião nunca interveio nas suas pesquisas meramente científicas e um físico monista utilizará sem hesitar as descobertas físicas feitas por um colega dualista».

Vimos como no conhecimento científico o sábio se esforçou na obtenção dum conhecimento o mais objectivo possível, como tentou desfazer-se da subjectividade sem o poder conseguir completamente. A ciência é um contínuo aprofundar de análises e reconstruir de sínteses cada vez mais perfeitas, que nos propõe problemas que a ciência por si só é incapaz de resolver.

Pede, portanto, um complemento de conhecimento que englobe e unifique tudo o que o saber humano tem conseguido. Só a metafísica, atingindo não o ser determinado sensìvelmente, mas o ser como ser em cuja ideia transcendental se vêm inscrever todos os conhecimentos sem a ultrapassar, é capaz de nos dar esse conhecimento. Todos so objectos possíveis são implícita e analògicamente conhecidos nesta ideia transcendental que faz a ligação entre o conhecido e o desconhecido e nos faz ultrapassar o conhecimento científico.

            O conhecimento metafísico é, portanto, um conhecimento que progride passando de acto imperfeito a acto perfeito e não de potência a acto como o conhecimento científico, visto que a ideia de ser contém tudo implìcitamente. O conhecimento metafísico, contra o qual se insurgiu o positivismo científico [Comte, mas também os neopositivistas do círculo de Viena], que só queria admitir o seu modo de conhecer, viu erguer no seu próprio campo o obstáculo ao conhecimento objectivo, como já insinuámos atrás, isto é, a impossibilidade de eliminar no conhecimento toda a traça de subjectividade. A atomicidade da acção, o efeito Compton, as relações de indeterminaçãoelevaram a impossibilidade à honra de lei física, o que pôs os próprios cientistas na obrigação de imporem limites ao seu conhecimento.

            Além dos limites impostos ao conhecimento científico, que estudámos atrás, há outra pergunta a que as ciências não dão solução. A ciência investiga porque é que este facto é, e é tal. Responde, porém, por outro facto cuja existência supõeMas o que seja a «existência», a ciência não o conhece nem pode conhecer. Dizer que esta pergunta não tem sentido, não é resposta e pelo menos deveria mostrar-se porque é que não tem sentido, sem fundar a resposta na afirmação dogmática e crìticamente insustentável, de que só o conhecimento científico é objectivo e verdadeiro.

            Para saber o que é a existência, porque existem coisas em vez de não existir nada, e se a existência do que conhecemos tem a razão de ser em si ou noutro, é necessária outra ciência e outro método além das Ciências e dos seus métodos. Essa ciência, já o mostrámos, é a Filosofia ou Metafísica, que não deixa nada fora do seu âmbito, podendo assim fornecer às ciências os seus princípios e dar-lhes o valor ontológico que elas, por si só, nunca poderão obter; ainda que não dará às Ciências nenhum facto, nenhuma lei, nenhum resultado científico. As Ciências guardam a sua plena autonomia de métodos e procedimento. A Metafísica respeita todos os seus resultados, não renunciando, porém, a julgar a totalidade das Ciências quanto ao seu valor de realidade em si. Por outro lado as Ciências dão os factos à Filosofia, factos que ela não pode rejeitar porque enquadram no seu sistema, visto que a Filosofia ou Metafísica ser o conhecimento do real tal qual é em si, sem eliminar ou desprezar nana do que é real, aceitando tanto o aspecto individual, subjectivo e espiritual, de que as Ciências abstraem, como o geral, o objectivo e o material que as Ciências parcialmente guardam como objecto do seu estudo.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

«A ruína da Marinha nacional» (1808-1834) 2/2

Ver também a postagem «A Marinha Portuguesa nas Guerras Napoleónicas».

Isto é a parte 2 de 2 de uma transcrição quase na íntegra de um capítulo de António José Telo sobre a Marinha entre os fins do século XVIII e as guerras liberais. As enumerações vão em listagens, em vez do texto corrido original, para melhor visualização.

[ A R S E N A I S ]

«Portugal tinha ao seu dispor antes da independência do Brasil essencialmente três núcleos de arsenais: os do continente, do Brasil e da Índia. No continente, destacava-se pela sua importância o Arsenal da Marinha, em Lisboa, mas a ele podíamos juntar dezenas de arsenais privados, alguns capazes de contruir grandes navios, situados principalmente na zona do Porto, Viana, Aveiro e Figueira da Foz. No Brasil, o principal arsenal era o da Bahia, logo seguido pelo Pará, pelo Rio e por meia dúzia de outros de algum significado. Na Índia, contava-se principalmente com o arsenal de Damão.

Os arsenais do Brasil e da Índia tinham acesso fácil a madeiras raras, de excelente qualidade, que eram a matéria-prima mais difícil de obter para as contruções navais. A grande fonte destas madeiras eram as imensas florestas do Brasil, que alimentavam os arsenais da Bahia e do Pará e eram exportadas para Lisboa.

Qual a importância relativa destes centros em termos dos navios principais da Armada?Em fins de 1824 a situação era a seguinte: 
― as duas naus foram feitas em Lisboa; 
― as oito fragatas eram, 
• uma de Lisboa, 
• uma de Damão, 
• três da Bahia, 
• duas do Pará e 
• uma era presa capturada à França nas Guerras Napoleónicas; 
― das 10 corvetas, 
• quatro eram de Lisboa,
• uma de Damão,
• três do Pará/Bahia,
• uma presa capturada e
• um navio mercante convertido;
― dos 12 bergantins e brigues, só nos foi possível apurar a origem de nove, sendo
• dois feitos em Lisboa,
• dois na Índia,
• quatro no Brasil e
• um de contrução britânica.

Em resumo, nos 29 navios mais importantes da Armada dos quais foi possível apurar a origem (naus, fragatas, corvetas, bergantins e brigues),
• 9 eram do Arsenal da Marinha de Lisboa (31%),
• 4 da Índia (13%),
• 12 do Brasil (41%) e
• 4 (13%) eram de construção estrangeira, tendo vindo para a Armada quase todos como presas.

Temos assim a imagem de uma esquadra que dependia quase só dos estaleiros nacionais (25 navios dos 29 principais), mas onde o grande centro de construções era o Brasil, de onde provinham quase metade das construções (12 navios em 25 de origem nacional). Outra conclusão era que a construção naval nacional estava muito concentrada em somente quatro arsenais:
• Lisboa,
• Bahia, 
• Pará e
• Damão.
O Porto, Viana, Rio e Luanda só contribuíam com navios menores para a Armada, como escunas, charruas, iates, chalupas, cúteres e outros.

Com estes números é fácil entender a importância da independência do Brasil para o poder naval nacional. Ela representa a perda do centro de onde tinham vindo metade dos principais navios de origem nacional em 1824. É um golpe especialmente duro porque surge numa altura de decadência dos estaleiros nacionais, onde os brasileiros eram ainda os que melhor funcionavam, em parte porque a corte estava no Rio, mas em parte porque tinham recebido centenas de técnicos e artífices nacionais desde 1807, muitos provenientes das tripulações das naus que apodrecenam no Rio, sem voltarem ao mar.

O Arsenal da Marinha de Lisboa, o mais importante estabelecimento industrial nacional em começos do século, torna-se uma sombra de si próprio com as Guerras Napoleónicas. Antes, era capaz de construir uma média de duas naus e duas fragatas em cada três anos; depois de 1815, o Arsenal só inicia a construção de mais uma nau (a Vasco da Gama) e esta é um verdadeiro atestado à sua incompetência, pois, começada na carreira em 1824, só é lançada à água em 1841 e só arma em 1845 ― uns espantosos 21 anos depois de começada!  Escusado será dizer que a Vasco da Gama era obsoleta quando lançada à água, pois não incorporava nenhuma das novidades técnicas que se tinham desenvolvido nos estaleiros estrangeiros, mas eram impossível de aplicar nas condições da construção em Portugal.

Por outras palavras, não só o Arsenal da Marinha tinha passado de uma média de
• uma nau em cada ano e meio para 
• uma nau em 10 anos (a D. João VI) e, finalmente, 
• uma nau em 21 anos (a Vasco da Gama), 
como os navios aí construídos, apesar de se chamarem naus, tinham deixado de ser unidades de combate principal equivalentes tecnicamente às das marinhas europeias. A Vasco da Gama, aliás, passaria a maior parte da sua vida útil como depósito de marinheiros e as poucas viagens oceânicas que fez tendiam a correr mal.

O Arsenal da Marinha em Lisboa am 1793. Imagem retirada daqui.

Charles Napier deixou uma descrição pungente do que era o Arsenal da Marinha quando o dirigiu no começo da década de trinta [Charles Napier (1836) An account of the war between D. Pedro and D. Miguel, 2 vols., Londres]. É um testemunho precioso, proveniente do grande comandante naval deste período, que seria não só o principal chefe militar da vitória liberal em Portugal, como um dos reformadores da Royal Navy e um dos seus melhores almirantes entre 1820 e 1850. Napier compara o Arsenal da Marinha com os estabelecimentos congéneres ingleses e fica espantado com praticamente tudo: o imenso número de chefias incompetentes e ignorantes dos mais recentes desenvolvimentos das técnicas navais; os hábitos de trabalho dos Portugueses; a politização do clima do Arsenal e as perseguições contra os que não apoiavam a facção no governo; a falta de organização; o grau de exigência muito baixo; a constante improvisação, o que ainda era a melhor forma de solucionar os permanentes problemas; a interferência do ministro e das chefias superiores a todos os níveis; a falta de critérios de rentabilidade ou comerciais. Era um imenso choque cultural e de mentalidades entre Charles Napier e os hábitos prevalecentes no que, ainda em 1807, era um dos mais importantes arsenais da Europa. Escusado será dizer que o conflito acaba da única forma possível: Napier é afastado ao fim de pouco tempo da chefia do Arsenal, muito em especial quando começa a atacar os processos de preferências e privilégios políticos.

Ao ler a descrição que Napier deixou do que era o mais importante estabelecimento industrial nacional em 1834 é fácil entender como se passou de uma nau moderna em cada ano e meio para uma nau obsoleta em cada 21 anos, que ficava por um custo pelo qual se poderiam comprar pelo menos três naus modernas no estrangeiro. É também fácil entender como era possível que os navios nacionais não aguentassem manter o bloqueio da Terceira nos fortes mares dos Açores no Inverno, enquanto os da Royal Navy o faziam sem dificuldade de maior. Como Napier refere, para dar só um exemplo, as meras velas nacionais eram nesta altura de fraca qualidade e mal confeccionadas, a ponto de não aguentarem as rajadas de vento mais fortes, pelo que os oficiais as mandavam recolher assim que o tempo mudava, enquanto os navios ingleses podiam manter o pano em idênticas circunstâncias. Era a prova de que a qualidade é uma conceito global que, uma vez perdido em campos fundamentais, se estende rapidamente a outros, mesmo àqueles que dependem de técnicas tradicionais, que Portugal dominava desde há séculos, como era o caso da confecção de velas.

Para além da Vasco da Gama, a Marinha nacional só recebe em termos de navios principais (naus e fragatas) mais uma unidade nova até 1858: a fragata D. Fernando II e Glória, construída em Damão, a última «nau da Índia», actualmente preservada []. Das outras quatro fragatas aumentadas nestes anos, três eram antigos navios mercantes comprados pelos liberais na Inglaterra e transformados à pressa nos estaleiros estrangeiros em fragatas; a outra era a antiga charrua Maia e Cardoso, que seria classificada como fragata a partir de 1833. A ruína dos estaleiros nacionais não podia ser mais completa: no meio século posterior às Guerras Napoleónicas só produziram dois navios de combate significativos, mais concretamente uma nau obsoleta (Arsenal de Lisboa) e uma fragata de grande beleza mas duvidosa eficácia (Arsenal de Damão) [v. António Emílio de Ferraz Sachetti (1998) D. Fernando II e Glória, Lisboa, ed. CTT]

Referência
• António José Telo (2004) Portugal e a primeira vaga de inovação contemporânea. In Manuel Themudo Barata & Nuno Severiano Teixeira, Nova História Militar de Portugal, vol. 3, pp. 344-347.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

«A ruína da Marinha nacional» (1808-1834) 1/2

Ver também a postagem «A Marinha Portuguesa nas Guerras Napoleónicas».

Isto é a parte 1 de 2 de uma transcrição quase na íntegra de um capítulo de António José Telo sobre a Marinha entre os fins do século XVIII e as guerras liberais. As enumerações vão em listagens, em vez do texto corrido original, para melhor visualização.

[ N A V I O S ]

«(...) Portugal, quando as Guerras Napoleónicas começaram, tinha a sua marinha num ponto alto, tanto em termos de qualidade como de quantidade. Em 1791, alinhava uma força de
• 12 naus,
• 15 fragatas,
• 3 corvetas,
• 9 brigues, 
• 6 charruas
• e navios auxiliares,

a que havia a somar a marinha da Índia, com 
• 1 nau e 
• 7 outros pequenos navios [Números do subdirector da DGC do Ministério da Marinha, António do Nascimento Rosendo, no seu depoimento perante as cortes. Inquérito às Repartições da Marinha, tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional, p. 425]

Era uma esquadra que correspondia a um terço da espanhola ou metade da holandesa, o que transformava Portugal num poder naval de terceira ordem muito razoável. O que era mais, esta força não só era numericamente substancial, como estava ao nível das equivalentes e conseguia operar sem desprimor ao lado da Royal Navy. Na primeira fase das Guerras Napoleónicas o país, a pedido da Inglaterra, cria duas esquadras que apoiam as operações britânicas nas principais frentes da guerra naval: 
― o canal da Mancha (força nacional de
• 4 naus,
• 1 fragata e
• 2 brigues)
― e o Mediterrâneo (força nacional de
• 5 naus,
• 1 corveta e
• 1 brigue).

Portugal, em resumo, tinha uma marinha muito razoável em termos numéricos, que era tecnicamente o equivalente a outras do seu tempo, que podia manter operações longe dos portos nacionais nos teatros mais exigentes e que era quase na totalidade de fabrico nacional e operada por nacionais. Era uma força naval oceânica, não no sentido de ser capaz de assegurar sozinha o controlo do Atlântico, mas no sentido de dar um contributo significativo para tal. A Armada servia principalmente para controlar uma rota oceânica (a do Brasil) e podia operar ao lado da Inglaterra nos principais teatros de operações navais, onde a guerra era mais exigente, tudo capacidades que se iam perder a curto prazo.

Em 1807, quando a corte retira para o Brasil, todos os navios capazes de navegar a acompanham. A esquadra que transporta os 15 000 portugueses era formada por 40 navios mercantes, escoltados por
• 8 naus,
• 5 fragatas,
• 4 brigues,
• 1 charrua e
• 1 escuna nacionais, 

para além de três naus britânicas. Ao mesmo tempo, o comboio anual do Brasil que estava a chegar ao reino, formado por mais umas dezenas de velas, é desviado para Londres e já não descarrega os produtos que transporta em Lisboa. Na capital só ficam os navios incapazes de navegar ou os que não foi possível armar a tempo, o que é ainda uma força razoável de
• 4 naus,
• 6 fragatas,
• 1 corveta,
• 1 brigue e
• 1 charrua.

A Marinha portuguesa em 1807 estava, em resumo, ao mesmo nível do começo das Guerras Napoleónicas, em 1791, com 12 naus (mais uma na Índia) e 11 fragatas como unidades principais.

Em poucos anos, esta força vai desaparecer como se tivesse sido tragada pelos mares numa imensa batalha, apesar de nenhum navio principal ter sido perdido em combate. Quando a corte chega ao Brasil, os navios que a transportaram eram inúteis, não podiam voltar ao reino e custava muito caro mantê-los armados, numa altura em que as dificuldades financeiras eram imensas. A Inglaterra, que se mostrava disposta a financiar o Exército português a partir de 1808, não fazia o mesmo em relação à Marinha, pelo simples mas inapelável motivo de que não precisava de mais navios depois da vitória em Trafalgar. O que é mais, a principal função da Marinha nacional desaparece, pois os portos do Brasil são abertos ao comércio internacional e não é mais necessário fiscalizar essa linha vital atlântica da qual dependia a prosperidade do Estado central do Antigo Regime. A Marinha inglesa era suficiente para proteger a navegação que sai do Brasil, até porque esta segue principalmente em navios de bandeira britânica que se dirigiam para Londres depois de 1808.

É de notar que, quando a corte chega ao Brasil, são abertos de imediato os seus portos à navegação aliada e, em poucos meses, estabelecem-se mais de 200 casas comerciais britânicas. Os tratados assinados com a Inglaterra em 1810, numa altura em que a dependência em relação ao apoio britânico para combater o invasor francês era máxima, apontam para uma clara inserção do eixo Portugal-Brasil num Atlântico dominado pela Inglaterra. As mercadorias inglesas no Brasil, por exemplo, pagavam direitos inferiores às nacionais, o que corta com qualquer veleidade de afirmação de uma actividade manufactureira nesse território. A contrapartida muito importante era a garantia dada pela Inglaterra de que defendia a integridade do território e a manutenção da Casa de Bragança.

Reconstituição da chegada ao Rio de Janeiro em 1808. Quadro de 1999 por Geoffrey Hunt (n. 1948), artista contemporâneo de temas navais; adaptado com os nomes dos navios.

Neste contexto, é compreensível que a corte tenha decidido desarmar a quase totalidade das naus e das fragatas e dispensar grande parte dos oficiais das suas guarnições. Os navios seriam mantidos inactivos durante longos anos ancorados na Ilha das Cobras (Rio de Janeiro). Na sua maioria apodreceram rapidamente no clima tropical. As naus portuguesas que ainda navegam são as que ficaram em Lisboa, que Junot mandou recuperar à pressa na ilusão de as poder utilizar contra os navios britânicos, que, em grande número, asseguravam o bloqueio permanente dos portos nacionais. Mesmo essas naus, porém, são desarmadas quando Junot é expulso de Portugal em 1808. 

Em Agosto de 1810 só uma nau está armada e navega (a Vasco da Gama), isto para uma marinha que ainda três anos antes alinhava 13 naus. A missão dos poucos navios portugueses operacionais no continente é essencialmente a de manter a esquadra do estreito, que protegia a navegação contra os corsários berberescos. No Brasil uma força apoiava as operações terrestres que a corte desencadeou contra as colónias francesas e as antigas colónias espanholas, mas formada somente por pequenos navios, pois as naus e fragatas não tinham utilidade numa guerra que era essencialmente costeira.

Das oito naus que partem de Lisboa em 1807 só uma regressa ao reino (a Rainha de Portugal). A maior parte das outras será abatida devido à deterioração, depois de longos anos de imobilização. Mais importante ainda era o facto de nestes anos (1807 a 1824) só se ter fabricado uma nau em Portugal (a D. João VI) e, mesmo assim, com grandes dificuldades, pois seria começada em 1806 e lançada à água dez anos depois, em 1816. 

A independência do Brasil 1822 é mais uma terrível machadada nesta força já muito debilitada. A maior parte da marinha que estava no Brasil adere à causa encabeçada por D. Pedro e, fortalecida por oficiais britânicos voluntários [O Brasil contratou logo a seguir à proclamação da independência os serviços de um almirante, quatro capitães-de-fragata, um capitão-tenente, 13 primeiros-tenentes e 10 segundos-tenentes britânicos. Cf. Esparteiro, 1974-1988, vol. 7, 162.], impõe-se sem grandes dificuldades aos restos da Marinha portuguesa que tinha perdido a capacidade de controlar os oceanos. Portugal passa mesmo pela vergonha de, para além de não conseguir enviar nenhuma expedição significativa para o Brasil, perder 15 dos 40 navios mercantes do comboio no qual retiram as tropas fiéis a Lisboa, perante uma força naval menor, mas comandada por oficiais ingleses, que têm à sua frente lorde Cochrane.

Em 1824 Portugal só conta com
• 2 naus,
• 8 fragatas e
• 10 corvetas.
Só uma das naus está armada (a D. João VI, com oito anos), pois a outra (a Rainha de Portugal) está em mau estado e desarmada; a nau D. Sebastião é irrecuperável para o serviço da esquadra, pelo que não a contamos. Significa isto que a Marinha portuguesa de 1824 é equivalente a um terço da força existente em 1807 em termos de homens e toneladas. A perda qualitativa é muito mais importante, pois passou-se de uma esquadra com 13 unidades de combate principal (as únicas que contam em termos de controlo dos oceanos) para outra com duas, das quais só uma estava em boas condições. Portugal tinha perdido a capacidade de manter uma força oceânica significativa e não mais a recuperaria posteriormente. A partir de agora a Marinha nacional seria uma força costeira e de projecção imperial, só capaz de exercer uma acção de controlo dos oceanos em termos costeiros nas lutas internas (e esta é muito importante para a evolução nacional), mas incapaz de contribuir de forma significativa para o controlo global dos oceanos, o que foi a sua missão principal no primeiro período das Guerras Napoleónicas.

O que se tinha perdido sobretudo não eram os navios apodrecidos e os oficiais dispensados do serviço, pois estes eram recuperáveis, embora os primeiros fossem mais fáceis de substituir que os segundos. O que se tinha perdido era muito mais vasto. O que se tinha perdido era o acesso às fontes de matérias-primas e aos estaleiros vitais do Brasil, para os quais passaram em 1807 os melhores técnicos portugueses, bem como os lentes em peso dos estabelecimentos de ensino da Marinha; o que se tinha perdido era um Estado central forte e financeiramente são, que pudesse incentivar o desenvolvimento da base do poder naval; o que se tinha perdido, e isto era, sem dúvida, o mais importante, era a capacidade de acompanhar a evolução técnica internacional, justamente na altura em que esta passa a ser muito rápida e dá um imenso pulo qualitativo sob o impulso da Revolução Industrial.»

Referência
• António José Telo (2004) Portugal e a primeira vaga de inovação contemporânea. In Manuel Themudo Barata & Nuno Severiano Teixeira, Nova História Militar de Portugal, vol. 3, pp. 344-347.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Mais Ligações Desalojadas

Ver também as postagens «Lista de Bookmarks» e «Ligações Desalojadas».

Aqui ficarão, nostalgicamente, ligações que vou desalojar da lista à direita e do blogalelepípedo porque não são actualizadas há mais de um ano, ou porque já desapareceram em absoluto.

domingo, 25 de agosto de 2024

Georg Vogel toca Georg Voguel, num Clavemusicum Omnitonum

«Vonamoe», de Georg Vogel. O instrumento é um Clavemusicum Omnitonum, variante do arquicímbalo ou arquicravo, instrumentos de tecla afinados para a microtonalidade, isto é, que permitem tocar quartos-de-tom e outros intervalos inferiores ao meio-tom. 

https://www.youtube.com/watch?v=wZ7rMsE1ia8

«Though microtonal music may seem modern, this harpsichord is based on an original instrument by Vito Trasuntino, 1606, currently located at Museo Internazionale e biblioteca della musica di Bologna. Studio31 has also made instruments with 36 and 24 keys per octave.» ― diz um dos comentários ao vídeo. 

segunda-feira, 22 de julho de 2024

«O artigo científico está obsoleto», diziam eles...


No dia 7 de Abril de 2018, o meu amigo Carlos Afonso mandou-me um link para um texto que tinha aparecido dois dias antes na histórica revista norte-americana The Atlantic

O texto era assinado por James Somers e trazia o seguinte título: The Scientific Paper Is Obsolete. Here's What's Next (ainda está em linha: https://www.theatlantic.com/science/archive/2018/04/the-scientific-paper-is-obsolete/556676/).

Estou a falar nisto agora porque encontrei por acaso o e-mail que escrevi imediatamente em resposta ao meu amigo. Vale a pena transcrevê-lo aqui, porque mostra uma opinião que eu continuo hoje a subscrever sobre um tópico que continua a ser incompreendido.

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Obrigado. É longo, não tenho tempo agora para ler isso tudo, mas muita coisa há a dizer sobre o tópico. O que posso comentar desde já, depois de ter skimmed through, é que quem escreve coisas com este título assume que a única função de um artigo científico é comunicar novos resultados, quando essa é apenas uma das suas funções. Para já, existem muitos tipos de artigos científicos (research papers, short comms, opinions, digests, letters, etc.) e depois (e hoje em dia principalmente) os artigos servem para pôr no CV, dar estatuto profissional aos autores, obter grants, mostrar produção, etc. Pode-se não gostar desta função, mas ela existe, é um facto do «fazer Ciência» moderno. 

Outra função é a da narrativa: dependendo na disciplina, é mais ou menos preciso escrever um paper com uma narrativa, i.e., justificar um resultado, uma interpretação, uma opinião, uma abordagem. Raramente basta apenas mostrar os novos resultados ou o novo método: é quase sempre preciso interpretá-los, e eu sou daqueles que acha que é aqui, depois dos resultados ― ou mesmo apesar dos resultados, in spite of the results ― que começa a Ciência com maiúscula. 

Outra questão é considerar que a Ciência deve ser feita com base nas ideias positivistas de progresso e generalização, o que significa que conseguir mais resultados e mais depressa é melhor do que obter menos resultados e parar para pensar sobre eles. Como se «fazer Ciência» valesse por si só (Ciência como ideologia ou mesmo religião) e não como um conjunto de métodos racionais para chegar ao Conhecimento (ideias iluministas, o primado da Razão, sem pressas: Buffon demorou 40 anos a escrever a sua Histoire Naturelle em 36 volumes, e quando morreu deixou material preparado para mais oito volumes!

Enfim, como vês, eu tenho opinião sobre o assunto, e um dia hei-de escrever um paper sobre isto ― ou pelo menos um post no meu blog.

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E cá estamos. Mais de seis anos depois e sem ser exactamente uma postagem alargando o tópico para além do e-mail, mas cá está.